20/12/2009

IMAGENS DE LISBOA

Disse numa outra crônica sobre Portugal que para o visitante de fora, as imagens que coleta pertencem àquele momento em que presenciadas ou fotografadas. Num estalo tudo pode mudar, embora na Europa muita coisa não mude. Há monumentos que sobrevivem há séculos.
Nos meus tempos de ginasial havia um professor de história que enaltecia o rei D. Diniz que intensificara na localidade de Leiria, a cultura de pinhais que serviriam mais tarde para a construção naval. Na época dos descobrimentos, o pinho fora usado na construção dos navios.
Inibo-me um pouco em perguntar que fim levaram os Pinhais de Leiria na minha ignorância num momento duma excursão. A guia me pediu que esperasse.
Uns minutos depois, chamou-se a atenção apontando para uma enorme área verde:
- Ali estão os pinhais de Leiria!
Bem, lá estão, preservados, há já 700 e tantos anos.
A Europa é assim. Ela guarda a memória dos séculos.



Lisboa é uma cidade arrumadinha, bonita, que se entrosou na comunidade européia e, sem dúvida, foi beneficiada por isso.
Um local muito agradável é o bairro do Rossio. Descemos à estação de Campo Pequeno do métro (pronúncia em Portugal), bem cedo para irmos até lá.
À nossa frente a bilheteria eletrônica que nos parecia uma entidade marciana. Eis que uma senhora portuguesa que lá desembarcara, com incrível delicadeza, percebendo as dificuldades dos “estrangeiros patrícios”, foi solícita e amável em nos ensinar a mexer na geringonça.


Não dá para negar nossa descendência portuguesa para quem tem, claro, sangue português. Nós nos parecemos de um modo incrível. No vagão deparei-me com um sósia de um velho tio. Tanto era parecido que evitei encará-lo para evitar mal entendido.


Fotografado da Torre da Santa Juta, o Rossio com destaque para a Praça Dom Pedro IV


O Rossio preserva o lado mais antigo e tradicional de Lisboa. Afastando-se do centro, encontram-se vielas e becos, casas velhas, que não imagino o tempo de existência.
Por ali, num ponto mais alto, numa praça, esculpido na rocha, o deus Netuno mira o mar com aquele semblante severo para não ser contrariado. Afinal, é o deus dos mares.





Netuno esculpido na rocha - Rossio









Descemos nos rumos do Largo do Chiado. Tiro foto dando a mão para a escultura em tamanho natural do poeta e escritor português Fernando Pessoa, “sentado” numa mesa do bar “Café a brasileira” que fora a de sua preferência.


















Eu e Fernando Pessoa (1888-1935), o grande poeta e escritor português - também astrólogo - na Praça do Chiado. As referências dão conta de que no local de preferência do escritor se instalava o "Café a Brasileira". Vejam que a foto revela uma certa "Casa Havaneza". Não procurei saber da "Casa a Brasileira". Quem sabe alguém explique. Duas frases de Fernando Pessoa: "Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente." e esta: "O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não."


Tomo um susto com a placa “zona pedonal” que soa muito estranho. A palavra não existe no Aurélio mas por derivadas, conclui tratar-se de zona de pedestres.
Por ali é possível ascender pelo elevado de Santa Justa, inaugurado em 1902, uma Torre Eiffel em miniatura. De lá de cima dá para mirar ao longe a cidade, incluindo o Castelo de São Jorge, do outro lado, construído numa colina.


De bonde chegamos a esse Castelo-fortaleza de São Jorge – santo guerreiro – construído em 138 AC. Todas essas construções (muito) antigas mexem comigo, ao imaginar o nível de sacrifício que aquela gente (islâmicos?), em condições tão precárias, sem recursos técnicos, enfrentou para elevar uma fortificação daquele porte no alto duma colina.
Mas, ali, no pátio do Castelo, há um chamamento à reflexão. Sob a sombra tênue de uma oliveira, que parecia ter sido vandalizada, uma placa já desbotada, destacava uma mensagem “aos viajantes”. A “oração da árvore” difundida na internet, como agora constato, com o texto seguinte contendo forte apelo ecológico:

[Abaixo, Castelo de São Jorge - à direita a árvores e a placa com a "oração da árvore". Sua autoria é atribuída a Veiga Simões, Arganil, Portugal, 1914 - seria adaptação de um texto iugoslavo]



Tu que passas e ergues para mim o teu braço,
Antes que me faças mal, olha-me bem.
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de inverno;
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o sol de agosto;
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que te sacia a sede nos caminhos.
Eu sou a trave amiga da tua casa,
A tábua da tua mesa, a cama em que tu descansas
E o lenho do teu barco.
Eu sou o cabo da tua enxada, a porta da tua morada,
A madeira o teu berço e o aconchego do teu caixão.
Eu sou o pão da bondade e a flor da beleza.
Tu que passas, olha-me e não me faças mal.





De volta ao Rossio, descendo de auto-car (ônibus) rumamos para a rua Augusta, imperdível, sofisticada como fora (ou é) a nossa própria rua Augusta em São Paulo. Bons restaurantes, lojas e tudo o mais.

Há muito, muito mais a dizer de Lisboa, mas fico por aqui até porque as imagens se perdem na memória mesmo com a ajuda das fotos.

E os portugueses em relação ao Brasil? Pelo que constatei pelas ruas, eles gostam muito do Brasil, como uma criação sua, que fala português, embora com “aperfeiçoamentos” (por exemplo, a palavra “bicha” para fila, foi “definitivamente” substituída por esta última por “influência” brasileira, pelo significado que tem aquela aqui).
Mencionam muito a violência brasileira, no Rio em especial, mas são admiradores declarados da música e de pontos da cultura brasileira. E das novelas.

Fico por aqui. Não falarei mais de Portugal embora haja muito a falar, após fechar a trilogia: Coimbra, Évora e agora Lisboa. Nem tenho mais disposição de voltar para Portugal, não por qualquer rejeição ao país que gosto muito, mas por não suportar 11 horas dentro dum avião. Quer saber? Não sei, sei lá, entende.

Um consolo: conheci em Lisboa uma guia de turismo de bom nível cultural que gostaria de conhecer o Brasil, mas receava atravessar o Atlântico...de avião. Jamais seria navegadora naqueles tempos de descobrimentos e aventuras porque havia que vencer o “mar tenebroso” (Atlântico) cheio de monstros e traições...

13/12/2009

BUCÓLICOS (i)

O Rio Piracicaba e seu nascedouro em Joanópolis (SP)




























Foto 1: “Cachoeira dos Pretos” onde nasce o Rio Piracicaba – há alguma divergência sobre a origem do nome. A versão aceita, oficial, tem a ver com o português Antonio Preto que aportou na Colônia em 1562. Entre seus descendentes, Manoel Preto, escravagista, caçador de índios foi bandeirante e sertanista. O nome da cachoeira, então, proviera da família Preto.

Foto 2: Barco solitário no rio Piracicaba em dia de cheia (foto de Milton Pimentel Martins).

Morei no ABC e guardo, sim, muitas lembranças de São Caetano do Sul. Acho que já me referi nestes Temas sobre isso. E por que fui embora?
Porque de onde morava via aquela chaminé assustadora da refinaria de Capuava, tal qual uma vela gigante queimando gases, por horas e horas.
O odor forte de borracha queimada que vinha das indústrias de pneus. Gases tóxicos expelidos na calada da noite que dificultavam a respiração.
Um dia, há mais de duas décadas, aproveitando a proposta profissional, de “mala e cuia” e mudamos para o interior.
Quando aqui chegamos, no meu bairro, no qual até hoje estou, pela manhã, uma pequena boiada cruzava o meu caminho. Pássaros em profusão caminhando a poucos metros de meus pés.
Veio o progresso, claro, a cidade cresceu muito. Sumiu a boiadinha, claro, mas ainda usufruo desses privilégios porque vivo próximo de amplas áreas verdes, num setor mais alto próximo duma das margens do rio Piracicaba. No parque da rua do Porto a que já me referi, todo domingo caminho por ali o que me ajuda a relaxar e a própria reflexão na medida em que a idade é assumida.

O Rio de Piracicaba nasce na pequena cidade de Joanópolis, a 170 quilômetros de Piracicaba.
No dia em que lá estive chuvas intensas faziam da Cachoeira dos Pretos (a 18 km do centro de Joanópolis), um espetáculo a parte, uma queda magnífica de 154 metros sinuosos transitando a água entre pedras, um trajeto sinfônico. Diz a placa: “Aqui nasce o Rio Piracicaba”.

Duma nascente semi-canalizada, em espasmos, jorra água límpida logo ali ao lado. Experimento aquela água levíssima da fonte, algo raro nestes tempos de degradação. Nada de excepcional se não sentisse seus influxos positivos que provieram, certamente, de seu nascedouro virgem.
Naquela paragem, a área é de preservação ambiental. Um dia desses volto e subo no alto da montanha de jipe (oferecido no local como “aventura”) para me aproximar mais da intimidade daquela exuberância toda, do seu nascedouro. Encantamentos.

Aqui em Piracicaba, o rio que lhe dá o nome está bem com tanta chuva. Nos tempos de seca é uma lástima. Mesmo assim, nesses dias magros com baixíssima vazão, lá estão pescadores insistentes com suas varas, lançando anzois sob água “servida”, mal cheirosa...
Os peixes de pequeno porte sobrevivem nesses tempos magros, nessas águas turvas. Corajosos os pescadores e os peixes.




Joanópolis é considerada a "Capital do Lobisomem" desde 1983 por conta de obra literária e causos sobre a figura folclórica. Na cidade é ele um personagem hospitaleiro e bom sujeito. Assim, "cabe a cada um desvendar os mistérios da meia-noite nas noites de lua cheia" em Joanópolis.



Voltarei com esse tema, “Bucólicos”: Ilhabela e borboleta azul, gambazinhos e papagaios.

22/11/2009

A SABEDORIA DOS RIOS















“A mata, templo sob azul e a límpida nascente
Permitiam-lhe saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.”


Para a resenha (parcial) do livro "Mistério das catedrais" de Fulcanelli, acessar:


Texto ampliado

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 Esse trabalho de atravessar viajantes como balseiro também com resultado revelador, se conhece no livro “Sidarta”, de Herman Hesse, autor alemão que, na década de 60 influenciou jovens e não tão jovens com suas idéias de desapego a qualquer doutrina. Hesse recebeu o Prêmio Nobel em 1946 e, para muitos, fora um sábio.

Sidarta era um jovem que certo dia resolveu deixar a casa de seu orgulhoso pai, um brâmane, para ele próprio, buscar a sabedoria.

Saindo pelo mundo com seu amigo Govinda, viveu todas as experiências mundanas até que, envelhecido, procurara a companhia de um “simpático” balseiro que certa vez o transportara. Com ele passa Sidarta a conviver e trabalhar.

E Sidarta, incentivado pelo amigo balseiro (Vasudeva) passa a ouvir a voz do rio (“O rio sabe tudo e tudo podemos aprender dele”). E pergunta um dia ao velho amigo:
“O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes, não é meu amigo? Não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?”

E assim, vivendo humildemente, substituindo seu amigo balseiro que encontrara, à beira do rio, a sabedoria e se retirara para a floresta, foi paulatinamente encontrando ele próprio sua interioridade e sua paz.

Mas, faria uma revelação importante para seu amigo Govinda que o reencontrara, sobre a sabedoria: “Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la, podemos vivê-la, podemos consentir ela nos norteie, podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la.”

Tal se dá, certamente, porque a sabedoria é uma experiência pessoal, interior, intransmissível. O mesmo não se dá com o conhecimento.

Assim, ousei colocar lado a lado esses dois personagens tão semelhantes que, verdadeiramente, destacam o vigor místico dos rios, fonte de batismos, com sua cadência harmoniosa, sua voz, seu ir sem volta mais sempre presente até o fim de seu curso, culminando no seu trajeto majestoso em alimentar canais maiores num processo inexorável de transformações.

Por isso, sobre a água, encerro com São Francisco, valendo-me de um trecho do “Cântico do Irmão Sol”:
“Louvado sejas tu Senhor pela irmã água / que é tão útil e tão sábia / preciosa e casta”.



Foto 1: Parque Nacional Canaima - Bolivar - Venezuela. Foto de Alberto Corona (corona.blogia.com)

Foto 2: Imagem de São Cristóvão - azulejo - Igreja Matriz de Rio Tinto - Concelho de Gondomar - Porto / Portugal


15/11/2009

ÉVORA E SEUS ENCANTOS


Tenho Portugal comigo com muito carinho. Não sei se pela língua ou por gestos educados que recebi nas duas vezes que lá estive.
Quando se faz uma viagem ao exterior e se escreve impressões sobre determinada cidade ou país, são como retratos instantâneos. Tudo pode mudar no dia seguinte. Évora me marcou muito e explico nestas linhas

Évora, olhando-se o mapa de Portugal, fica a direita de Lisboa, um pouco mais ao sul. Não dá, de ônibus, duas horas de viagem. O país é pequeno significando que lugar algum é muito longe.









Cidade pitoresca de “terras lusitanas”, cheia de monumentos históricos, bastando citar que ali remanesce, construído no século II, pelos romanos, ruínas dum templo à deusa Diana.

É a cidade cercada por muralhas, estas construídas entre os séculos XI e XII.
A visitação aos inumeráveis monumentos é até fácil pela proximidade entre eles.
Limito-me, porém, a dois: a igreja de São Francisco e a “Capela dos Ossos” (sob outro enfoque, já me vali das informações ali colhidas em outra crônica – “Dos sem religião” de 27.02.2009):
Tenho certa admiração pelo santo que dá nome à igreja. Na sua entrada, numa pequena placa, lê-se a seguinte mensagem escrita por Santa Tereza de Jesus:

“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta.”

Não sei se, motivado por essa “recepção”, o caso é que, chegando à sacristia – não havia ninguém – tive aquela sensação muito comum quando damos um vexame, enrubescendo o rosto. Essa eclosão fora inspiradora, algo parecido com o que sentira quando, havia poucos anos, visitara o túmulo do santo em Assis, na Itália.
Saí da igreja ainda com aquela sensação e, ao lado, entro na “Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes internas, estão incrustados cinco mil crânios humanos e, nos pilares, por ossos dos membros inferiores. Todos esses ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado de diversas igrejas.

E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

Claro que tal capela constitui-se numa evocação anti-vaidade, em linha com o que praticara e pregara até exacerbadamente São Francisco já que, no final, tudo se reduz ao pó para não dizer, ossos. Tal pode ser meio macabro, mas é, sem dúvida, uma sacudida pró humildade. Os ossos lá estão...
Évora, pela sua “idade” tem, também, suas vielas estreitas e desertas.
Numa delas, arriscamos um restaurante simples, descoberto ao acaso, numa quebrada, uma placa indicativa mal escrita. No seu interior, baixa iluminação, muito própria de filmes “noir”, mesas de madeira escurecidas. Serviço aceitável. De entrada um vegetal temperado com puríssimo azeite de oliva. Pareciam grandes feijões verdes. Eram favas. Fui...
Daí, seguindo por aquelas ruelas, chega-se à praça do Giraldo, a principal da cidade, movimentada, turistas usufruindo das mesas no centro dela. Idosos, muitos, relaxavam e falavam nas velhas edificações do outro lado.

Relata o escritor Laurentino Gomes, no seu best seller “1808” que em Évora, as forças de Napoleão praticaram “duríssima repressão”, diante da resistência inútil dos seus moradores aos avanços das tropas comandadas pelo general Loison: “Homens, mulheres, crianças e velhos foram caçados sem dó nem piedade pelas ruas, que ficaram banhadas com o sangue de mais de 2000 mortos numa única tarde.”

Bastara descer uma ladeira qualquer e voltamos à rodoviária. Não me lembro no caminho de ter encontrado qualquer transeunte em toda sua extensão.
Na rodoviária, modesta, os banheiros eram vergonhosos. Bacias turcas imundas afastavam inapelavelmente homens e mulheres de seu uso. Aliás, na Europa, na média, não são os sanitários muito promissores até mesmo nos pontos turísticos bastante visitados.
O que ficou de Évora, porém, foi aquela sensação de paz, algo das vibrações que talvez a história, os seus mortos e o clima evoquem de modo imperceptível, mas que de alguma maneira são captadas pela mente desarmada. Sutilmente.

(Na crônica de 14.06.2009 escrevi sobre Coimbra, a Universidade e D. Diniz)

GIRALDO EM ÉVORA
(Grafia original)

"Foi esta Cidade conquistada aos Mouros...e no ano de 1166 a recuperou um nobre Cavaleiro…chamado Giraldo sem Pavor…e alguns deliquentes, com os quais vivia na serra de Montemuro, exercendo latrocínios, que por serem em forma de guerra, ficavão menos indecorosos.
…e estando perto da Torre da Atalaya se adiantou mais dos seus companheiros… Foy subindo Giraldo pela parede…chegou ao alto , e lançou a Moura abaixo, e entrando na torre degolou o Mouro…e trouxe a sua cabeça com a da filha a seus companheiros, que foi bom prognostico da vitoria, que depois alcançarão.
…um homem a cavallo…armado todo com uma espada nua em uma mão, e na outra duas cabeças de homem, e mulher, aludindo a esta façanha de Giraldo, donde teve principio sua restauração, e liberdade."

P. António Carvalho da Costa
COROGRAFIA PORTUGUEZA
Tomo Segundo 1708

Fotos pessoais:

1. Praça do Giraldo - Évora
2. Capela dos Ossos - Visão interna: as paredes porosas são constituídas de crânios e ossos

03/11/2009

ENCONTROS E DESENCONTROS





















A pequena empresa onde trabalhava passava por sérias dificuldades. Havia a necessidade urgente de um vendedor dinâmico que enfrentasse o mercado reticente para o produto ofertado (venda de anúncios).

Um dia, inesperadamente, esse vendedor apareceu. No começo, como quem pouco quisesse, com postura humilde, propôs-se a desenvolver novos clientes.

Com o passar dos dias, seu trabalho começou a dar resultados e, a cada êxito, sua personalidade ia se modificando na mesma proporção.

Passou a pedir pequenos adiantamentos por conta de comissões. 

Esses adiantamentos foram subindo de valor, chegando o momento em que a situação tornara-se insuportável.

Todos na empresa passaram a "dormir e acordar" com ele. Era envolvente, convincente, com fortes marcas de mau caráter. Era tênue a linha que o separava da gatunagem pura e simples. Talvez fosse contido pela religião que afirmava professar. Ele conseguira ser a preocupação número um de todos. Eram comuns comentários como:

- Ontem "fui dormir" com o M.., sonhei com ele e "acordei" com ele!

Essa opressão psicológica que ele exercia, por um fenômeno qualquer de sua personalidade, tirava algo de todos. Sua presença tornara-se insuportável, ‘vampiresca’.

Alguns meses, quando o clima se tornara de tal ordem negativo, num daqueles estouros inevitáveis, um murro na mesa, de vez em quando necessário, foi posto a correr.

Muitos anos se passaram. Um dia, no centro de São Paulo dei de cara com ele. Tentei evitá-lo, mas ele fez questão em se aproximar. 

Disse apenas:

- Olha, criei juízo...

Balbuciei qualquer coisa, perplexo com a afirmação, logo ele a quem expulsara do ambiente para bem de todos, de mim principalmente. Que tipo de juízo criara? Como poderia ter extraído de si aquela sua marca opressiva? Que reflexão fizera? Sem mais uma palavra, desviou-se e se foi. Quem sabe, realmente "criara juízo". Jamais o esquecerei, porque ele significou na vida de algumas pessoas e na minha própria, por certo tempo, um desencontro. Aquele que finge dar, mas que só tira.

Há pessoas que, efetivamente, num dado momento, entram na vida de outras, provocando grandes provações e dissabores Às vezes de forma inexplicável. E depois desaparecem, se vão, da mesma forma como vieram, deixando, porém, o gosto amargo da lembrança.

São os desencontros. São as pedras que rolam, se chocam e se batem. Mas, não são somente pedras que rolam e se batem.

Há momentos que elas se aproximam, aquelas pessoas que nos momentos mais difíceis também de forma inexplicável, se apresentam e fazem um bem imenso a outras, um simples gesto, falando qualquer coisa oportuna que enleva, que recupera.

Uma palavra pouco machista nos dias de hoje: a ternura. Isso mesmo! É o que algumas pessoas transmitem, sem afetações, com sinceridade e de tal ordem que muitas vezes somente a gratidão não é suficiente para compensar as benesses recebidas. E o mais curioso é que não se dão conta do que fizeram.

São os encontros. Os reencontros. O retorno a algum passado que parece vivido mas perdido, quem sabe, nos séculos, no éter.

Quando faço uma reflexão dos desencontros e encontros, chego à conclusão que nesta vida atribulada, até agora, conto mais encontros, reencontros. Que permanecem em minha mente como momentos preciosos, de amizade. Quanto de amor há na amizade?

Se os desencontros foram maiores, tento não me convencer disso até porque tenho consciência de minha obrigação de perdoar e relevar. Difícil, mas ver o lado bom do atrito das pedras.

Foto: abracadabra.weblog.com.pt

25/10/2009

ESTADOS UNIDOS, UM SENHOR PAÍS



































Foto 1: A onda do açaí nos Estados Unidos. O cartaz apontado pelo meu filho Silvio, se ampliada a foto, revelará os seguintes dizeres: “Now available – AÇAI ENERGY – Brazilian Super Fruit”. Exposta num restaurante de estrada entre Nova York e Filadélfia
Foto 2: Visita a Lincoln Memorial (Washington). Eu e minha esposa Ana Rosa.
Foto 3: Naquela linha de aproveitar tudo o que possível a estatua da Liberdade, fotografada “a vivo” nas proximidades de sua ilhazinha (Ilha da Liberdade), pelo Rio Hudson (Nova York). A estátua possui 46,5 metros de altura, pesando 24635 toneladas e foi um presente da França aos Estados Unidos em comemoração ao centenário de sua independência.



Pela segunda vez estive nos Estados Unidos, pais que admiro. A primeira vez foi por conta de atividade profissional. Lá fiquei por 35 dias. Desta feita, há pouco, só alguns dias, o suficiente para apreender sua atmosfera num momento de crise. Sobre esse aspecto, escrevi no portal www.votebrasil.com, “edição” de 14.09.2009.
Normalmente, em qualquer viagem ao exterior – e eu já visitei 16 países entre América do Norte, do Sul e Europa -, há que aproveitar sempre com bastante atenção os aspectos turísticos de tal ordem que dessas viagens – além da vaidade (epa!) de afirmar “eu já estive lá” – fiquem imagens de experiências que realmente valham a pena reter.
Hoje, de todos esses deslocamentos ao exterior que tive a oportunidade de viver, só guardei fragmentos o que me leva a questionar se valeu a pena tantas horas nas desconfortáveis viagens de avião, nas suas poltronas minúsculas, cotovelos com cotovelos. As fotos que poderiam significar lembranças, com o passar do tempo ficam inidentificáveis.
Nesta última viagem aos Estados Unidos, em setembro último, estive atento a notícias do Brasil. Nada e em certos setores da tradicional ignorância americana o Brazil é praticamente desconhecido.
Na Filadélfia, faço duas perguntas a uma americana comum provinda do estado de Arizona. Ela sabia, pelo menos, que no Brasil se falava português.
- Por favor, o que a senhora sabe do Rio de Janeiro?
Silêncio constrangedor.
- E do Lula?
O mesmo silêncio.
Quanto ao Rio de Janeiro, é possível que a atenção dessa senhora do Arizona tenha sido despertada pelos recentes acontecimentos nos morros e favelas cariocas, com mortes e derrubada de helicóptero da polícia, que obteve repercussão internacional.
Um consolo: na vista do Museu de Artes da mesma Filadélfia, um segurança negro, de baixa estatura, ao saber que éramos do Brasil, mencionou:
- Oh, yes, Rio de Janeiro, samba.
Nada mais.
Digam o que disserem, mas sou meio “chegado” nos Estados Unidos, mas não voltarei mais por lá, salvo alguma grande “mamata” que surja do éter, até porque não aceito passagem área do Senado. Difícil, hem!?




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18/10/2009

O HOROSCOPISTA


Por muito tempo me diverti ao lembrar dum velho jornalista que conhecera tão de perto e que dirigia um jornaleco semanário que tinha lá seus encantos, porém. Eram aqueles tempos heróicos em que a composição era feita nas linotipos.

O velho jornalista tinha um perfil todo próprio: baixinho, desmazelado - diziam que meio avesso a banho - irreverente e desbocado.Tinha muitas manias: a principal era rolar nos dedos como se fosse uma bolinha de gude, um pedaço de chumbo que gravara texto rejeitado.

Certo dia resolveu que o seu jornal teria um horóscopo. Depois de muito procurar, não encontrando um horoscopista ou um astrólogo no lugar, resolveu que ele próprio, semanalmente, produziria o horóscopo. Semanas depois, o primeiro horóscopo foi publicado, assinado pelo estranho nome de "Monsieur Abidul - o astrólogo internacional", tudo muito bem feitinho e organizado, com os símbolos do zodíaco e tudo. E, assim, a cada semana, lá estava o horóscopo fresquinho, regendo toda a semana seguinte dos leitores. Mas, depois de um tempo, aquele exercício de horoscopista estava lhe dando cansaço e tédio porque passara a ser um compromisso inadiável. Havia o espaço a preencher. Já não agüentava mais "capricórnio, cuidado com amores inesperados, mantenha-se vigilante !", "virgem, prepare-se, você pode receber pequena fortuna !" e assim por diante.

Até que, no minuto final de fechar a edição, cheio de preguiça, manipulando nos dedos um pedaço de chumbo de gravação que saíra defeituoso da velha linotipo como se fosse um bolinha de gude, todas as previsões dos signos foram trocadas: as de touro, foram parar em virgem, de balança em câncer, de capricórnio em áries, de áries em capricórnio e assim por diante. E o horóscopo foi assim montado por semanas seguidas.

Numa manhã de segunda-feira – o jornal circulava aos domingos - o telefone da redação toca. A voz feminina pediu para chamar o horoscopista. O estafeta sonolento que atendera insistiu que o tal Monsieur não trabalhava no jornal.

- Como não? - já impaciente, a leitora. É ele quem faz os horóscopos!
Acordando como se levasse um balde de água fria, o estafeta tapou com a mão o fone e chamou o diretor:

- Diretor, tem uma mulher aqui querendo falar com o tal do Monsieur Abidul.
Meio surpreso no primeiro segundo, mais que depressa, estirou-se torto na cadeira, pé direito apoiado na última gaveta da mesa gasta onde se espalhavam as provas das páginas da edição do último domingo, afinando a voz, respondeu num sotaque misto de francês e inglês, tudo ridículo e risível:

- Bien, como posso ajudarr o senhorra ? Here é o Monsieur Abidul?

- "Seu" Abidul, suas previsões estão muito estranhas. Tenho certeza que no mês passado houve no meu signo um horóscopo idêntico ao de ontem. Minha filha leu o horóscopo de seu namorado, que é de leão com as mesmas previsões feitas para o seu próprio, de virgem, da semana passada. Como se explica isso?

Sem nenhum constrangimento, o diretor mantendo aquele sotaque híbrido, risos contidos à sua volta, respondeu marotamente:

- Oui, a senhorra. nunca ouviu dizerr que os astros e as stars se mexem no céu. Órra, os horoscôpos tem a mesma prrevison when os astros girram para o mesmo lugarr.
Ao que a mulher respondeu:
- O que gira é sua cabeça, Monsieur Abe... não sei o quê, seu charlatão! Seu sem-vergonha! - e bateu o telefone.
O diretor perplexo manteve por alguns segundos o fone na mão, boquiaberto, enquanto seus óculos de lentes riscadas escorregavam das orelhas suadas. Não pôde conter a ruidosa gargalhada que ecoou por toda a redação e oficinas. Mesmo não entendendo nada, todos riam alto como se a gargalhada do diretor fosse, por si só, uma grande piada.

Na edição seguinte o horóscopo deixou de ser publicado, com uma nota da direção do jornal simplória e curta no canto direito da primeira página: o astrólogo havia sido demitido porque "descobriu-se que era um charlatão".

03/10/2009

MEUS TEMPOS DE BULLYING











Cartaz do filme "Os Brutos também amam" (Shane)









Há tempo para tudo e tudo passa com o tempo. Essa frase de efeito me faz pensar em muitas coisas e até na palavra bullying que trata do fenômeno odioso da agressão gratuita que se dá no ambiente escolar e não só. Pequenas gangs ou valentões “elegem” alguns colegas de classe ou da escola e passam a infernizar suas vidas. Diariamente.

Bully, do inglês, significa brigão e como verbo, ameaçar, amedrontar. Então, seria ameaçando, amedrontando.

Nos meus velhos tempos de ginasial me deparei com essas situações. Vivi essa experiência odiosa.

Em algumas oportunidades fui vítima do bullying.

A que mais me lembro, refere-se a um sujeito sempre acompanhado de outros dois ou três, e fui eu o “eleito” para ser sua vítima. Era tapa na cabeça antes da entrada nas aulas e durante as aulas quando distraído o professor, rasteiras e por aí seguia. Por dias, semanas e semanas.

Era um tormento minha chegada à escola. Tinha lá os meus medos do que poderia ocorrer se eu reagisse.

Até que um dia, no limite do insuportável, ao se aproximar para mais uma das suas à minha chegada, eu o empurrei violentamente. Ele caiu sentado, sob o olhar perplexo dos seus colegas, na verdade, uma ganguezinha. Todos riram.

- A seu fdp. Te pego na saída, disse ele raivoso e envergonhado.
Aquela manhã foi de pavor. Rezava para que ele fosse embora.

Na saída, do lado de fora do portão, lá estava ele me esperando. Toda a classe sabia o que viria. Um espetáculo de luta livre ao ar livre sob o sol ardente.

Eu naqueles tempos difíceis usava sapatos com solado de pneu, pesados, pois.

Fomos para um terreno próximo com farta assistência nos seguindo entusiasmada.

Descobri naquele dia que sabia brigar. Meu sapatão brilhou solto. Rolamos pelo chão de terra e poeira e por fim, meu bullyinista levou a pior. Abandonou a briga.

Claro que essa contenda teve repercussão na escola. Senti-me por uns dias o “Shane” de “Os Brutos Também Amam”, filme da década de 50 até hoje emblemático.

O sujeito no dia seguinte, hematoma num dos olhos, não conseguindo nem mesmo disfarçar as dores nas pernas, disse que ia para a revanche mas sossegou, nunca mais se aproximou de mim. Nem sua turminha.

Peguei fama de bom de briga, nada a me orgulhar. Meu orgulho é nunca ter começado uma. Se já levei a pior alguma vez? Bem, não se pode vencer sempre...

Quero deixar este depoimento pensando no que se passa hoje até mesmo jovens dando tiros de revolver para "resolver" o bullying de que é vítima. E outros casos desse naipe e graves.

Há que serem apoiados aqueles que são vítimas do bullying. 

Vigilância permanente nas escolas para coibir a agressão física ou moral. E a atenção dos pais. Para os “eleitos”, é infernal cada dia e um pesadelo o dia seguinte, o dia seguinte, o dia seguinte...

Atenção dos responsáveis pelos sintomas desses transtornosw. A malvadeza hoje supera qualquer vilão.

E nada de imitar Shane porque as consequências podem ser graves, irreversíveis

20/09/2009

INTUIÇÃO DESVENDADA





(Igreja de Santo Antonio / Praça do Patriarca - SP)

Foto: Antonio Erivaldo - fotolog.terra.com.br/toninho:424)


Daqueles idos brilhantes que já tanto me referi, retorno minhas impressões, lembranças a uma professora de filosofia, que em algumas aulas no colégio, promovia um exercício religioso: abria a Bíblia ao acaso e incentivava os alunos participantes a ler um versículo. Em seguida pedia que cada um desse sua interpretação.
Dizia que a Bíblia tinha diversos significados, verdades que se intuem segundo o merecimento do fiel, mas em especial a vontade sincera em compreendê-la. Nesses exercícios bíblicos uma certa comunhão do grupo com o texto objeto de reflexão, poderia inspirar novas revelações.
Essa professora, juravam no colégio, pertencia a uma ordem religiosa católica. Quando perguntada, com aquele respeito todo, ela não confirmava e não negava, apenas desconversava.
Mas, a forma como se trajava e agia, sempre de vestido longo, cinza claro, na altura do tornozelo, sem pintura, cabelos lisos cortados pouco acima dos ombros, olhar brilhante e sereno num rosto redondo, rosado naturalmente, não negavam alguma ligação com uma qualquer ordem religiosa.
Naqueles exercícios, algumas derivações bíblicas iam eclodindo, transbordando, não decorrentes do exercício intelectual, mas da intuição, da interioridade. Existia naqueles momentos, um (in) explicável sentido de paz.
Sempre me lembro dela e de outros. Onde andariam esses expoentes? Ainda vivem?


Já disse que me desviei para correntes do ocultismo. Algumas dessas correntes incentivam, conduzem o adepto a encontrar na sua interioridade o seu templo e sua religião. Há alguns conceitos universais ou religiosos que dão as linhas básicas de conduta. Assumidas essas, à medida que o adepto se esforça, mais ele se encontra e mais ele renuncia a certos valores mundanos. A conjugação da auto-compreensão, com a renúncia a certos (des) valores vai levá-lo a identificar sua espiritualidade.
Mas, isso não é fácil, porque o dia-a-dia o coloca diante de imensos desafios mundanos. Que também se constituem valiosas possibilidades de progresso, se aqueles valores universais forem preservados como norma de conduta. Mas, na contrapartida, tende a fazer esquecer essa busca eminentemente religiosa e espiritual que estaria latente no âmago de sua interioridade.
Fica mais fácil, pois, frequentar uma igreja no domingo. Naquelas horas que ali passa, exterioriza o fiel sua busca pelo divindade, se apoia nalguma santidade, num exemplo. E interioriza certas vibrações das orações, das pessoas que ali estão, também, buscando uma melhoria pessoal ou religiosa.
Certa feita, um tanto intranquilo por alguma coisa que já não me lembro, voltei a uma missa católica. Saí muito mais confortado, principalmente pelo congraçamento que houvera entre os fieis.
Todas essas confidências que me encorajei a relatar, vêm a propósito da emoção que sempre sinto ao me deparar com pessoas em oração.
Normalmente, quando em São Paulo, para suportar a poluição e o cansaço adicional que ela provoca, tenho por costume, parar um pouco na Catedral da Sé e, na sua meia-luz, fazer um pequeno recesso, observando as pessoas que entram e saem. Outro dia, fiz isso na Igreja da Praça do Patriarca (Igreja de Santo Antonio).
Homens e mulheres, simples ou bem vestidos, entram, ajoelham-se ou não, oram diante de uma imagem ou no próprio genuflexório e se retiram.
Não importa o tamanho da imagem. O que importa é a busca da graça, do calor espiritual que o gesto, a oração piedosa podem produzir. São aquelas, as imagens, apenas símbolos que levam à religiosidade.
Quanto a mim, enquanto permaneço estacionado sem enveredar para minha autorreligiosidade pelos motivos mundanos que me deparo a cada dia – boa desculpa, hem? - alimento muita simpatia por aqueles que, no recesso de uma igreja, numa hora qualquer do dia, exteriorizam sinceramente a sua, sem exacerbações e exageros. Apenas um momento de reflexão e oração.
A propósito, já nem sei quantas vezes usei o trecho abaixo de uma poesia minha, cujo teor se perdeu. Vale mais uma vez para sintetizar o que quero dizer:


"A vida caminha pra frente
Sucedendo-se o dia-a-dia feliz ou triste,
Não há sequer uma garantia
Nessa seqüência de luta sem nexo (ou sadia ?)
Sinto que há nesse vai-e-vem
Valores interiores, superiores, sutis.
Como descobrir o que exprimem
Se os embates da luta me reprimem ?
Parece que essa luta sadia (ou doentia ?)
Não começa no sexo e termina na morte:
Há mensagens fortes nessa contradição
Que só a Alma silenciosa possibilita audição".

02/09/2009

ETÉREOS










(Imagem: borboleteando.blogger.com.br)



Fazer poesia, para mim, significa um desafio. Há momentos, raros, porém, que fluem elementos que me obrigam a produzir alguma coisa e, às vezes, dá certo.
Já disse um sem número de vezes que minha juventude foi (muito bem) vivida em São Caetano do Sul.
Com relativa proximidade à Serra do Mar, muitas vezes o nevoeiro que por ali eclodia, trazia algumas rebarbas na cidade. Em São Bernardo, havia dias em que a visão não alcançava além de cinco palmos, tal a espessura da massa branca.
Havia tardes de inverno, mesmo quando meio temperados, que o dia permanecia cinzento, com aquele vento frio que me levava a um sentido nostálgico, uma contradição, porque ao mesmo tempo uma fagulha de felicidade e alegria transbordava. Olhava para o céu fechado e me perguntava o que se passava comigo naqueles arroubos.
Tantos e tantos anos depois, não poucas vezes me vêm à mente aqueles momentos. Afinal de contas, hoje, mesmo não tendo muito a me queixar, o enquadramento da vida é diferente. Ela é dura de ser vivida. As indagações de agora e daqui para frente são nada além de desafios que me assaltam e se perdem sem resposta. Nada sei, pouco sei dessas transcendências.
E foi num dia assim, meio fechado, sem mais transmitir aquelas inspirações de outrora que escrevi ETÉREOS, num sentido de que a vida pode prosseguir mesmo quando já se chega, digamos, ao ocaso.
Etéreos é a que mais eu gosto.
A borboleta é a alma que busca nesses remanescentes, a inspiração para prosseguir absorvendo o que de bom resta para viver.



ETÉREOS

Nessa de desânimo
apatia
Não sei o porquê
de tal melancolia
(ou nostalgia?)
Desmedida

Sei não!
Cadê a Inspiração
os elementos Etéreos?
Clamo, pois, só, no (meu) deserto
Respostas não vêm
Ilusões não há (mais).

Miro margaridas murchas
(bem-me-quer, bem-me-quer!)
Que se preparam para semente
Sinto o sol...
mas não me aqueço.
Num momento, surpreso
confuso
Sinto o Etéreo, porém.

Uma manchinha azul
No éter
Vindo, chegando, esvoaçando!

Ora, uma simples...
Borboleta...azul!

Ela dança nos meus olhos
Solene, encantada, frágil
magnífica, rebrilhante...
E pousa, então...
na margarida
a mais desfeita
na gema amarela.
(apenas três pétalas ressequidas)

Apreendi logo
o valor da escolha...
Da borboleta azul
Etérea
tão tênue
tão efêmera
Bem vinda...

Porque na margarida
murcha
na gema
Ela sentiu a vida
(ainda)

Assim falava ela
a borboleta azul
Etérea
na minha nostalgia
(ou melancolia?)
Naquele dia...

22/08/2009

SIMPLICIDADES


Eu e minha cadelinha preta, "prisioneira".



















I – Soberbas e tédios

Profissionalmente enveredei para as relações trabalhistas. Ligadas à área de recursos humanos, elas “administram” conflitos internos e os de fora dos muros, as querelas de natureza jurídico-trabalhistas e sindicais.
Envolvi-me tanto com essa área que acabei escrevendo, digamos, um livro.
Na última e derradeira edição, depois de muitos anos de experiência em multinacionais, tantos seminários que em nada alteravam seus desvios porque geralmente dirigidos aos subalternos e não à cúpula dirigente a quem caberia, eventualmente, mudar alguma coisa, inseri um texto sobre administração de relações trabalhistas que tratava de três princípios: o da autoridade, da transparência e o da simplicidade.
Quanto a este último, coisa meio utópica, assim me referi:
“A simplicidade, pois, começa na maneira aberta de encarar os problemas, as indagações e, principalmente, as sugestões como se, a cada dia, todos pudessem aprender com todos. Claro que, nesse compasso, deve predominar o princípio da autoridade, que decide com participação. O autoritarismo decide isoladamente.”
Nos debates e conflitos que todas as empresas têm, muitas vezes me vi, naquelas reuniões tensas, sendo condescendente com aspirações dos operários e, na medida do possível, as defendia mostrando lados menos selváticos.
Raramente fora entendido por eles. Não poucas vezes, nas portas dos banheiros da empresa, meu nome escrito precariamente era mal adjetivado, claro que por não saberem esses detratores, o que se passava nos bastidores.
Encolhi-me perante posicionamentos gerenciais que entendia incoerentes a que me obrigava, obviamente, a suportar. Tédios, diante da soberba. E nesse quadro, quantas vezes cumpri decisões amargas. Só um demitido surpreendido conhece a amargura da demissão.
Por tudo isso assumi uma dose de simplicidade pessoal, assim que pude. Hoje, a pratico até na profissão. Salvo situações específicas, não me inibo de sair pelos fóruns de calça “jeans” e sapato largo sem meias, “desafinado” perante advogados elegantemente trajados.
Mas, alguém me aponta o dedo e diz que no meu modo “simples”, há uma dose velada de arrogância que transpira. Tenho me questionado sobre isso. Reflito.

II – O ideal numa ficção

Valho-me, então de um personagem fictício de longa crônica que, aliás, está na íntegra neste espaço em edições anteriores.
O antigo executivo, que chamarei apenas de R, um dia, bem de vida, larga tudo e vira pescador medíocre no litoral de São Paulo.
Reformulei o texto e o resumi. Ao ser indagado sobre sua atitude modesta numa palestra para humildes ouvintes:
- Mas, o que parece certo é que a soberba é mais agressiva, mais ambiciosa, assustadora e predomina no mundo. Eu sei disso porque convivi nesse mundo de competição e posso dizer que combati a soberba com soberba. Sendo a soberba uma não virtude, digamos, ela tende a manter as desigualdades subestimando valores, as virtudes da lealdade do altruísmo. A modéstia contrapõe-se à arrogância e à violência. Proponho, pois, um mundo “modesto”? Uma utopia? Trazer o céu para a terra?
Não bem isso. Seria uma impossibilidade. Sabemos que nosso mundo é naturalmente o mundo das desigualdades. Cultivada, porém, numa permanente autocrítica, possivelmente fizéssemos o mundo apenas um pouco menos desigual, um pouco menos doente. Mais altruísta.
Depois de uma pausa, olhando fixamente para seus ouvintes, em tom solene:
- Não pensem os senhores que atingi esse nível de “modéstia”. O que acabei de lhes relatar é, sobretudo, uma aspiração pessoal que tenho em mente. Não sei se chegarei um dia a tanto.
Essa foi a última resposta que R deu. Acenou para todos e exclamou: paz!
Ao sair foi rodeado pelos seus ouvintes, recebendo-os com um sorriso, aqueles mesmos que, quando executivo, dificilmente dele se aproximariam.


III – A soma de todos os valores

O meu maior despojamento, talvez, naquele sentido de desapossar-se de vaidades, dá-se sob um pé de atemoia num banco de granito que instalei. Foi nesse canto que consegui ler “Guerra e Paz” de Leon Tostoi, nas suas mil e tantas páginas
Tenho carinho pela atemoia porque ela floresceu de semente que plantei e acompanhei desde o primeiro brotar. Seus frutos são amanteigados e “valem por um almoço”.
Levanto-me e vou a dois passos ao acolhimento do pé de amora. Colho algumas já maduras. Quem na infância não comeu amora do pé, faltou alguma coisa à infância.
Amoreira. Humildade. Contém “amor” em seu nome. Daí as “amor-as”. Em gotas.
Ao lado dela um é de romã dando frutos – cuja muda transplantei de uma pequena saliência numa calçada qualquer -, um de pitanga graúda. Do lado esquerdo dois pés de mexerica que produzem muito. À frente, um pé de manga “tomy” em flor que promete mangas temperadas com açúcar da melhor qualidade. Ao seu lado uma árvore sem identificação, cujas folhas amassadas cheiram fruta, mas que se resignam a espocar apenas umas flores bem modestas e pequenas. Também a transplantei de cantos de calçada. E uma ameixeira.
Aos meus pés minha vira-lata preta, ainda ativa embora já com seus 17 anos. Verdadeira prisioneira sobre quatro muros, embora tenha espaço para se movimentar nesse quintal, esfregar-se na grama. Nas suas idas e vindas sedimentou trilhas arredondadas, desvios e só por essa “rota” caminha.
Estou aqui com ela, penalizado porque reconheço sua angustia de ali permanecer, com pouco carinho e a festa que faz quando vou visitá-la. Tenho ido menos pelos meus compromissos profissionais meio moído pelo cansaço e desgastes.
Mas, se vou, é só amor que transparece de seus olhos já não tão brilhantes rodeando o banco de granito esperando alguma ação minha, além do agrado que não renuncia.
Comecei a levá-la a passear nas redondezas. Quero retribuir um pouco seu amor incondicional e não ficar pesaroso se ela se for...antes de mim.
Nesse meu quintal de uns 450 metros quadrados, só me deparo com plantas que dão frutos sem nada pedir e uma cadelinha pronta para retribuir tudo o que puder ainda que pouco receba.(Leia "Vida de cachorro" em http://prosaeversodeboteco.zip.net)

Estou ali rodeado de exemplos vivos de simplicidades, humildades, amor desprendido. E paz.

26/07/2009

CRÔNICA PAULISTANA




















Foto: www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/sao-paulo/catedral-da-se.php


CATEDRAL DA SÉ - SP

Já faz algum tempo, obriguei-me a excursionar pelos principais pontos turísticos de São Paulo, porque me desatualizei dela.
Haveria que encontrar na velha São Paulo algumas relíquias dignas que amenizassem esses tempos amargos. Encontrei sim, mas é inevitável reviver os antigos encantos.
Não faz muito nos rumos de São Caetano, perdi-me entre aqueles viadutos no final da avenida Nazareth, no Sacomã e tomei o sentido da Estrada das Lágrimas.
Via feia e sem cor, sem verde. Já cedo, havia lá na frente uma batida de carros, fazendo o trânsito mais lento na estrada tão estreita. Acordei dessa letargia do monóxido de carbono já com os pulmões desabituados de tanto peso, bem defronte à Igreja de Santa Edwiges, a padroeira dos pobres e dos endividados.
Essas impressões me marcaram tanto que saiu o seguinte poema:

Orquídeas e beija-flores

Eis-me aqui amargurado e pensante
Mal respirando nesse clima insano,
Tudo que exala desse meio paulista urbano
Envolto na fuligem dessas chaminés rasantes.

Que mundo é este de dura resistência!
Que mundo é este de intensa incerteza
Que mesmo à reação da pródiga natureza,
Ampliam-se os desertos por abusada inconsequência?

Que mundo é este de ganância e escuridão,
Que princípios postos pouco ou nada valem?
Se de tudo que inspira sucumbe, porém,
Nessa sanha caótica de destruição?

Reajo impotente qual um conformado perdedor
Sonhando acordado, no tráfego, quietamente,
Vendo desabrochar orquídeas no fundo da mente,
Visitadas por beija-flores em doce torpor.

E assim, no interior de minh’alma triste
Revela-se que tais doces criaturas, parece,
De Deus, são o preferido passatempo, uma prece,
E somente por essa dúvida a esperança persiste.

Esses instantes de valor e Paz perdem-se na poluição,
Sobressaltado não pela água límpida irradiando o sol,
Mas pela barulhenta abertura do farol,
Cujo verde não é o das matas que clamam proteção.


Arrependi-me de nunca ter conhecido o interior da igreja, porque em frente, do outro lado da Estrada das Lágrimas, havia um barranco onde era possível se abastecer de água potável de uma nascente.
Geralmente ao anoitecer, enquanto os recipientes enchiam lentamente, ficávamos mirando o céu estrelado, quem sabe flagrando o risco brilhante duma estrela cadente. Muitas vezes elas deram o ar da graça. E no instante, o augúrio forte de um desejo profundo lançado no éter. Naqueles tempos não tão distantes. Ah, as nostalgias!
Hoje, por aquele lado onde havia a bica, se ingressa na Favela do Heliópolis, uma das maiores de São Paulo. Haverá a santa Edwiges que se desdobrar muito em ouvir os pedidos de seus moradores vizinhos...
Uma outra lembrança forte era visualizar a Praça da Sé da esquina da rua Tabatinguera (em Tupi, "local de muito barro e abandonado"), quando havia uma franca separação com a Praça Clóvis. Era uma espécie de porta pela qual se descobria a leveza da grande cidade. Hoje a Praça da Sé reúne todos os tipos humanos, entre camelôs, desocupados e até turistas.
Pelos mesmos motivos – ou talvez porque passei pelo tempo – não tenho mais o encanto em caminhar lentamente pela Barão de Itapetininga, observando rostos que passavam por mim, dando-me consciência de minha individualidade esse sentimento de aparente separação entre os semelhantes. Aparente, apenas. Mas, o tempo passou. Sinto um ar de indiferença, de angústia, um obstáculo à solidariedade silenciosa que eu pressentia naquelas andanças despreocupadas. Uma cidade circunspeta!
Não perco a esperança, porém. Volto-me, como sempre faço, à serenidade da Catedral da Sé.
Num desses dias de fuga descobri que no seu pórtico, há imagens de animais da fauna brasileira, do tatu, do tucano, da garça e do lagarto. Há figuras em relevo da uva, do cacau, do milho, do café, do maracujá. Um sentido de brasilidade naqueles idos, transcrito nas reentrâncias do igreja que começou a ser construído em 1912 e somente inaugurado em 1954, nas comemorações do 4° centenário de fundação da cidade. E, pelo que se vê da devastação, um alerta à preservação.
Na cripta estão os túmulos de (quase) todos os bispos e cardeais que comandaram a Catedral. Mas, esse local sob o altar-mor não assusta. Ao contrário, acalma. O mistério da vida e da morte que nos desafia lá está. O tempo que nos leva continuamente à grande interrogação: o sentido da existência...
Há dois túmulos que chamam a atenção:
O do cacique Tibiriçá que lá está porque muito ajudou na colonização paulista, aliado dos jesuítas, defensor das terras de Piratininga (aldeia indígena guaianá existente na região de São Paulo, chefiada por ele) contra os ataques de outros indígenas hostis. É proclamado como o primeiro cidadão de São Paulo de Piratininga.
O outro é o de Bartolomeu de Gusmão religioso jesuíta que viveu de 1685 a 1724. Nascido em Santos e falecido em Toledo na Espanha, esquecido, fora um inventor talentoso, tendo construído o primeiro balão (aeróstato) que subiu na atmosfera, impulsionado pela leveza do ar quente. Sua pioneira “máquina de voar” surpreendeu a corte de Dom João V, em Portugal.
Estaria esse túmulo deslocado daquele ambiente?
Pois não é na Catedral de Florença que se instala o túmulo de Guglielmo Marconi, cientista italiano, não religioso, bastante ligado ao fascismo? Estarei enganado? Só que Marconi, para resumir, é o descobridor da transmissão sem fio – do rádio. E os agentes de turismo exaltam os seus feitos na visita a essa Catedral.
Mantinha um certo peso na consciência por me deslumbrar pelas cidades européias. Daí a volta à minha cidade maltratada
Essas relíquias, pouco valorizadas ou desconhecidas são seus elementos extrínsecos. Intrinsecamente há uma leveza naquele ambiente, contrastando com a agitação da cidade lá fora, porque, sobretudo, na sua estrutura tão cheia de entrâncias e ornamentos, de belos vitrais e altares é uma casa de oração. Democrática. Pessoas preocupadas e contritas lá se ajoelham humildes na oração.
Isto tudo me anima a sempre pensar em novos recantos disponíveis, belos, agradáveis, dessa cidade tão sofrida, assustada quanto trabalhadora.
E os há. Basta procurar.

11/07/2009

RAIZES SANCAETANENSES (ii)





A foto, antiga, traz a imagem de um festa no Colégio Bonifácio de Carvaho em 1965









Já disse em outras crônicas que o meu saudosismo não é exacerbado. Como muitos outros, vivi a juventude nos anos 60. E quem viveu é que sabe como é difícil não retornar algumas vezes àqueles dias excepcionais.
Comparo a juventude de então com os dias de hoje. Está claro que a de ontem era mais realizadora, mais ingênua nos objetivos e disso falarei na crônica a seguir. A de hoje está assentada, de regra, na frente de um computador e as batalhas que trava, são os jogos programados, alguns com extrema violência.
Por falar nela, violência, as coisas estão muito difíceis hoje. Nunca aquela frase do personagem Riobaldo de “Grande Sertão – Veredas”, obra prima de Guimarães Rosa, esteve tão oportuna de pronunciar: “viver é muito perigoso”. E, ao viver “a cada dia a gente aprende uma qualidade nova de medo.” (v. publicação neste blog de 23.02.09, GRANDE SER-TÃO.
Daí porque, nesses momentos de angústias, prestam os viventes dos anos 60, por mais que tenham amealhado materialmente, um tributo àqueles idos.
A crônica “Estudantada”, abaixo, foi publicada em julho de 1983 num semanário de São Caetano do Sul, logo em seguida extinto por razões menores que não valem pensar.
Eu a transcrevo parcialmente. Claro que o que ali escrevi refletiu um desses momentos de regresso aos anos 60, com certa nostalgia, porque já então vinha naquele ano de 1983 num processo de exigências pelo forte interesse profissional a que me obrigara e, claro, aliado a compromissos familiares a cumprir.

ESTUDANTADAS (Julho de 1983)

(Quando em itálico texto entre parêntesis, significa atualizações e esclarecimentos)

Como pesa a maturidade!
Com ela o pior dos fardos, tenho para mim, é a consciência da mortalidade.
Muitas vezes me vejo questionando o porquê dessa ou daquela experiência e as dificuldades que a cada dia se colocam, obstáculos que se sucedem infindáveis.
Em muitas ocasiões acordo daquele sonho em que, por alguns momentos, estive com o pé (o pé?) do “outro lado” (viajando por lugares estranhos, levitando sem peso).
Tudo muito estranho, surpreendente.


Ao longo dos anos tenho visto diversos tipos de personalidades. A que mais me chama a atenção – às vezes com uma ponta de inveja – é aquela de velhos colegas, bem situados na vida profissional que apenas raciocinam em cima de números e que conseguem transformar, por exemplo, uma simples fábrica num organismo vivo, num parente muito próximo, numa “pessoa física”.
Um desses, um engenheiro, hoje fazendeiro tranqüilo, quando lhe informei que adquirira um disco de sucessos, comentou apenas: “Você o rodará umas oito ou dez vezes, depois ficará esquecido nalgum canto. Isso é supérfluo.”
Incrível, ele tinha razão (de regra, porque tenho hoje no carro, CDs que vão de Chopin a Ravel, de Beethoven a Rossini, de Elis à melosa Connie Francis e de Maisa a Strauss – tudo dependendo da hora que inspiram uma revisitada).
Serão alienados? Não sei.
Alguns desses, nos tempos da juventude, revelavam um marcante talento poético, sensibilidade. Hoje realizam-se em suplantar a terrível concorrência que nos rodeia. Suas potencialidades promissoras desviaram-se irremediavelmente para o nosso mundo competitivo que não facilita, na média, a reflexão sobre a própria individualidade, a grandeza da condição humana.
Só receio para esses meus amigos, num belo dia, surpresos pelo ócio compulsório, apanhados por esses gritos interiores, certamente que num momento mais difícil desse nosso mundo, terem que assumir a mente vazia, já que de resto, “mente vazia é a habitação do demônio”.
É apenas um risco. Mas, por vezes, olhando ao longe de uma janela qualquer o horizonte poluído, me questiono, incontroladamente, e me vejo nesse mundo enraivecido, nervoso. Que lugar é este?
Eis porque invejo (um pouco) essa categoria de personalidade voltada para fora, prática, ambiciosa, material.
No fundo, lá no fundo, tenho lampejos de encontrar num local isolado qualquer – que graças a Deus ainda existe – com muito sol, mais perto do céu, muitas flores, beija-flores (quem teve preso às mãos esse chumaço chamado beija-flor?) e alentar a opção de uma ociosidade extemporânea, assumida, consciente?
Não sei se conseguirei respostas num tal lugar às minhas indagações frequentes(toda vez que arrisquei assumir um local desses, nas minhas ausências, foi ele depredado pelos inimigos da paz – aqueles que fazem este mundo enraivecido, nervoso!).
Na dúvida, aqui permaneço, aqui sofro, aqui luto, aqui me iludo, aqui me desiludo, aqui exulto, aqui me entristeço.
Porque não há como parar o tempo. E ele passa célere.

Esse meu estado meditativo (de nível colegial, não importa) se sedimentou no passado, nos acertos e erros da juventude.

Muitos não sabem, outros poucos se lembram e alguns insistem em esquecer, mas nossa cidade foi, há 20, 25 anos, na região, quiçá na Grande São Paulo, onde os movimentos estudantis mais se intensificaram.
Nesses movimentos havia acima de tudo, a inocência – não a inocência imbecil como poderão alguns já estar imaginando. Toda atitude idealista é inocente pois que (e quando) desprovida de interesses egoístas.
Por que realizavam os estudantes promoções dificílimas de serem organizadas? Por que os estudantes se uniam numa permanente noite de festas e pebolim? (Os movimentos estudantis não se limitavam a promoções de natureza social e esportivas mas também políticas, combatendo os abusos que os políticos locais praticavam já então com os seus subsídios).
Por que, apesar dessa atividade intensa e interessante, a maior parte desses estudantes conseguiu, em seus estudos, vitórias memoráveis ingressando nas melhores faculdades?
E notem que eram poucas: não existiam essas tantas e tantas escolinhas de direito (minúsculas mesmo!), de engenharia, de medicina. Era a Poli, a São Francisco, a USP, a PUC.
Tudo era conquistado palmo a palmo. Que tempos aqueles!
Quanto olho em minha volta hoje, vejo uma cidade quieta, aposentada, sonolenta.
Não é gratuita a afirmação de que “não se fazem mais estudantes como antigamente”.
Eis porque, meus amigos, quem viveu os primeiros anos da década de 60, na idade estudantil, em São Caetano, deverá ter guardado momentos preciosos e deliciosos. Depois, nunca mais!
Tudo fora um sonho – cujos fragmentos ainda permanecem desenhados na minha mente. Sinto-me feliz por um dia, precisamente naqueles dias, ter vivido em nossa cidade.
Como um sonho colorido, tudo engrenava, tudo fazia sentido e o amor encontrado na face de todos era o perfume, o buquê do dia-a-dia daqueles dias.
Nada há o que lamentar daqueles tempos. O que hoje lamento são os atos, a insensatez após cruzada a linha da maturidade.


Onde estará ou como estará o velho “Bonifácio de Carvalho” de tantas glórias? Onde os memoráveis concursos de oratória, sempre um acontecimento na cidade? Onde as competições (esportivas) entre acadêmicos e colegiais? Onde os “intelectuais” e suas noitadas no Centro Acadêmico? (O Colégio “Bonifácio de Carvalho”, público, um dos melhores da região concentrou a vanguarda dos estudantes de São Caetano / ABC com promoções inesquecíveis, como foram também os “shows de Bossa e Poesia” – tenho certeza que hoje as escolas de um modo geral incentivam o esporte e as promoções culturais, mas tenho a impressão que falta aquele espírito “do tempo”, daquele tempo).

Tudo levado de roldão pelas ondas do passado. Na verdade, o passado, para mim, é algo absolutamente novo (novidade que se renova a cada dia).
Serenamente, da mesma janela, curto um pouco de saudade de todo aquele espaço que os estudantes souberam tão bem criar e cultivar.
Não me perguntem se aqueles “jovens” de antes conservam as mesmas qualidades das décadas passadas. A maturidade, como já fiz ver, provoca transformações.

01/07/2009

TEMPOS




















Uma flor rara que já tive no meu jardim e que se perdeu há décadas. A foto original já perde a nitidez. É ela que revela a passagem do tempo. A mesma foto restaurada pode significar a renovação cotidiana que fazemos nessa nossa vida atribulada e cheia de desafios. Por isso tem a flor das fotos muito a ver com a crônica abaixo e...comigo.



Não é novidade para ninguém que a geração que viveu a juventude nos anos 60 tem saudades de tudo. Circularam há pouco pela internet “reclames” daqueles tempos, produtos famosos que fizeram parte da vida das pessoas e desapareceram, lambretas e músicas que alguns mais saudosistas repõem na “rede” exaltando aqueles tempos únicos. Para uns mais para outros menos, o caso é que tais “recuerdos” mexem com a cabeça ou com o coração.
Eu sou daqueles tempos e acho que vivi, dentro de minhas possibilidades, intensamente. Tudo aquilo era bom demais sem ter consciência disso. E o pior é que ninguém me avisou da beleza daqueles dias de tal modo que me expusesse mais.
Numa crônica que escrevi, publicada em 1983, direi um pouco mais sobre isso tudo.
Não sei, mas parece que a década de 60 esquecendo os episódios políticos – que já analisei em muitas oportunidades, mas não aqui, que não é o veículo apropriado para isso – fora uma espécie de conceito de felicidade, que muitos experimentaram sem serem advertidos ou se darem conta de que tudo aquilo passaria, era provisório, porque o mundo estaria fadado a mudanças partir de um instante, com velocidade máxima.
Vez por outra, por força de minha profissão me afastei ou me afasto desses tempos, enfrentando o chão duro da vida.
Mas, de repente, um som qualquer, um pardal, uma rosa, me levam de volta e eu não posso negar que reflito sobre aquele jovem que fui e que está ainda aqui comigo.
As construções poéticas a seguir, por isso, reconheço meio melancólicas. Foram formuladas nesses momentos de reflexão em que revolvo todas essas experiências vividas com o mistério da vida
.


Passado, presente e futuro

A tarde é cinzenta e fria.
É outono.
Bate forte o vento na janela entreaberta.
Estas tardes melancólicas de sábado
me fazem viajar no tempo.
E anoto quão ele é inexorável
de estação em estação.

Ligo o passado jovem com o presente
Sou eu mesmo, pena que sem mais
projetos mirabolantes, belezas utópicas.
Ilusões de mudar com discursos o mundo.
Nem parece verdade todo esse trajeto!

Que posso dizer disso tudo, afinal?
Que tenho saudade do feito e do não feito?
Contabilizando os trens que passaram
sem que embarcasse?
Pelas oportunidades e o tempo desperdiçados?

Não sei bem o que sinto, na verdade.
Só sei que tal ligação passado-presente
está aqui comigo, n’alma,
e me desperta a cada dia
Quem fui, quem sou e quem serei?

Quem sabe um idealista que queria
com discursos mudar o mundo,
lamentando os trens perdidos
que me levariam...para onde?
Olho do alto da maturidade
serena de hoje e...mais além...
Lá serei uma lembrança remota
cuja presença se perderá no pó...

Inexorável


Melhor tempo

Qual, pois, o melhor tempo...
Estes de hoje
Tecnológicos, metálicos,
Úteis, soberbos
Televisivos...aborrecidos
Poluídos
Suínos gripados
Dos terrores e humores
Estremecidos?

Ou aqueloutros, de antes
Criativos
Ritmos (de vida)
(Mais) confiáveis,
Serenos,
Rimas e poesias
Amáveis?

Respondo: é de cada um
Para mim, de coração,
não há saudades do hoje
Só do ontem até longínquo:
dos meus amores
enternecidos
alegrias, tristezas
levezas...

De tudo
Da vida indo
Até chegar ao agora
Com uma dose de angústia
Do que vi, vivi e vai indo
embora.

Inexorável

21/06/2009

RAIZES SANCAETANENSES (i)














Cenas que retornam: eu bem cabeludo espremido ao lado do professor Tonini




ESCLAREÇO

Todo cronista escreve para ser lido. Assim com o escritor e o poeta. De nada adianta manter poesias e contos na gaveta. Essas criações engavetadas não são obras, são apenas promessas tímidas que permanecem no esquecimento, no pó.
Quanto a mim, muita coisa escrevi entre a inspiração e a transpiração. A transpiração sem a inspiração, digam o que disserem, pode não traduzir a boa obra. Mas, ela tem um mérito: insistindo muito ela pode trazer à tona a inspiração que eclode dum processo mais fundo na mente ou...na alma.
Não haveria muita proximidade entre a intuição e a inspiração?
Nestes últimos anos, por força de minha profissão, a advocacia, que rigorosamente, na maioria das vezes tem por objeto a discussão do vil metal, deixara de lado a crônica, a poesia que sei que não tenho talento – precisaria de muita transpiração para, quem sabe alcançar a inspiração, mas já não tenho mais esse apego - e até porque há uma escassez de veículos de divulgação.
Estava nessa quadra das minhas meditações, fixando-me em leituras, empolgado com “Guerra e Paz” e “Ana Karenina” de Tolstoi, a maioria das obras de Dostoievski, “O Corcunda de Notre Dame” e a sua Esmeralda “deslumbrante”, de Victor Hugo, quando o amigo Caio Martins, a quem conheço há mais de quatro décadas se saiu com essa proposta de blogs.
Pensando em tudo que tinha que recuperar de bom e ruim que já escrevi, acabei me assentando neste, “Temas Livres” – livre, o blog, porque não tem ele um ordenamento preciso na sua temática. É livre, mesmo.
Estava assim posto em sossego, recuperando o já escrito quando, por acaso, na internet encontrei meu nome numa matéria extraída da publicação “Raízes”, editada pela Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, órgão da Municipalidade daquela cidade. Nessa revista, de dezembro de 2008 há uma homenagem ao professor Paulo Tonini que na década de 50 fora meu professor do 1° ano do primário e, nessa turma, estava um outro amigo, Domingos Glenir Santarnecchi, com quem mantive raros contatos nesses anos todos, eventualmente pela internet. Glenir é Presidente da Fundação citada. (Para a matéria completa acessar: www.fpm.org.br/raizes ou no Google buscar “Homenagem ao professor Paulo Tonini”)
Não me encorajara até aqui em relatar qualquer coisa daqueles idos mas eis que Glenir, otimista como sou, creio eu, me instigara a tanto, na sua gentileza remetendo de novo essa matéria, afirmando: “Você já faz parte da história de São Caetano, foto e artigo homenageando o nosso primeiro professor do Grupo Senador Flaquer.”
Não, nem por isso faço parte da história de São Caetano do Sul – a cidade que, a despeito de todos os percalços que enfrentei, me fez viver anos maravilhosos, na década de 60.
A foto da turma de 1952 a que se refere o Glenir, é essa que ilustra a presente crônica. Do lado esquerdo, lá estou eu encolhido bem ao lado do professor Tonini. Glenir está mais à esquerda, ao lado do representante nipônico da turma.
E daí vêm as

Lembranças

Saio de minha casa humilde. Chovera muito. Naquele manhã, até a hora da escola, formara meu escritório numa pequena mesinha com prateleira embaixo. Catei todos os papeis do armário da sala e me fiz escriturário, sonhando em me ver num escritório.
Tempos de humildade, vida modesta e de felicidade, aquela sentimento de paz que se dá nas crianças quando em sua volta predomina a normalidade, o dia seguinte sem sobressaltos. Pois não fora uma surpresa inesquecível conviver com um quati? O assassinato doloroso do leitãozinho que morreu com os olhos fixados nos meus? (v. crônica “Animais (zinhos) e Bichos” de abril de 2009). E com o “pinguim”, o cachorro que só faltava falar e que morreria lentamente, agonizante, sem que desconfiássemos que poderia ter sido envenenado? (naqueles tempos precários de conhecimento e alternativas!). De comprar aquelas balas com figurinhas enroladas, torcendo para que viesse alguma carimbada para ir preenchendo o álbum ou trocar por alguma outra valiosa com algum colecionador? E o aprender a andar de bicicleta num terreno do outro lado do rio Tamanduateí, na pequena “gazzele”, aquela marca italiana única? E o ato da primeira comunhão, assíduo no catecismo, ameaçado havia poucos dias antes, pela beata que, categórica afirmara com dedo em riste que se eu não soubesse recitar o “ato de contrição”, o “credo” eu seria excluído do grupo? Um terror, impensável: “mea culpa, mea maxima culpa.”
No treino com a hóstia, ela grudou entre o céu da boca e os dentes. Ao ser informado, o padre beócio fez graça perante o grupo. Envergonhado, tive vontade de ir embora, mas minha timidez não permitia um tal ato extremo e justo.
Na confissão o padre perguntou a mim e a todos se tínhamos praticado “coisas más”. Só muito depois entenderia o que quisera o beócio sob a sombra do confessionário obscurecido significar.
Na volta da Matriz velha de São Caetano do Sul, o dia de comunhão fora uma festa. Bolos e guaraná para os vizinhos e para a molecada
À tarde choveu e lá estava eu tacando o pé na lama e na água que corria nas guias havia pouco colocadas.

No primeiro dia de aula, como muitas vezes, meu sapato atolara no barro. Ando alguns quilômetros até o Grupo “Senador Flaquer”, o primeiro de São Caetano, entro numa sala arejada, pintada na cor creme, cortinas da mesma cor e me assento numa carteira do lado direito, me angustio com o que advirá e me surpreendo com a chegada de um professor jovem acompanhado do diretor da escola para nos dar as boas vindas. O professor Paulo Tonini já apresentava sinais de calvície aguçando seu ar austero.
Era um daqueles sujeitos heroicos que se depara com um bando de moleques de seis ou sete anos e se propõem a alfabetizá-los.

Primeira lição, mostra a figura de um tatu no livrinho fino, de capa azul: “Eu vejo um tatu, tatu, ta ta”:
- Veja, esta é a letra “t”. Vocês colocam o “a” e vira “ta”. Façam o mesmo colocando o “u” e vira “tu”. E ai “ta” e “tu” formam “tatu”.

Ele tinha um jeito muito próprio de conter a algazarra. Dava tabefes leves na nuca dos mais afoitos. Eu mesmo levei um porque ele me confundiu com um outro moleque que fizera qualquer coisa que o desagradou. Fiquei vermelho até quase explodir, porque eu era silencioso e aplicado.
No dia da fotografia da classe, alguns meses depois, me aperto ao seu lado, com aquele meu cabelão farto que até hoje sobrevive intacto, um contraste com sua careca que vinha prosperando.

- Meu Deus, por onde anda essa turma toda?

Esses tempos remotos que se perdem e só revivem por provocação, como se deu, e o esforço em se unirem resíduos encontrados nos recantos insondáveis da memória.

No segundo ano, a professora era linda, dona Denir, talvez por não usar qualquer pintura facial. Ela faltava muito. E quando faltava vinham aquelas substitutas que julgava insuportáveis. Injustiçadas. Era, na verdade, a contrariedade da ausência da titular que omitia sua beleza naquele dia. Já no pátio, ao saber da falta da professora, me sentia mal (ou fingia) para tentar fugir da aula. Mas, não havia jeito e lá ia eu para o sacrifício com a alegada dor de barriga ou não.

Não posso deixar em branco o dia do suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. O diretor da escola, professor Edson adentrou às salas de aula informando emocionado que o presidente Getúlio Vargas havia morrido. Não havia ainda detalhes do acontecido. Na sua emoção, vertendo lágrimas, por ato próprio, liberou os alunos. Ele era de uma geração que certamente se habituara com Getúlio no poder desde a década de 30.
A arruaça que se seguiu ao anúncio da dispensa fora incompatível com a solenidade do momento. Mas, quem era mesmo Getúlio?

Nas séries seguintes fui excelente aluno. Recebi livros das professoras (Carmem e Olga Faria) por não ter dado nenhuma falta durante todo o ano ou por aplicação.
No dia do diploma, na festa, um vexame. Minha mãe, tão querida, não quis que eu usasse a velha calça comprida e lá fui eu de calça curta. Não havia como me esconder naquela confusão toda da festa.

Quando me lembro desses dias, com tantas coisas mais para contar, caio em emoção por essas figuras maravilhosas que encontrei na minha infância e que neste instante revolvem com tanta doçura minha memória.

Mais à frente, do ginasial em diante, tornara-me péssimo aluno.
Mesmo assim, comecei a escrever para pequeno jornal de São Caetano, “A Tribuna”. Aquela vontade de expor ideias mesmo sem talento e no mau português.

Dei-me conta do prefeito Anacleto Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, vindo Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.

Anos depois, no segundo mandato, por programação do referido jornal que capengava me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou recebido no gabinete. Com aquele seu jeito impaciente, irreverente me encara, levanta-se da mesa de trabalho sai apressado e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero News Seller ("Diário do Grande ABC") e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para o jornal por pouco tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança.

Aqui há que se fazer uma ligação com a crônica que escrevi sob o título “Amarguras e ternuras contidas” em maio passado.

Campanella mais tarde ficaria muito doente e pereceria. Vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo. Mas, jamais poderei esquecer esse gesto que até hoje me surpreende e me faz dele lembrar com carinho. Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Aquele gesto ficou.

A partir daquí há um lapso de tempo que talvez um dia eu conte.

14/06/2009

A UNIVERSIDADE DE COIMBRA - PORTUGAL







Eu e D. Diniz (Roupa larga e vento frio)









Esta crônica tem ligação estreita com aquela inserida em 30.05.2009, "Largo de São Francisco: A Academia de São Paulo".


Claro que, pela minha formação jurídica, a presença em Portugal exige uma visita à cidade de Coimbra. Lá está desde 1537 a Universidade de Coimbra, fundada em 1290 (nela incluída a Faculdade de Direito) uma instituição pouco conhecida para quem vive deste lado do Atlântico, a despeito de seu conceito, tradições, incluindo o uso da capa preta pelos seus alunos. Símbolos.
Duas horas e pouco de ônibus ao norte da bela e próspera Lisboa e se chega à rodoviária de Coimbra, meio bagunçada, não muito bonita. Paro no botequim e arrisco um café a peso de euro: sofrível!
A impressão inicial de Coimbra não é muito satisfatória, talvez porque o tempo estivesse fechado, um pouco frio, realçando o cinza escurecido e a antiguidade dos prédios. Ruas movimentadas e não muito asseadas.
Um quilômetro na avenida e se alcança o ponto do auto-car (ônibus) que nas suas voltas leva até o cume da colina, onde se situa a Universidade.
Durante a espera, uma senhora portuguesa espontaneamente puxa conversa ao perceber o sotaque brasileiro. Tinha um filho trabalhando em São Paulo e me surpreende com a pergunta: “o que fazem nesta terra caquética?” Percebendo surpresa ela explica que tudo por ali era velho, estagnado e que pouco havia a fazer. Eu procurei entender sua angústia. Estariam no Brasil os grandes desafios e o muito a realizar?
Chega-se no alto, na Universidade. Dou de cara com uma frase típica de grafiteiro bem desenhada num muro próximo: “Isto aqui já não é mais aquilo que nunca foi. Imbecis.” Não excluo esse desabafo de algum brasileiro gaiato, entre os que lá estudam. Naquele dia frio, os que estavam no campus, todos trajavam as tais capas pretas.
A Universidade de Coimbra é composta de prédios realmente muito antigos. Suas instalações internas como não poderia ser diferente, refletem esse estágio de antiguidade, mas com seus encantos, aquelas vibrações meio sacras que provém dos séculos de ensino e cultura.
Bem na frente da Universidade, a estátua de dom Dinis de quem sou fã. Rei de Portugal de 1279 a 1325, foi o fundador da instituição, de modo a evitar que seus súditos fossem estudar em outros países (a instituição das faculdades de Direito no Brasil, tivera motivação semelhante: evitar que os estudantes se formassem em Coimbra). Visionário, dom Dinis incentivou a exploração de pinhais em Leiria que seriam usados na construção das embarcações que explorariam os mares, mais tarde.
Para descer do cume da cidade, bastara valer-se de uma ruela ladeira abaixo e observar nos detalhes quão velha a cidade.
Lá embaixo, no meio do caminho, foi agradável uma olhada nas ruas comerciais. Lembrancinhas cuidadosamente selecionadas porque a moeda é o euro.
Já chegando a hora de voltar para a rodoviária, vêm-me à mente uns acordes muito conhecidos entre nós, de linda música portuguesa que fala de Coimbra, cujos autores são Raul Ferrão e José Galhardo:

Coimbra do Choupal
Ainda és capital
Do amor em Portugal
Ainda.
Coimbra onde uma vez
Com lágrimas se fez
A história desta Inês
Tão linda
.


Choupal é a denominação de um bosque da cidade de Coimbra / Choupo = Álamo)

E “a história desta Inês tão linda?” Dos amores impossíveis e trágicos...
Em meados dos anos 1300, dom Pedro, herdeiro do trono português, apaixona-se por uma prima distante, Inês de Castro, encantado pela sua beleza. Nasce um romance adúltero. Dessa relação, Inês dá a luz a três filhos de dom Pedro. Os irmãos de Inês passam a influenciar dom Pedro. Dom Afonso IV, pai de dom Pedro, decide autorizar o assassinato de Inês de Castro, de modo a cortar a influência que exercia sobre ele, além de evitar que algum dos seus filhos aspirasse a futura sucessão de dom Pedro.
Naqueles tempos, Inês passara a ser sinônimo de prostituta.
Foi ela degolada na frente dos filhos. A revolta de dom Pedro fora imensa contra o pai.
Ao assumir o trono, executou os assassinos de Inês e determinou que o corpo da amada, com grande pompa, fosse sepultado em local (Mosteiro de Alcobaça) que asseguraria ficar ao seu lado quando ele mesmo morresse. Tal se deu em 1367.
Eis como se refere Luis de Camões em “Os Lusíadas” sobre Inês de Castro:

Estavas, linda Inês, posta em sossego.
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego.
Que a fortuna não deixa durar muito (...)


E eu encerro estas impressões, com alguma emoção, valendo-me de mais um trecho da música “Coimbra”:

“O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
SAUDADE”.