21/06/2009

RAIZES SANCAETANENSES (i)














Cenas que retornam: eu bem cabeludo espremido ao lado do professor Tonini




ESCLAREÇO

Todo cronista escreve para ser lido. Assim com o escritor e o poeta. De nada adianta manter poesias e contos na gaveta. Essas criações engavetadas não são obras, são apenas promessas tímidas que permanecem no esquecimento, no pó.
Quanto a mim, muita coisa escrevi entre a inspiração e a transpiração. A transpiração sem a inspiração, digam o que disserem, pode não traduzir a boa obra. Mas, ela tem um mérito: insistindo muito ela pode trazer à tona a inspiração que eclode dum processo mais fundo na mente ou...na alma.
Não haveria muita proximidade entre a intuição e a inspiração?
Nestes últimos anos, por força de minha profissão, a advocacia, que rigorosamente, na maioria das vezes tem por objeto a discussão do vil metal, deixara de lado a crônica, a poesia que sei que não tenho talento – precisaria de muita transpiração para, quem sabe alcançar a inspiração, mas já não tenho mais esse apego - e até porque há uma escassez de veículos de divulgação.
Estava nessa quadra das minhas meditações, fixando-me em leituras, empolgado com “Guerra e Paz” e “Ana Karenina” de Tolstoi, a maioria das obras de Dostoievski, “O Corcunda de Notre Dame” e a sua Esmeralda “deslumbrante”, de Victor Hugo, quando o amigo Caio Martins, a quem conheço há mais de quatro décadas se saiu com essa proposta de blogs.
Pensando em tudo que tinha que recuperar de bom e ruim que já escrevi, acabei me assentando neste, “Temas Livres” – livre, o blog, porque não tem ele um ordenamento preciso na sua temática. É livre, mesmo.
Estava assim posto em sossego, recuperando o já escrito quando, por acaso, na internet encontrei meu nome numa matéria extraída da publicação “Raízes”, editada pela Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, órgão da Municipalidade daquela cidade. Nessa revista, de dezembro de 2008 há uma homenagem ao professor Paulo Tonini que na década de 50 fora meu professor do 1° ano do primário e, nessa turma, estava um outro amigo, Domingos Glenir Santarnecchi, com quem mantive raros contatos nesses anos todos, eventualmente pela internet. Glenir é Presidente da Fundação citada. (Para a matéria completa acessar: www.fpm.org.br/raizes ou no Google buscar “Homenagem ao professor Paulo Tonini”)
Não me encorajara até aqui em relatar qualquer coisa daqueles idos mas eis que Glenir, otimista como sou, creio eu, me instigara a tanto, na sua gentileza remetendo de novo essa matéria, afirmando: “Você já faz parte da história de São Caetano, foto e artigo homenageando o nosso primeiro professor do Grupo Senador Flaquer.”
Não, nem por isso faço parte da história de São Caetano do Sul – a cidade que, a despeito de todos os percalços que enfrentei, me fez viver anos maravilhosos, na década de 60.
A foto da turma de 1952 a que se refere o Glenir, é essa que ilustra a presente crônica. Do lado esquerdo, lá estou eu encolhido bem ao lado do professor Tonini. Glenir está mais à esquerda, ao lado do representante nipônico da turma.
E daí vêm as

Lembranças

Saio de minha casa humilde. Chovera muito. Naquele manhã, até a hora da escola, formara meu escritório numa pequena mesinha com prateleira embaixo. Catei todos os papeis do armário da sala e me fiz escriturário, sonhando em me ver num escritório.
Tempos de humildade, vida modesta e de felicidade, aquela sentimento de paz que se dá nas crianças quando em sua volta predomina a normalidade, o dia seguinte sem sobressaltos. Pois não fora uma surpresa inesquecível conviver com um quati? O assassinato doloroso do leitãozinho que morreu com os olhos fixados nos meus? (v. crônica “Animais (zinhos) e Bichos” de abril de 2009). E com o “pinguim”, o cachorro que só faltava falar e que morreria lentamente, agonizante, sem que desconfiássemos que poderia ter sido envenenado? (naqueles tempos precários de conhecimento e alternativas!). De comprar aquelas balas com figurinhas enroladas, torcendo para que viesse alguma carimbada para ir preenchendo o álbum ou trocar por alguma outra valiosa com algum colecionador? E o aprender a andar de bicicleta num terreno do outro lado do rio Tamanduateí, na pequena “gazzele”, aquela marca italiana única? E o ato da primeira comunhão, assíduo no catecismo, ameaçado havia poucos dias antes, pela beata que, categórica afirmara com dedo em riste que se eu não soubesse recitar o “ato de contrição”, o “credo” eu seria excluído do grupo? Um terror, impensável: “mea culpa, mea maxima culpa.”
No treino com a hóstia, ela grudou entre o céu da boca e os dentes. Ao ser informado, o padre beócio fez graça perante o grupo. Envergonhado, tive vontade de ir embora, mas minha timidez não permitia um tal ato extremo e justo.
Na confissão o padre perguntou a mim e a todos se tínhamos praticado “coisas más”. Só muito depois entenderia o que quisera o beócio sob a sombra do confessionário obscurecido significar.
Na volta da Matriz velha de São Caetano do Sul, o dia de comunhão fora uma festa. Bolos e guaraná para os vizinhos e para a molecada
À tarde choveu e lá estava eu tacando o pé na lama e na água que corria nas guias havia pouco colocadas.

No primeiro dia de aula, como muitas vezes, meu sapato atolara no barro. Ando alguns quilômetros até o Grupo “Senador Flaquer”, o primeiro de São Caetano, entro numa sala arejada, pintada na cor creme, cortinas da mesma cor e me assento numa carteira do lado direito, me angustio com o que advirá e me surpreendo com a chegada de um professor jovem acompanhado do diretor da escola para nos dar as boas vindas. O professor Paulo Tonini já apresentava sinais de calvície aguçando seu ar austero.
Era um daqueles sujeitos heroicos que se depara com um bando de moleques de seis ou sete anos e se propõem a alfabetizá-los.

Primeira lição, mostra a figura de um tatu no livrinho fino, de capa azul: “Eu vejo um tatu, tatu, ta ta”:
- Veja, esta é a letra “t”. Vocês colocam o “a” e vira “ta”. Façam o mesmo colocando o “u” e vira “tu”. E ai “ta” e “tu” formam “tatu”.

Ele tinha um jeito muito próprio de conter a algazarra. Dava tabefes leves na nuca dos mais afoitos. Eu mesmo levei um porque ele me confundiu com um outro moleque que fizera qualquer coisa que o desagradou. Fiquei vermelho até quase explodir, porque eu era silencioso e aplicado.
No dia da fotografia da classe, alguns meses depois, me aperto ao seu lado, com aquele meu cabelão farto que até hoje sobrevive intacto, um contraste com sua careca que vinha prosperando.

- Meu Deus, por onde anda essa turma toda?

Esses tempos remotos que se perdem e só revivem por provocação, como se deu, e o esforço em se unirem resíduos encontrados nos recantos insondáveis da memória.

No segundo ano, a professora era linda, dona Denir, talvez por não usar qualquer pintura facial. Ela faltava muito. E quando faltava vinham aquelas substitutas que julgava insuportáveis. Injustiçadas. Era, na verdade, a contrariedade da ausência da titular que omitia sua beleza naquele dia. Já no pátio, ao saber da falta da professora, me sentia mal (ou fingia) para tentar fugir da aula. Mas, não havia jeito e lá ia eu para o sacrifício com a alegada dor de barriga ou não.

Não posso deixar em branco o dia do suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. O diretor da escola, professor Edson adentrou às salas de aula informando emocionado que o presidente Getúlio Vargas havia morrido. Não havia ainda detalhes do acontecido. Na sua emoção, vertendo lágrimas, por ato próprio, liberou os alunos. Ele era de uma geração que certamente se habituara com Getúlio no poder desde a década de 30.
A arruaça que se seguiu ao anúncio da dispensa fora incompatível com a solenidade do momento. Mas, quem era mesmo Getúlio?

Nas séries seguintes fui excelente aluno. Recebi livros das professoras (Carmem e Olga Faria) por não ter dado nenhuma falta durante todo o ano ou por aplicação.
No dia do diploma, na festa, um vexame. Minha mãe, tão querida, não quis que eu usasse a velha calça comprida e lá fui eu de calça curta. Não havia como me esconder naquela confusão toda da festa.

Quando me lembro desses dias, com tantas coisas mais para contar, caio em emoção por essas figuras maravilhosas que encontrei na minha infância e que neste instante revolvem com tanta doçura minha memória.

Mais à frente, do ginasial em diante, tornara-me péssimo aluno.
Mesmo assim, comecei a escrever para pequeno jornal de São Caetano, “A Tribuna”. Aquela vontade de expor ideias mesmo sem talento e no mau português.

Dei-me conta do prefeito Anacleto Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, vindo Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.

Anos depois, no segundo mandato, por programação do referido jornal que capengava me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou recebido no gabinete. Com aquele seu jeito impaciente, irreverente me encara, levanta-se da mesa de trabalho sai apressado e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero News Seller ("Diário do Grande ABC") e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para o jornal por pouco tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança.

Aqui há que se fazer uma ligação com a crônica que escrevi sob o título “Amarguras e ternuras contidas” em maio passado.

Campanella mais tarde ficaria muito doente e pereceria. Vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo. Mas, jamais poderei esquecer esse gesto que até hoje me surpreende e me faz dele lembrar com carinho. Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Aquele gesto ficou.

A partir daquí há um lapso de tempo que talvez um dia eu conte.

14/06/2009

A UNIVERSIDADE DE COIMBRA - PORTUGAL







Eu e D. Diniz (Roupa larga e vento frio)









Esta crônica tem ligação estreita com aquela inserida em 30.05.2009, "Largo de São Francisco: A Academia de São Paulo".


Claro que, pela minha formação jurídica, a presença em Portugal exige uma visita à cidade de Coimbra. Lá está desde 1537 a Universidade de Coimbra, fundada em 1290 (nela incluída a Faculdade de Direito) uma instituição pouco conhecida para quem vive deste lado do Atlântico, a despeito de seu conceito, tradições, incluindo o uso da capa preta pelos seus alunos. Símbolos.
Duas horas e pouco de ônibus ao norte da bela e próspera Lisboa e se chega à rodoviária de Coimbra, meio bagunçada, não muito bonita. Paro no botequim e arrisco um café a peso de euro: sofrível!
A impressão inicial de Coimbra não é muito satisfatória, talvez porque o tempo estivesse fechado, um pouco frio, realçando o cinza escurecido e a antiguidade dos prédios. Ruas movimentadas e não muito asseadas.
Um quilômetro na avenida e se alcança o ponto do auto-car (ônibus) que nas suas voltas leva até o cume da colina, onde se situa a Universidade.
Durante a espera, uma senhora portuguesa espontaneamente puxa conversa ao perceber o sotaque brasileiro. Tinha um filho trabalhando em São Paulo e me surpreende com a pergunta: “o que fazem nesta terra caquética?” Percebendo surpresa ela explica que tudo por ali era velho, estagnado e que pouco havia a fazer. Eu procurei entender sua angústia. Estariam no Brasil os grandes desafios e o muito a realizar?
Chega-se no alto, na Universidade. Dou de cara com uma frase típica de grafiteiro bem desenhada num muro próximo: “Isto aqui já não é mais aquilo que nunca foi. Imbecis.” Não excluo esse desabafo de algum brasileiro gaiato, entre os que lá estudam. Naquele dia frio, os que estavam no campus, todos trajavam as tais capas pretas.
A Universidade de Coimbra é composta de prédios realmente muito antigos. Suas instalações internas como não poderia ser diferente, refletem esse estágio de antiguidade, mas com seus encantos, aquelas vibrações meio sacras que provém dos séculos de ensino e cultura.
Bem na frente da Universidade, a estátua de dom Dinis de quem sou fã. Rei de Portugal de 1279 a 1325, foi o fundador da instituição, de modo a evitar que seus súditos fossem estudar em outros países (a instituição das faculdades de Direito no Brasil, tivera motivação semelhante: evitar que os estudantes se formassem em Coimbra). Visionário, dom Dinis incentivou a exploração de pinhais em Leiria que seriam usados na construção das embarcações que explorariam os mares, mais tarde.
Para descer do cume da cidade, bastara valer-se de uma ruela ladeira abaixo e observar nos detalhes quão velha a cidade.
Lá embaixo, no meio do caminho, foi agradável uma olhada nas ruas comerciais. Lembrancinhas cuidadosamente selecionadas porque a moeda é o euro.
Já chegando a hora de voltar para a rodoviária, vêm-me à mente uns acordes muito conhecidos entre nós, de linda música portuguesa que fala de Coimbra, cujos autores são Raul Ferrão e José Galhardo:

Coimbra do Choupal
Ainda és capital
Do amor em Portugal
Ainda.
Coimbra onde uma vez
Com lágrimas se fez
A história desta Inês
Tão linda
.


Choupal é a denominação de um bosque da cidade de Coimbra / Choupo = Álamo)

E “a história desta Inês tão linda?” Dos amores impossíveis e trágicos...
Em meados dos anos 1300, dom Pedro, herdeiro do trono português, apaixona-se por uma prima distante, Inês de Castro, encantado pela sua beleza. Nasce um romance adúltero. Dessa relação, Inês dá a luz a três filhos de dom Pedro. Os irmãos de Inês passam a influenciar dom Pedro. Dom Afonso IV, pai de dom Pedro, decide autorizar o assassinato de Inês de Castro, de modo a cortar a influência que exercia sobre ele, além de evitar que algum dos seus filhos aspirasse a futura sucessão de dom Pedro.
Naqueles tempos, Inês passara a ser sinônimo de prostituta.
Foi ela degolada na frente dos filhos. A revolta de dom Pedro fora imensa contra o pai.
Ao assumir o trono, executou os assassinos de Inês e determinou que o corpo da amada, com grande pompa, fosse sepultado em local (Mosteiro de Alcobaça) que asseguraria ficar ao seu lado quando ele mesmo morresse. Tal se deu em 1367.
Eis como se refere Luis de Camões em “Os Lusíadas” sobre Inês de Castro:

Estavas, linda Inês, posta em sossego.
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego.
Que a fortuna não deixa durar muito (...)


E eu encerro estas impressões, com alguma emoção, valendo-me de mais um trecho da música “Coimbra”:

“O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
SAUDADE”.

07/06/2009

ECOLÓGICOS

Explicações

Sou um otimista por opção pessoal, “para mim tudo está ótimo”, repito, mesmo nos reveses próprios de minha profissão. O baque de hoje será, logo no dia seguinte, a inspiração para (tentar) a reversão do insucesso ou minimizar seus efeitos.
Tem sido assim há anos. Do ponto de vista externo, porém, isto é, o que se passa à minha volta e no mundo, há momentos que meu desânimo beira a depressão, tamanhas as cenas de violência, de abandono e o desrespeito que diariamente se conhece em relação ao meio ambiente.
Pois bem, nessa visão “externa” sou pessimista. Na questão ambiental estamos vivendo uma situação limite à beira do caos.
Há alguns anos, num desses delírios e comoção diante da devastação crescente da Amazônia e da poluição global, escrevi breve texto ao qual denominei “oração anti-insensatez”.
Amigos velhos que o leram, o julgaram pessimista e apelativo demais. E até piegas. Invoquei a intervenção de Deus – mas, onde estará Deus no seu mistério ao assistir esses desvarios? – ao refletir naquela noite clara, encarando o universo que sempre humilha minha “inteligência” menor.
Hoje, passados esses anos, obrigo-me a mais uma vez transmitir minha “oração”, mais do que isso, um “clamor ecológico”, pouco importando se emotiva, pessimista ou piegas. Agora mais do que nunca.

Depois dela, duas poesias também invocando temas da mesma natureza.



Clamor ecológico

Com profunda dor assisto a destruição das matas que, derribadas pelo fogo ou serra, arma maldita, viram pasto ou deserto.
Também a odiosa valoração da árvore pelo quantum em vil metal.
Com profunda amargura vejo animais desrespeitados, apreendidos mortos, covardemente caçados como esporte, extintos.
Para mim, carne não é alimento.
Com terrível preocupação vejo os rios e lagos serem poluídos e mesmo mortos,
sem vida, sem peixes.
Com desencanto constato os oceanos imundos, ameaçados, despejo de todos os detritos e até óleo de navios tanques, dirigidos por facínoras.
Com perplexidade apreendo que a água que se bebe, elemento vital, pode ser a mesma de onde se despejam detritos incompatíveis e sujeita à escassez.
Com sofrimento sinto cada vez mais o ar poluído, nuvens sórdidas que escondem o sol, tremenda insanidade, descaso com as atuais e ameaça às futuras gerações.
Porque, meu Deus
Amo a mata cerrada como reduto de paz, guardiã de tanta vida, de borboletas, de flores, mundo dos macacos, pássaros, serpentes...
Tenho profunda ternura pelos animais, ondas de vida que merecem respeito
e acolhimento.
Tenho saudades das águas límpidas dos rios e lagos onde podia banhar os pés sem medo de contaminação.
A imensidão dos mares é um ponto de reflexão, pela sua harmonia sinfônica e porque neles habitam deuses da criação...como nas matas.
Por tudo isso compreendo o mundo mais
triste
tenso
quente
violento
pobre
sofrido
doente
esfomeado
sedento
Desrespeitada, a Terra reage com terremotos, enchentes, tornados, desertos irrecuperáveis, doenças, destruição. Causa e efeito.
Caio em oração, implorando indignado que nós todos mudemos nossa mente, atitudes, lembrando sempre que, nestas plagas antes paradisíacas, seus recursos não se renovam com a velocidade de sua terrível destruição.
Haveremos um dia que deixá-las, até mesmo abruptamente, na nossa hora, ficando ao “deus dará” todas as nossas riquezas e misérias pessoais.
Por isso, deixemos nossa marca positiva de reconstrução, de incentivo, de preservação dessas riquezas que (ainda) restam como dádivas e que ficarão (ou deveriam) para nossos descendentes.
Comecemos partir de hoje, de agora.
Eu peço, eu imploro. Com esperança de tempos melhores. Amém.


Orquídeas e beija-flores

Eis-me aqui amargurado e pensante
Mal respirando nesse clima insano,
Tudo que exala desse meio paulista urbano
Envolto na fuligem dessas chaminés rasantes.

Que mundo é este de dura resistência!
Que mundo é este de intensa incerteza
Que mesmo à reação da pródiga natureza,
Ampliam-se os desertos por abusada inconsequência?

Que mundo é este de ganância e escuridão,
Que princípios postos pouco ou nada valem?
Se de tudo que inspira sucumbe, porém,
Nessa sanha caótica de destruição?

Reajo impotente qual um conformado perdedor
Sonhando acordado, no tráfego, quietamente,
Vendo desabrochar orquídeas no fundo da mente,
Visitadas por beija-flores em doce torpor.

E assim, no interior de minh’alma triste
Revela-se que tais doces criaturas, parecem,
De Deus, são o preferido passatempo, uma prece,
E somente por essa dúvida a esperança persiste.

Esses instantes de valor e Paz perdem-se na poluição,
Sobressaltado não pela água límpida irradiando o sol,
Mas pela barulhenta abertura do farol,
Cujo verde não é o das matas que clamam proteção.


Templos violados

Pelos recantos fechados da floresta,
Atuam Espíritos cultivando flores
O portal místico decomposto em cores,
Pelo sol enfeitado por estreitas frestas.

Um Templo sob azul e límpida nascente
Permitia saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.

E assim, naquele ambiente purificado
Buscavam consolo e amor, desiludidos
Palavras interiores de paz, esquecidos,
Ali o filósofo apreendia a magia do iniciado.

Haveis que instrumento de trêmulo corte,
Trepidando fio, avançando duro e feroz,
Fez do Templo nada, senão estalo atroz
Num dia em que ao céu clamou a morte.

Que delírio insano ocorrera, porém?
Na inscrição berrante anunciava tal torpeza:
"O progresso derrotara, forte, a natureza"
Restara então, do Templo, nada mais que desdém".

30/05/2009

LARGO DE SÃO FRANCISCO. A ACADEMIA DE SÃO PAULO



"Beijo eterno"
Foto: Neuza Guerreiro de Carvalho (www.vovoneuza.blogspot.com)


Há um encanto no Largo de São Francisco mesmo que mau cuidado. Por mais exausto que esteja nessa “paulicéia atribulada”, não consigo me livrar da imagem da Faculdade de Direito bem ali à frente, para mim a figura de uma esfinge. Mau estudante, não consegui resolver seu “enigma”, o vestibular e por ela fui “devorado”.
Chego até a igrejinha do Convento de São Francisco, fundado em 1647 ao lado direito da Faculdade e lá, surpreso, descubro que as primeiras aulas foram ministradas em sua pequena sacristia, a partir de março de 1828.
Avanço nos dados históricos: dom Pedro I instituiu os cursos jurídicos no Brasil em 11 de agosto de 1827, com faculdades em Olinda e São Paulo. Tal se deu porque não havia opção de formação de bacharéis no país, apenas em Portugal, na famosa Universidade de Coimbra, fundada por dom Diniz, rei de Portugal, em 1290. Falarei sobre ela numa próxima crônica.
A Faculdade de São Paulo, foi instalada no recinto do Convento de São Francisco, que contava com instalações adaptáveis e biblioteca. Somente em 1933 o prédio do antigo convento foi demolido. Foram encontrados esqueletos humanos misturados à argamassa em suas paredes, o que pode significar que serviram elas de túmulo para os religiosos.
O novo prédio da Faculdade ficou pronto em 1938, mas de modo completo somente 12 anos depois.
Apesar dos esqueletos encontrados nas paredes do prédio demolido do Convento, não há fantasmas na Faculdade. No seu ambiente, porém, de tantas tradições, de tantos vultos que lá estudaram e se formaram, sempre pressinto um sentido solene em seu ambiente.
Derrubaram-se as paredes, mas ficaram as vibrações, o “espírito” do lugar.
Quase defronte à entrada principal da Faculdade, um contraste a esse sentimento captado no seu interior, encontra-se a irreverente escultura do sueco William Zadig, “Idílio” ou “O beijo eterno”, na qual amantes nus, representando um francês e uma índia se enlaçam num ósculo vibrante e sensual. Fora uma homenagem do Centro Acadêmico XI de Agosto a Olavo Bilac que falecera em 1918. Essa escultura foi instalada em locais diferentes de São Paulo, sempre removida porque considerada uma “imoralidade”. Permaneceu, por tal censura absurda, adormecida por muito tempo em depósitos da Prefeitura até que, por injunção dos estudantes da própria Faculdade, foi ela instalada no Largo de São Francisco e lá permanece firme, uma homenagem ao amor e à poesia sensual de Olavo Bilac. O “Beijo eterno” do poeta tem esta estrofe final:

Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!


Afasto-me do “Beijo eterno”, a escultura que encontrou a sua “liberdade”, atravesso o Largo e saio pela rua Líbero Badaró nos rumos do Largo de São Bento.
Penso nessa figura polêmica que deu nome à rua: Líbero Badaró.
Teve ele vínculos com a Academia, como professor de Geometria do curso preparatório para ingresso na Faculdade de Direito. Dedicou-se, também, à medicina e ao jornalismo. O italiano Giovanni Batista Badaró um liberal, incluiu no seu nome o apelido “Líbero” – que não tem sentido preciso no português, salvo na linguagem futebolística -, resultando no nome Líbero Badaró. Fundou o jornal "O Observador Constitucional" que propagava as idéias liberais, antimonárquicas e antiabsolutistas. Com esses ideais e campanhas, obteve inimigos poderosos. Foi vítima de um atentado a tiros nas proximidades de sua residência, nunca esclarecido, que se deu em 20 de novembro de 1830, e que resultaria na sua morte horas depois, momento em que teria dito a frase célebre: "Morre um liberal, mas não morre a Liberdade".
Liberdade, liberdade!
A rua de São José onde morava passou a chamar-se Líbero Badaró.
Meio nostálgico por todas essas impressões, confortei-me em lembrar que também estudei num convento que não perdeu ainda sua forma original, a PUC de São Paulo. E como foi difícil obter o diploma naquela escola tão rigorosa, naqueles dias.
Quantas vezes, beirando a madrugada, depois dos exames orais descia apressado a rua Monte Alegre, Perdizes, garoa fria no rosto, encharcado correndo para o último trem na Barra Funda. E nas noites quentes, tranquilas, já com meu Fusca vermelho, uma pausa na Xavier de Toledo, na leiteria, uns petiscos e uma olhada no Mappin que já se foi.
São Paulo da garoa, hoje dos congestionamentos e da poluição, mas repleta de reentrâncias e muitos segredos a serem revelados. Aqueles tempos mais doces que amargos...

22/05/2009

AMARGURAS E TERNURAS CONTIDAS











VÍCIO DOENÇA

Uma sensação de alívio. Aquele dia estava salvo. Tudo ficaria mais tranqüilo. O olhar para os colegas de escola seria mais confiante, haveria mais ânimo para enfrentar algumas aulas monótonas e, no geral, um fim de noite mais tranquilo.
A angustia ao anoitecer, era diária. Chegaria ele sóbrio ou embriagado?
Se embriagado, a angústia se converteria em constrangimento e insegurança.
A saída de casa seria envergonhada, não conseguiria sorrir porque tinha a sensação de que seus olhos, se o fizesse, revelariam seus segredos e sua amargura.
Por essa permanente incerteza, os amigos deveriam ser discretamente mantidos à distância de casa. Para qualquer adolescente, um pai não casualmente embriagado dificilmente não se constitui causa de alguns traumas.
Às vezes, uma exagerada reação agressiva com os amigos, momentos de exacerbada humildade, que se aproximavam da depressão.
Mas, nessa relação angustiada, tempestuosa e mesmo rancorosa, por incrível que pareça, há dezenas de perdões e de promessas. Quem sabe, não será amanhã o início da recuperação, sendo a vergonha em casa mais forte que a tentação da bebida?
Seria o alcoólatra um egoísta sem vontade de reagir? Pois resta-lhe o sabor e, principalmente, o conforto e a alienação da bebida. Para a família, o sabor da amargura e, para os filhos, a vergonha das ruas e a insegurança constante. Mais, a impossibilidade de entender o desarranjo havido naquele ser humano amado, que se apresenta com a personalidade destroçada pelo álcool.

Havia lá pelos lados onde morei um bêbado perdido e abandonado, apelidado de "Risadinha", apelido que se coadunava com seus cantos desconexos e suas gargalhadas por nada, salvo a visão dos seus demônios alcoólicos.
Muitas e muitas vezes tropecei nele, sempre desacordado numa esquina suja, mitório de cães de rua, estirado, desacordado e malcheiroso.
Pendurado na parede, dois metros acima onde permanecia desacordado, era fixado o cartaz do principal cinema da cidade, que mudava duas ou três vezes por semana, anunciando os filmes e os dias de exibição. Quantas vezes os títulos dos filmes coincidiam com a cena do corpo negro jogado no canto imundo: “Qual será o nosso amanhã?”, “Servidão humana”.
Numa manhã de domingo surpreendi-me vivamente com ele. Lá estava "Risadinha" de pé, sóbrio, à minha frente. Retornara à vida. Um quase ex-alcoólatra estava tentando recuperá-lo, tendo mesmo arrumado um emprego para ele. Lembro-me bem: naquele dia, ao ser oferecida uma bebida qualquer, aceitara apenas "água tônica". Era um sujeito simpático e inteligente. Naquela manhã estava perfumado e seus cabelos crespos retidos por alguma loção naqueles tempos da brilhantina.
Depois daquele rápido período de vida abstêmia, fora encontrado morto na mesma esquina. O filme anunciado no cartaz, com uma ponta de ironia, lá pendurado, fora “A fonte dos desejos”. Seus amigos de bares e de porre total, ao serem informados de sua morte, apenas comemoraram com mais uma dose. Porque havia mais que comemorar, o álcool o exigia.
Os tempos mudaram, para melhor. Antes o alcoólatra era considerado um viciado fraco, egoísta e desavergonhado.
Hoje o alcoolismo é classificado como doença psiquiátrica pela Organização Mundial da Saúde mudança que dá tolerância maior ao alcoólatra que pode se submeter a tratamento especializado.

DESPEDIDA

Acompanhei de perto os últimos momentos de vida de meu pai, acometido de insuficiência respiratória, certamente pelas décadas de fumante que foi, a despeito de, havia muito, ter largado o vício com algum sacrifício no começo. Costumava mascar "chicletes" para se livrar da maldição do cigarro toda vez que a abstenção da nicotina reclamava reposição.
Lembro dele fazendo caminhadas pela cidade, cada vez mais curtas à medida que aumentava sua dificuldade em respirar.
Nos últimos momentos de sua vida, estivera eu em São Caetano do Sul, exatamente para resolver algumas pendências deixadas por ele e minha mãe naquela cidade do ABC.
Naqueles últimos dias, ele já estava na UTI, respirando com extrema dificuldade, sendo auxiliado por aparelhos.
Após resolvidas as pendências naquela cidade do ABC, passaria no hospital em São Paulo para visitá-lo.
O trânsito estava pesado, totalmente parado na Av. do Estado. O metrô paulistano estava paralisado em greve, agravando o tumulto.
Imobilizado no meio de todos aqueles carros, ansioso por chegar ao hospital, mentalmente solidarizava-me com as pessoas nervosas de uma cidade tão difícil como São Paulo, com o povão amarrotado dentro dos ônibus superlotados ou mesmo indo a pé, como naquela tarde, pela falta de transporte que lhe fora sonegado. A poluição era sufocante e as árvores mantinham (como mantém) um verde escurecido, sobreviventes.
Quando cheguei ao hospital, o horário de visita já se expirara. A recepcionista da UTI gentilmente compreendera meu atraso. Deram-me um avental branco e um par de sapatilhas também brancas. Devagar, mantendo o equilíbrio no chão liso do hospital, cheguei à enfermaria onde estava meu pai.
Havia outro paciente ao seu lado, prostrado, adormecido.
Meu pai estava muito pálido, muito magro com o aparelho de oxigênio ligado diretamente em suas narinas. Parecia dormir.
Sentiu minha presença: abriu levemente os olhos e fez um leve cumprimento com a cabeça. Fechou de novo os olhos e pareceu adormecer.
Tentei tocar seu peito, mas não cheguei a isso. Ele estava muito magro, com o peito encolhido pela doença.
Deixei o hospital. No elevador, desci com o médico da UTI. Pergunta óbvia para uma resposta insincera e grosseira:
- Doutor, quais são as possibilidade de meu pai?
- Como você acha que vou saber? A qualquer momento ele pode se recuperar...
Perturbado com a resposta assumi insensatamente que meu pai poderia viver mais algum tempo.
Viajei à noite para o Interior de São Paulo.
Ao chegar ao meu destino, ele já havia falecido. Cerca de 15 minutos depois de minha saída.
Um sentimento de revolta contra o médico e um profundo sentimento de dó e ternura por meu pai me invadiu.
Quais diferenças e divergências passadas poderiam macular aquele momento solene da despedida?
Tudo, naqueles momentos finais, se transformara em amor e perdão.
Permanecerão para sempre em minha mente o esforço daquele aceno, a ternura de um olhar sofrido. De uma ansiada e esperada despedida que se prolongou até minha chegada fora de hora ao hospital.
Muitas vezes sonhei com ele depois disso. A separação pela morte parece impenetrável, mas em determinados estados de consciência, o véu se rompe, principalmente quando ela foi calma e sem rancores, como no caso do meu pai.


Minha mãe se tornara uma mulher forte, todos esses anos de lutas e feridas que muito tempo depois cicatrizaram mas que na velhice fizeram com que se tornasse impaciente com a vida que permanecia em seu corpo já cansado e que afetava sua lucidez mental. Nos últimos tempos, tinha dificuldade em externar pensamentos lógicos, dizia sempre que não tinha mais vontade de viver.
Tinha consciência de que a vida passara. Lembro-me dela na sua própria casa, simples, cuidando das cadelas, das bananeiras no fundo do quintal, colhendo alguns cachos de uva na parreira que constituía um caramanchão, do pé de tomate japonês e seus frutos ácidos, de suas plantas em volta, flores e abelhas. Um dia, pela manhã, fora encontrada morta. Sua passagem fora silenciosa e sem rancores. Havia muita serenidade no seu rosto. Para ela, certamente, um prêmio pela vida dura que enfrentara com bravura e com momentos de felicidade que usufruíra.
Não fora carinhosa naquele sentido de meiguice, mas esteve sempre presente, bonita e forte.
Por isso, tal a minha ternura que até hoje lamento não ter feito mais por ela e por meu próprio pai. Há momentos na vida que as coisas podem se inverter nessa relação pais e filhos.
E eu deixei passar oportunidades.

SUPERAÇÕES

Foram muitas as voltas por cima, digamos assim, que dei.
Tanto foi o esforço de superação que na cidade de São Caetano do Sul realmente tive um período, na década de 60, diferenciado, com forte envolvimento e influência na vida estudantil e na pequena imprensa.
Haveria muito que contar desses tempos deslumbrantes de realizações e influências.
Haveria que mudar o mundo.
Mas, há um momento em que a vida chama. Acaba-se o encanto como se dá ao acordar de um sonho bom.
Todo esse idealismo e autoestima foi jogado no lixo ao começar a trabalhar numa multinacional do município, me deparando com um supervisor truculento, problemático, que ignorou desde o primeiro dia meu “currículo externo”.
A despeito dele, houve períodos bons na empresa. Foi nela que comecei a me interessar pelo sindicalismo. O saldo foi positivo, mas a marca de sua ferradura permanecerá indelével no meu peito, como se gravada a ferro quente.

Herdei todos esses influxos familiares e profissionais e, por fim, casamento que já perdura por 40 anos com algum tumulto e filhos, cinco.
Da mesma forma que recebi, transmiti aos meus filhos esse distanciamento, essa tensão, até pelo excesso de trabalho que já perdura por quase 50 anos, algumas viagens ao exterior por períodos relativamente longos. Meio século de trabalho e não enriqueci. Dizem que quem trabalha não tem tempo de enriqucer.

Em comemoração ao “dia dos pais”, em 1982 recebi uma carta de meu filho mais velho que haveria que ser carinhoso na homenagem por ordem da sua professora, claro, mas que deixa transparecer minhas omissões. Sua carta que até hoje guardei:

Meu pai esta carta que estou lhe escrevendo é um tipo de um presente que mando-lhe no dia dos pais
Tenho certeza que você vai gostar dela. As palavras que estou lhe escrevendo saem da minha cabeça e não é copiada da lousa
O dia dos pais para você deve significar muita coisa porque é seu dia. Você promete muitas coisas mas demora para cumpri-las, por exemplo: quando eu queria ir no Parque Antarctica para ver o Palmeiras jogar mas isso demorou bastante, até que levasse. Você é esquisito, só gosta de estudar, não gosta de jogar nada, não gosta de montar barcos, aviões em miniatura, como os demais, só de estudar e também é vegetariano não come carne isso é muito engraçado. Não sei como resiste a uma feijoada, a um frango assado e outras coisas. Eu o admiro muito.”


Minha filha reclama desse meu distanciamento ao longo do tempo, ausência de carinho, mas não há mais jeito de recuperar isso. Apenas paguei as contas, diz ela. Aliás, herdei esse carinho contido de minha mãe. Tenho tentado alguma compensação com meus netos que já são cinco, incluindo de minha filha duas meninas gêmeas idênticas, mestiças nepônicas (japinhas).
A única coisa que posso dizer disso tudo é que, se me colocar ao lado dos meus filhos, talvez seja eu o pior deles.

(Acima, enfeitando esta crônica a foto das gêmeas idênticas, Sofie e Yarin. Ainda não sei dizer qual delas é ela e ela).

16/05/2009

SUSTOS

A guisa de explicação

Falei na crônica anterior sobre os efeitos da ligação com o ocultismo leve. Volto nesse tema. Não estou sendo repetitivo porque para cada relato exsurge um elemento peculiar. Ao absorver alguns conceitos básicos, vez por outra algum acontecimento fora do comum que ocorra, tende-se a interpretar segundo essa cultura. Demais, não será preciso lembrar a atração que produz a força mental sobre certos eventos e realizações.
Escrevi, digamos, um livro no qual misturo ficção com muitas dessas experiências pessoais. Tudo começa com um crime, havendo redenção da heroína no final. Não consigo deixar as coisas mal aparadas: "o crime é um dar de ombros" como se contata nestes tempos amargos. Quem relata essa história, aliás, é um advogado. Difícil é publicá-lo, mas sempre há esperança e os “desígnios da natureza” são invocados.
Depois, de tantos clássicos e campeões de venda que tenho lido, há páginas e páginas maçantes neles que chegam até a deslustrar a beleza da história. Claro que não quero justificar a minha mediocridade medindo a dos outros, máxime de autores consagrados.

Os sustos abaixo são pinçados desse livro. Deixo claro que, pelo menos por ora, omito outros eventos pelo receio de que mais alguma alucinação divulgada me conduza ao qualificativo inevitável de “alucinado” contumaz. Ironias e blagues à parte adapto o relato no qual há elementos verdadeiros e um pouquinho de ficção:

“Enveredar pelo ocultismo, esoterismo ou qualquer ramificação nessa linha, já se disse e digo eu, tende a influenciar o adepto para sempre. Retém ele certos conceitos, impressões e, talvez, até mesmo ilusões. Para mim fora no passado uma espécie de auto-ajuda, além de me fazer acreditar que a cada evento, a cada fenômeno a análise se dará pela lei da “causa e efeito”, que explica que aquelas eclosões foram decorrências dum ato qualquer, positivo ou negativo, perdido no tempo que vem prestar contas na hora aprazada, de crédito ou débito.
Esse indivíduo pode exagerar e se tornar mais sugestionável e às vezes tem experiências que considera aterradoras, atribuindo-as aos influxos desses conhecimentos que abriram frestas do desconhecido, do oculto, em sua alma.

Não teria coragem de relatar esta experiência que se dera mirando-me num espelho a meia luz, num entardecer beirando a noite, olhos fixados nos meus próprios olhos refletidos, e ver o surgimento momentâneo de imagem que não parecia mais ser a minha, um outro rosto em lugar do meu, disforme, envelhecido ou mal formado. Aquela experiência fora a um só tempo inquietante e reveladora porque pudera de início fixar-me nos seus próprios olhos com profundidade e encontrar timbres de uma individualidade superior (da alma?) até que a imagem distorcida tirou-me a coragem para continuar.
Coragem não teria sequer de contar essa história se não lesse em Guimarães Rosa, no seu “Primeiras Histórias”, no conto “Espelhos” uma revelação semelhante dita na sua linguagem rebuscada:
“Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei...Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento espavor. E era – logo descobri...era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?”

Há susto outro que me encorajo a relatar. Lia um livro, certa madrugada, de alto ocultismo, certamente que “Zanoni”, de Eduardo Bulwer Lytton. Naquelas páginas, se bem me lembro, num momento culminante, era relatada uma terrível experiência que um iniciado nos mistérios estava tendo, ao decidir retornar do ponto de onde chegara. Tinha o personagem visões fantasmagóricas na escuridão indevassável no caminho da renúncia. O livro escrito com tal beleza levava-me a sentir o drama do iniciado renunciante.
A escuridão, as sombras e os fantasmas, o terror enfrentado pelo iniciado que desistia e, naquele instante culminante de pavor, a luz da sala se apagou com pequena explosão: POF. Dei um salto na poltrona, busquei ardentemente o interruptor, acionei-o insistentemente sem resultado, a escuridão era impenetrável tal qual descrito no livro. Tropeçando pelos móveis da sala cuja localização tão bem conhecia, cego de terror, cheguei à cozinha clareada pelo luar que penetrara pela cortina entreaberta e aí acendi a luz. Coração batendo forte. Pus a mão no peito tentando me acalmar. Mesmo reconhecendo o simbolismo da cena tão bem descrita no livro, por muito tempo fora influenciado por aquela experiência estranha, a coincidência da luz que se apagara num pequeno estouro quando as trevas dominavam aquele trecho da narrativa que aguçava, naquele momento, minha capacidade em distinguir vultos me observando.
Fora um grande susto. Por algum tempo fugi mais cedo da noite e da madrugada a partir do momento em que ficasse só.

Meus fantasmas...que se foram...sei não!

03/05/2009

VERSOS PARA NINGUÉM (II)

A PERDA DA VEIA ROMÂNTICA

Ao se enveredar com alguma persistência para o estudo esotérico – que na verdade tem muito de auto-ajuda sem que isso se revele expressamente ou faça parte dos seus objetivos primeiros – mantém-se para sempre alguns conceitos que se leva pela vida. Eu acredito nisso e eu ainda carrego esses sintomas, embora hoje já não me dedique (tanto) a tais veredas.

Já disse – e se não disse, digo - que no campo da poesia tenho certa dificuldade em elaborar proposições românticas. É que num dado momento, obriguei-me a pisar no chão duro da sobrevivência profissional e, nesse passo, há sempre distorção de valores e desvios de prioridades.

Perde-se nesse mundo próprio a coragem pelo lirismo, e até mesmo em pronunciar a palavra ternura. Uma pena, porque os tempos não voltam. Por isso, admiro aqueles que conseguem superar esse antagonismo, obtendo refinada inspiração.

Então, do que escrevi ao longo do tempo e que consegui recuperar – porque o computador é ótima ferramenta até o momento em que uma pane descarta tudo, o bom e o ruim arquivados -, farei por temáticas, isto é, versos com semelhanças de enredo.

Seguem dois que tratam de indagações existenciais. O primeiro é completado pelo segundo:

Presente, passado e futuro

A tarde é cinzenta e fria. É outono
Bate forte o vento na janela entreaberta
Estas tardes melancólicas de sábado
me fazem viajar no tempo
E anoto quão ele é inexorável
de estação em estação.

Ligo o passado jovem com o presente
Sou eu mesmo, pena que sem mais
os projetos mirabolantes, belezas utópicas,
Sem mais as ilusões de mudar
com discursos o mundo,
Nem parece verdade todo esse trajeto.

Que posso dizer disso tudo, afinal?
Que tenho saudade do feito e do não feito?
Contabilizando os trens que passaram
sem que embarcasse?
Pelas oportunidades e o tempo desperdiçados?

Não sei bem o que sinto, na verdade.
Só sei que tal ligação passado-presente
Está aqui comigo, n’alma,
E me desperta a cada dia
Quem fui, quem sou e quem serei?

Quem sabe um idealista que queria
mudar com discursos o mundo,
Lamentando os trens perdidos
Que me levariam...para onde?
Olho do alto da maturidade
Serena e...mais além...
Lá serei uma lembrança remota
cuja presença se perderá no pó...

Inexorável!


Antigu-idade

Caminho olhando pra frente
Firme, busco compreensão sentida,
Dessa coisa que sacode ardente
Dessa centelha frágil chamada vida!

Mas, o que é isso tudo, afinal
Se a cada momento dado, há impostas
barreiras, desafios, sem prévio sinal?
Remexendo interiores, sem respostas?

Olho ansioso para o alto, então
Ouço a voz universal, tênue e piedosa
Sinto-me entre as estrelas, em solidão
Nada sei dessas luzes silenciosas!

Volto-me para mim, miro-me n’alma
Medito no todo dessa realidade (?)
Insisto em desvendar a centelha calma
Mas, apenas intuo que já vivo antiga idade...

26/04/2009

"TEMPOS MODERNOS"

Dedicado ao amigo Caio Venâncio Martins


i – Os tempos do Satriani no Ipiranga

Voltara com frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo, na rua Silva Bueno, por muitos anos, numa pizzaria famosa.
Ela me marcara porque a frequentara desde a adolescência, naquelas noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas discussões se prolongavam,transferidas na volta da pizzaria, naqueles sábados estendidos, até as primeiras horas da madrugada para o bar nos baixos do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor qualquer, os mais afoitos ingerindo um destilado, conhaque de preferência.
Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade e de Deus, debatendo-se a reecarnação e o sentido da vida. Eram os tempos dos Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual e, com ela a promiscuidade, misturado ao V de “paz e amor”...
Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60, para quem deles usufruiu, que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com incrível nitidez.


ii. Tempos de maravilhas e perigos

Mas, ao lado dessas experiências maravilhosas numa época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos tecnológicos nos rumos do espaço, iniciados pela União Soviética, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os Estados Unidos...
Tinha em mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O presidente soviético, Nikita Kruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas, com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima.
A séria crise dos mísseis – que começaram a ser instalados em Cuba, mirados para os Estados Unidos -, em 1962, no embate havido entre Kennedy e Kruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas potências, para mim fora a coragem de Kennedy que vencera os soviéticos.
O que se deu nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de aula, um velho professor de francês, o Deleo, com seus gestos delicados que provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa numa noite começaria a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou ele:

Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west, mais où tout le monde meurt. Vous avez déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit?
Silêncio.
- Alguém entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre os Estados Unidos e a União Soviética.
O professor riu o que raramente fazia. Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do perigo, o conflito prestes a espocar e, na sua cristandade assegurou que tudo se resolveria com a intervenção divina.

Kennedy fizera concessões aos soviéticos. Fora sua prudência que evitaria qualquer retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática. A ameaça nuclear foi afastada.
Quando do atentado em Dallas, acompanhei tudo com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. A emoção se irradiou pelo mundo, perplexo com a brutalidade do atentado.


iii. Política e repressão

A guerra fria depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no poder, mas não ainda no governo.
Os eventos políticos em março de 1964 se precipitaram, resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve comemoração e alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe.

Tive um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o Isaque:
- Esse comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói do nada. Um desastre. O que significou a “Coluna Prestes” se não uma fanfarrice? Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis, propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe na sua insanidade os argumentos dos ditadores tanto de Getúlio como dos militares em 1964 para implantarem a ditadura.

À medida que os militares se consolidavam no poder mais a oposição era retaliada. Políticos eram cassados, os sindicatos esvaziados, prisões políticas se tornaram rotina e os movimentos de rua reprimidos.


iv – Grupos armados

Não demoraria muito, e grupos armados se organizaram opondo-se ao golpe militar, iniciando-se uma luta surda e sórdida nos bastidores. Nos porões dos órgãos oficiais de repressão, a tortura selvagem se tornara uma prática comum. Brutal. Mas, claro que não havia santos do lado dos grupos clandestinos armados.
Jovens e estudantes inteligentes se uniram a esses movimentos alimentando um ideal ambíguo de desforra impossível. De mudar o país com o povo unido. Ideais sem povo, porém, e ideologias que não diziam respeito a muitos daqueles que aderiram à luta armada. E, pior, tombaram sem bandeira e sem razão. O estilingue contra o canhão. Essa luta armada, no fundo, dera munição aos militares para o endurecimento do regime e o “vale tudo” da linha dura fortalecida na atividade repressiva.
Parece que o medo de serem descobertos nos seus esconderijos, porque esses “soldados armados” viviam na clandestinidade, fora das piores torturas. E a elas as torturas físicas de que foram vítimas. É que certo tipo de experiência embrutece e descolore os ideais por muito tempo ou para sempre. Muitos conseguem “dar a volta por cima”, recuperar a integridade enquanto outros mantêm na sua interioridade, um sentido de ruína por todas as tensões quando descobertos e presos, pela violenta tortura física e moral a que foram submetidos, aqueles choques elétricos que revolvem o espírito para sempre.
Não foram muitos os que se decidiram por aquele caminho belicoso incluindo os que rumaram meio às cegas, mas vários foram os militantes que se deram mal. Entregaram a vida. Esse tipo de oposição fora instituída num momento de arrogância militar. Um erro de estratégia. Haveriam esses opositores que esperar o momento começando por discutir idéias nas oportunidades que surgissem. O regime militar haveria que se enfraquecer como resultado de suas próprias mazelas. Cairia de velho. O sindicalismo no ABC, mais tarde, tivera essa percepção ou agira do modo como se toma a sopa, enchendo a colher pelas bordas, saboreando-a e dera sua contribuição para a queda do regime militar.
Já disse que em outra crônica, mesmo com o esquema radical de censura, beirando o ridículo nos seus atos de desaprovar manifestações literárias e artísticas, houve nessa década um razoável nível de criatividade, uma intensa atividade cultural e musical.


v – Derribados e sobreviventes

Na luta armada se envolveu um amigo. No começo fora difícil acreditar, pela sua sensibilidade e pela sua inteligência.
Poeta talentoso, cronista e contista que mexia um pouco com os meus cotovelos, na verdade minha convivência com ele, nos tempos do colegial, não fora fácil, não só pelo seu talento, como por suas explosões e demonstração de valentia dando vazão à sua personalidade contraditória. Mas, essas atitudes ambíguas, inseguras, seriam, também, um grito interior resultado de sua própria repressão pessoal que de certa forma, em todos se manifestava com maior ou menor intensidade. E talvez pela sua origem humilde, ele que vivia num bairro modesto na periferia. O colégio onde estudávamos, embora público, concentrava, em boa parte os herdeiros da elite da cidade.

Um professor, já então usando barba espessa à moda de Fidel Castro tinha por hábito fazer pregações de natureza política contra os militares no recreio do colégio.
Algumas dessas pregações ouvi por acaso porque não era mais aluno do colégio, e já começava a me preparar para a faculdade de direito.
Para mim, ainda mantendo resquícios de um sentimento anticomunista em linha com o golpe militar – que não demoraria a se desvanecer -, sabia da notória desinformação entre a maioria dos alunos daquele professor sobre o ambiente político e a repressão que poderia gerar se pegassem em armas. Não sei se sua pregação resultou em alguma adesão. Acho que não.
Esse professor engajado na luta armada não sobreviveria, sendo morto pelas forças da repressão em 1974.

Mas, aquele meu amigo, o poeta talentoso que ingressara na Faculdade de Direito não demoraria a se engajar na “luta contra a ditadura”, mas a partir dos bancos do Largo de São Francisco.
Fugindo do país, vivendo antes a tensão de ser descoberto ou denunciado, passando pelo Uruguai, por Cuba e França, conseguiu trabalhar regularmente na então Alemanha Oriental.
Retornou ele a salvo e hoje escreve crônicas e poesias admiráveis. Sua sensibilidade pela sua experiência e até pelo remédio do tempo, fora aguçada. Sobrevivente, vive da inspiração.
Revirando papeis daqueles tempos encontrei um poema que ele escreveu ainda como estudante do antigo clássico:

"Somos assim como mares profundos,
praias desertas, que quando assoladas
recobrem com areia as pegadas
da vida passada em outros mundos."


vi – “Lindo sonho de amor que tão cedo acabou"

Num jornalzinho do Grêmio – entidade dos estudantes do colégio-, encontrei de sua autoria uma espécie de poesia sobre alguns alunos de nossa classe a qual denominou "ABC da turma brava".
Transportando-me exatamente para aqueles dias, bate nos meus ouvidos uma música romântica que, infelizmente, não sei o autor e menos ainda o cantor que tinha o seguinte trecho: "Ah, lindo sonho de amor, foi o nosso romance que tão cedo acabou..."
É que, na nossa classe comum, havia algumas garotas que se destacavam pela sua beleza. Uma, injustamente, era apelidada de "Bolinha" porque, dizia-se, fora gordinha.
Nesse clima e pela minha participação estudantil forte tive alguma aproximação com ela.
Seus interesses estavam definidos, principalmente ingressar numa faculdade de renome, não só pela sua inteligência como aplicação nos estudos. E nesse objetivo, obtivera sucesso.
Certo dia em plena aula, como péssimo aluno que fora, comecei a fazer "graças" sem qualquer graça talvez querendo impressioná-la. Eis que ela já aborrecida ameaçou-me:
- Se você não parar com isso atiro-lhe este livro.
- Quero ver, disse eu duvidando.
Desafiada, ato contínuo, o livro veio em minha direção, sem qualquer conseqüência.
Claro que o livro voando pela sala, resultou num "zum, zum, zum" porque fora um plena aula, incidente logo esquecido. Encerrou-se o ano e o curso e cada um foi para um lado.
Eis que no seu "ABC da Turma Brava" esse episódio fora registrado assim:
"Diz um "M" que é de MM...
rapaz que nunca sai da linha,
e quando tentou levou foi mesmo
uma livrada da Bolinha".

Estais achando uma extrema pieguice?
Mas, saibas, foi “um lindo sonho de amor que tão cedo acabou.”

19/04/2009

VERSOS PARA NINGUÉM (I) (Dias de ingenuidade)

Sei bem que o “novo sempre vem” mas há apenas momentos do passado que amo. Uma paráfrase parcial da música de Belchior ("Como nossos pais") interpretada de modo arrepiante por Elis Regina. Quanto ao novo, ontem já está envelhecendo nesse caminhar célere dos dias e da própria vida.

A crônica de hoje, de regra, como outras, também baseada em fatos reais. Destaco “reais” porque o Aurélio ensina que fato é “aquilo que realmente existe, que é real.” Assim, se é fato...

A década de 60 é considerada “de ouro”. Fora uma divisora de águas, entre a década de 50 de afirmação, ainda com ranços do pós-guerra, o esquentamento da guerra fria que quase resultou num conflito nuclear em 1962 entre os Estados Unidos e União Soviética e o intenso progresso que eclodiria a partir dos anos 70. Um passo antes, em 1969, os americanos alcançaram a Lua, naqueles tempos em que os Estados Unidos haviam decidido obter (ou manter) a liderança tecnológica e científica no mundo minimizando a influência soviética. Também em 1969 com a interligação de quatro universidades americanas, possibilitou que professores e pesquisadores se comunicassem por precários computadores, em rede.

Quanto mudou o mundo a partir daí!

Mesmo os anos da ditadura que começaram em 1964 não impediram intensa criação artística. Basta lembrar os momentos célebres da “jovem guarda” e suas músicas açucaradas, românticas. As músicas geniais de Tom Jobim desde os primórdios da bossa nova. Mesmo Chico Buarque nessa década não se destacara por suas músicas com temas “sociais” e de revide velado aos atos da ditadura. "Olê, olá" é de 1965, a “Banda" é de 1966.

Pois bem, a cidade de São Caetano do Sul, nesses tempos dourados destacava-se pela intensa atividade cultural, artística, política e social. Inigualável.

O movimento estudantil empolgava e eu fiz parte dele fortemente.

Foi nesse caldo de cultura que aliado a um outro estudante, Emerson Marcon, ambos “doidos”, vivendo intensamente – mais não “vivi”, porque infelizmente ninguém me avisou, e nem poderia, como aquilo tudo era bom demais e que nunca jamais se repetiria – elaboramos uma cartilha de poesias, imprensa devidamente, arrumadinha, cujo título fora “Versos para ninguém”. A capa, um vulto mal atravessando uma porta transparente.

Com o tempo, com reservas pelas minhas “poesias”, porque feitas para preencher o tal livreto, sem inspiração e quase zero de transpiração, eis que anos depois, encontro uma delas transcrita num jornal interno de uma multinacional de eletrônicos. Claro que uma surpresa considerando a maneira como fora ela composta.

Tenho um amigo naquela cidade com quem militei na pequena imprensa, brilhante advogado, já antigo, pouco mais do que eu, João da Costa Faria, que me dizia – e se não disse, está dito – que tudo que publicamente se escreve, nunca se sabe onde vai parar o texto.

Essa “poesia” piegas demais foi exemplo efetivo disso. Ei-la:

Louvemos o homem que ri
Sem vaidade,
Admiremos o homem que fala
Sem hipocrisia
Respeitemos o homem que chora
Pela verdade,
Citemos o homem que estampa
Humildade

Louvemos o homem desiludido
Que perdoa
Admiremos o homem que perde
E reinicia
Respeitemos o homem que ama
E chora
Citemos o homem honesto
E feliz.

Louvemos o homem doente
Sem desânimo
Admiremos o homem pobre
Que trabalha
Respeitemos o homem que é rei
E modesto
Citemos o homem rico
E simples,

Louvemos o homem feliz
E otimista
Admiremos o homem paciente
Que espera,
Respeitemos o homem cansado
Que repousa
Citemos o homem que morreu
Mas viveu.


As virtudes que se inserem após cada louvação, fazem desse homem um super-homem. Utopias e esperanças naqueles tempos de transição, uma espera para qual lado caminharia a mente dos homens e o próprio mundo. As coisas, como se vê hoje, não caminharam bem: recrudesce a truculência entre o “homo sapiens”, as misérias se multiplicam e o agravamento assustador da devastação ambiental. Quais as consequências que advirão desses atos? Tremo ao imaginar.

De Emerson Marcon selecionei “Peregrino Errante” uma de suas poesias que compôs o livreto citado:

Viajei as estradas da vida tal um peregrino,
Vaguei pela chuva, pelo sol, sem um destino...

Conheci o céu, a terra, o mar, a luz, os amores,
o pó, a lama, a dor, o fogo, o perfume das flores.

As minhas vestes se rasgaram nos espinhos
e os meus sonhos se esfumaram sem carinho,

na carne os espinhos cicatrizes deixaram
e n’alma tantas vezes os sentimentos se afogaram!

Deus! Quanto sangue verti pelas feridas
e as lágrimas choradas foram perdidas!

Agora que a conheci, encontrei o meu destino,
não mais na vida serei um errante peregrino!

Depois de vê-la o passado é nada,
chegou o peregrino no fim da jornada!.


INGENUIDADES

Acima, no título, falei de “dias de ingenuidade” que se inserem naqueles anos dourados.

Claro que atrás de certo recato, inimaginável nos dias de hoje, havia a angústia sexual, reflexo de sua demonização por séculos, pregação das várias religiões que repetiam conceitos que hoje se perderam.

Muitos padres, então, aos meninos e meninas que iam confessar, faziam a inevitável pergunta: “você fez coisas más?” Será preciso explicar o que sugeria tal pergunta?

Sobre isso, aqueles que se propuserem a ler as crônicas em “Poetas”, aquela primeira cujo título é “Poeta falsificado que rima rosa com prosa”, há a explanação dessa “angústia sexual” porque o vulcão reprimido mexia com a cabeça...e como mexia.

Deu no que deu, no eterno efeito do pêndulo que solto se desloca violento para o outro lado, arrebentando tudo. Nestes dias assustadores a truculência sexual se faz presente como nunca.

Mas, o momento é de amenidades. Animo-me, então, a transcrever crônica meio poética que reflete bem o espírito romântico daquela época tão preciosa:

Esmeralda sem rosto

A primeira futura ex-namorada. Em nome dela, em sua homenagem, num domingo chuvoso de paixão, perdido no tempo, formulara alguns versos com rima pobre:

Como são fortes, candentes
Os primeiros amores,
Ardentes
A primeira namorada
Dúvida amarga
Amada.

Toda essa relação apaixonada fora tão tímida, havia indecisão em se aproximar da possível futura namorada. Naqueles idos. Uma torcida para que ela passasse na mesma rua após as aulas, no mesmo horário, um encontro silencioso e ansioso.Estudante destacadíssima. Aceitaria?

Encontros forçados, à espreita numa esquina qualquer, uma paixão ardente. Inesquecível.

A imagem dela na bicicleta, descolorida, meio enferrujada, sem rosto, um vulto, de branco. A rua cinzenta, úmida da garoa havia pouco, vento gelado no rosto, o sobrado humilde desbotado, com muro baixo. Alguns gerânios vermelhos nos vãos e rosas vermelhas e amarelas no canto do jardim. Um buquê retorcido no vento.

Esmeralda. Lembranças. Tudo passou de repente. Só o amor sem rosto ficou.

Amor ou lembranças que se perderam no tempo, não sei bem! Um pouco dos dois. Há desses instantes que não se perdem. Ficam porque doces.

Fazia justa associação: uma espécie de La Esmeralda, a cigana, vulto deslumbrante de Victor Hugo no “Corcunda de Notre Dame”. Também sem rosto, deslumbrante, porém.


Ainda voltarei com versos e poesias. Um dia desses.

10/04/2009

ANIMAIS (ZINHOS) E BICHOS

EXPLICO

Minhas relações com as várias espécies de animais (zinhos) e bichos sempre foram as melhores possíveis. Já nem falo de cachorros. Tem uma preta já velha e agitada me encarando suplicante pela janela, aqui do lado, esperando por um afago, passando minha mão pelos losangos da grade. Se não chego perto, ela choraminga.
Daqui mesmo, olhando à esquerda vejo rolinhas, anuns, pica-paus, bem-te-vis e outros espécimes que não sei identificar (há um pássaro azulzinho frequentador assíduo) saboreando bananas e metades de mamões postos para eles, sobre o muro, pela manhã, exatamente para que compareçam diariamente.
Gatos são, porém, minha preferência, embora tenham eles sumido das vizinhanças. Há muita gente intolerante com esses animais e partem para a maldade. Talvez nem eu mesmo tenha tempo para eles hoje, mas sempre que por perto, foram entre malandros e doces. Um tinha por costume morder suavemente meus pés com aqueles dentinhos finos. Aos meus protestos, ele parava, olhava para cima, com aquelas pupilas que vão e voltam e ficava a espera de um agrado.
Um indivíduo velho desses, que morreria atropelado, certa manhã comia sua ração quando um estrondo de tampa de panela no chão o fez saltar em pânico e sair correndo para a janela em fuga, batendo a cabeça no vidro. Percebendo a gafe e a risada geral, o sujeitinho se postou quieto perto da janela e carregado carinhosamente de volta à comida, ronronou como se tentasse explicar o vexame por que passara. Como não gostar desses caras?
Que valor tem, por exemplo, reter na mão um beija-flor que adentrou numa sala, na hora do almoço talvez atraído pelo perfume dum suco de uva? Cansado de se debater em busca da saída, barrado pelo vidro transparente sem entender porque não alcançava a liberdade - que estava a um palmo abaixo na abertura escancarada da janela -, que via lá fora, suas flores e suas árvores tão perto, entregou-se à sorte encostando-se indefeso num canto da parede. Eu o embalei cuidadosamente. Um chumaço de penas na minha mão, bicudo e olhinhos pretos. Solto lá fora, bateu as asas e desapareceu. Ficou a sensação de sua presença.
Que valor tem um momento desses? Para mim muito valor, muitíssimo.
Certamente que muitos dirão que isso ou aquilo é rotina e contarão passagens mais interessantes.
Mas, para mim foram experiência e impressões únicas, daí...


A Coruja


Numa tarde modorrenta de domingo, eis que uma coruja - ave muito comum no interiorzão de São Paulo, onde fazem seus ninhos em covinhas nos campos – no alto de um telhado vizinho, debatia-se para soltar sua perninha dos arames que retinham uma antena de televisão. Encontrava-se presa num desses fios onde se forma uma espécie de “v” ou “y”. Tentava se soltar pressionando a perninha no sentido do vértice da forquilha o que cada vez mais a feria.
Para melhor enxergá-la, munimo-nos de um binóculo. A perninha presa sangrava e mais se feria na medida em que forçava para escapar da armadilha.
Um dos meus filhos, verdadeiro “animal trepador”, então, resolveu soltá-la. Chegou ao telhado escalando muros e, com jeito, alcançou a corujinha. Já exausta e ferida não esboçou reação alguma, quem sabe conformada com o seu fim, eis que o inimigo cruel chegara para abatê-la impiedosamente.
Num movimento suave foi ela solta. Após alguns segundos, percebendo a liberdade, voou para uma folha alta de coqueiro, numa área verde próxima. Estava salva. Vacilara um pouco em voltar para seu esconderijo bem embaixo do coqueiro. Não demoraria muito, ela desapareceria. Sua cova estava vazia.
Algum tempo depois, ela reapareceu, mas empoleirada numa folha de coqueiro de minha casa – aquele tipo de coqueiro classificado de “anão” mas que vai crescendo e engordando como gota próximo da terra e se tornando alto e inalcançável. Certa vez, ainda não tão alto como hoje, ele produziu duma só vez 76 cocos, algo inimaginável. Não se trata de conversa de ...pescador, até porque falo de cocos e odeio pescar. Jamais pesquei e detesto! Inspiro-me sempre numa frase de Leon Tolstoi em “Ana Karenina”:“Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Ainda baixo o coqueiro a coruja ali se acomodou, sem a perninha esquerda. Certamente que infeccionara atrofiando-se, resultando na sua amputação. Dali do coqueiro ela não fugia, ficava horas quietinha. Deixava-se tranquilamente examinar com o binóculo. Dava voltas de quase 180 graus com sua cabeça.
Não sei se seu instinto revelara que ali, naquele coqueiro, naquele lugar havia segurança para ela ou se, no seu pequeno cérebro, espocara algum sentido de gratidão.
À noite, ela desaparecia. Nas proximidades, uma coruja chirriava de forma arrepiante. Talvez fosse ela nos estertores de sua vida.
Um dia ela (ou ele?) sumiu. Talvez tenha sido ceifada por infecção na região da perninha amputada.
Ficou sua imagem e a nossa gratidão em estar conosco por algum tempo.


Abelhas

Numa pequena chácara que tivera, construí uma casa de madeira, bem própria para o campo. Arrumadinha mas com alguns detalhes meio precários, caso dos vãos entre o telhado e o forro, que permitiram que morcegos frugíveros ali passassem a viver, ruidosos a noite inteira sobre o forro. E mais, num dos lados, bem na aba da varanda, a pouca altura, instalou-se um enxame de abelhas.
A colméia cresceu muito. Chegamos a extrair mel em razoável quantidade.
No calor insuportável dos dias de verão, as abelhas pareciam sofrer muito porque as telhas de amianto aumentam a temperatura. Em grande quantidade elas deixavam o abrigo e “nervosas” saiam em busca de alimento ou permaneciam esvoaçando ruidosas a poucos metros do chão.
Tinha por hábito passar no meio delas. Elas se embaraçavam nos meus cabelos, mas nunca foram agressivas. Jamais fui vítima de seus ferrões, salvo uma única vez em que uma delas, vendo-se presa atrás da lente de meus óculos, ameaçou a picada que não consumou. Se se consumasse, poderia ter atraído o ataque de outras e teria sido perigoso.
Essas abelhas eram agressivas. Certa feita, num pequeno serviço de terraplenagem por perto, o tratorista foi violentamente atacado por elas.
Para mim, essa relação de confiança demonstrada pelas abelhas, transcende o acaso, deixando transparecer que até elas respeitam sentimentos de não agressão e de tolerância.
Mas, cuidado, porque a reação delas pode não ser a mesma em qualquer outra circunstância ou pessoa.


Vespas ou marimbondos

Quando vim para o interior de São Paulo, aluguei uma casa assobradada. Na parte de baixo espécie de salão de jogos, dando para amplo quintal, instalara-se, parecia fazer algum tempo, um ninho de vespas, aquelas cujas picadas são muito dolorosas.
As crianças querendo fustigar os marimbondos que ali viviam quietos e amistosos, passaram, numa tarde de sábado, a mirar tênis no ninho. Claro que o vespeiro ficou agitado e agressivo. As vespas se aproximavam tentando identificar o agressor.
Impedidos por mim de continuarem atiçando os bichos, depois de algum tempo, não houve jeito, tive que recolher os tênis bem embaixo do ninho semidestruído.
No momento em que estiquei o braço direito para recolher um dos tênis em local bem abaixo donde esvoaçavam as vespas, uns cinco indivíduos me atacaram, picando apenas o braço ameaçador. Eles não me atacaram para agredir, apenas para se defenderem na iminência de nova ameaça de agressão.
Meu braço inchou, mas eu apreendi a lição de não agressão.


O leitãozinho


Sempre que ia ao açougue naqueles tempos já saindo da meninice me dava um aperto no peito aqueles ganchos nos quais eram pendurados pedaços de cadáver de porco e boi. Sempre no mesmo horário de domingo, frequentemente um chinês dono de pastelaria próxima, aproveitava o moedor do açougue para preparar o recheio dos pasteis. Os filetes da carne moída e das pelancas que se misturavam caiam numa bacia imunda, meio amassada, contendo nas reentrâncias resíduos de outras moagens.
Os pedaços de porco mais me impressionavam porque havia alguns anos assistira ao abate de um leitãozinho que circulava meio livre pelo quintal. Lá estava, presente que meu pai recebera, nem sei bem porque e de onde.
Chegou o dia de ser abatido. O vizinho afeito à matança desses animais se prontificara a não só abater o bicho já grandinho como retalhá-lo em pedaços para serem consumidos. O Natal seria comemorado dali a uns dias.
Numa manhã de domingo tal se consumou. O homem, já velho, curvado, nariz avantajado com crateras lunares, olhos avermelhados, sem expressão, de chapéu de feltro batido e desbotado, escondendo seus cabelos grisalhos, apropriou-se de uma faca enorme, agarrou sem dificuldades o porco porque habituado à presença de todos, segurou-o pelas costas apertado-o no seu peito com o braço esquerdo e com a mão direita desferiu o golpe abaixo de sua pata dianteira em direção ao coração.
A facada não atingira o coração do bicho. Gritando desesperado, pressentindo a traição e a morte iminente, aqueles olhos vermelhos procuravam por todos aqueles em sua volta em quem confiara e recebera carinho, de mim especialmente, se debatendo não demorou, momentos depois, a perecer num segundo golpe, agora certeiro. Seus olhos morreram fixados nos meus.


O escorpião no sapato

O escorpião é um animal (zinho) amaldiçoado na Bíblia. Eis alguns versículos que o tratam como um demoninho:
Apocalipse 9,5: “...e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião quando fere o homem.”
I-Reis 12,11: “...meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.”
Eclesiástico 26,10: “Uma mulher maldosa é como jugo de bois desajustado; quem a possui é como aquele que pega um escorpião.”
Lucas 10,19: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada fará dano algum.”
Por vezes um acontecimento que poderia ser ignorado num mero bocejo, rebate como se houvesse um sentido oculto, uma mensagem velada. Tive várias dessas experiências. Uma delas, meio assustadora, dera-se numa chácara que freqüentava. Lá chegando, quase todos os domingos, calçava um par de sapatos velhos, feito chinelos, folgados e saia pelos campos. Num fim-de-semana, calço os tais sapatos e sinto que há algo saliente dentro de um dos pés. Jogo o sapato no chão. Sai a carcaça de um escorpião adulto, o mais venenoso, que amassara na semana anterior, sem que percebesse. Passara incólume de sua picada venenosa e dolorida.
Algo diferenciado se dera nesse episódio? Fora alertado sutilmente do perigo em calçar os sapatos sem olhar? O que se faz numa hora dessas? Olho para o céu azul e indago: o que isso quis significar?
A minha “cultura esotérica” insiste que não leve certos eventos para o mero acaso, a sorte.
Deixei o versículo de Lucas por último, acima (“Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões..."), que fora uma afirmação do poder de Jesus transmitido aos seus discípulos. A mim não serve esse poder, nem pensar, até porque tenho uma propensão agnóstica, meio moderada, porém.
Mas, o que isso significaria, “agnosticismo moderado”? Poderia ser definido numa frase do professor Paulo Edgar A. Resende em artigo numa antiga revista da PUCSP (1968 – “Deus hoje, Sim e Não”): “Os cristãos que passam ao ateísmo, não o fazem a partir de um raciocínio da existência de Deus ou da não-existência de Deus. Eles partem da convicção de que a crença em Deus não tem significação para o relacionamento com os homens, é algo separado da terra, e que poderia ficar para depois, para os períodos de intervalo, para as situações limites, para a velhice, para a época da doença.”
Por esse agnosticismo, ainda que moderado, não sou elegível a pisar a salvo nesses demoninhos.
O caso é que eu pisei e o amassei. Bichinho adulto, amarelado, imóvel diante dos meus olhos perplexos.
O que isso significou? Sorte? O acaso? Já disse que há situações em que rejeito explicações por essas palavras.
Não sei, mas quando dele me lembro, sinto algo a mais no meu sapato mesmo que não tão folgado como aquele no qual se alojara o escorpião sem sorte (epa!) num domingo de céu azul e ensolarado.


O Quati

Houve um tempo em que morara numa casinha simples, boazinha, cujo quintal dava fundos para o já então poluído rio Tamanduateí, violentado pelo despejo de fábricas, esgotos, lixo. O quintal era separado por uma cerca de ripas, tendo um portãozinho que dava para um terreno baldio e, atravessado esse, a aproximadamente 30 metros, depois de um caminho de terra à margem, "caia-se" no rio Tamanduateí. Perto dali, havia uma ponte de madeira e, na outra margem, na mesma direção do meu quintal, havia um campo de futebol, onde aprendera a andar de bicicleta.
Quando chovia muito, o rio transbordava, chegando as águas até ali, perto da cerca, inundando todo o terreno baldio dos fundos. As águas não chegavam até meu quintal, porque o terreno de minha casa era mais alto. Bem encostada na cerca, do lado de dentro de meu quintal, havia uma amoreira, que frutificava sem parar. Quase que diariamente, meus dedos ficavam tingidos de vermelho das amoras, graúdas, saborosas. Certa feita, trouxera meu pai para casa, um quati. Fora um presente. Não sei dizer sua origem. Viera ele dentro de um caixote.
Foi-lhe posta uma coleira, sendo preso por uma corrente, com cuidados especiais, próximo à amoreira. Meio selvagem, meio perigoso pelos seus dentes caninos afiados, mantínhamos certa distância no começo. O quati, segundo o Dicionário Aurélio, é um mamífero carnívoro, "com sete subespécies distribuídas por todo o Brasil" (!?)
O "meu" quati, seguindo a descrição normal das espécies, tinha focinho e pés pretos, corpo meio amarelado, com cauda longa e com anéis pretos. O animalzinho preso, tinha mobilidade suficiente para trepar na amoreira.
E isso ele fazia constantemente, enroscando a corrente nos galhos. Com muito cuidado, algumas vezes por dia, íamos desenroscá-la para que o bicho voltasse a ter a mesma mobilidade. Quanto a mim, depois de algum tempo de sua chegada, querendo as amoras criei coragem e fui para perto da árvore e comecei a colhê-las. O quati permaneceu quieto de pé, cauda alevantada. Quando me sentei para comer as frutinhas acompanhando o caminho de formigas cortadeiras que passavam por ali carregando pedacinhos de folhas, entre assustado e em pânico, tentei tirar o quati de cima de minha cabeça que avançara inesperadamente, tendo a corrente batendo no meu rosto.
Mas ele não fora feroz. Não fora agressivo. Na verdade, tivera tempo de "cavoucar" delicadamente minha cabeça com as patas dianteiras. E esse carinho maravilhoso ele repetiria sempre. Subia pelos meus ombros sem cerimônia e "cavoucava" minha cabeça. Embora carnívoro, comia quase de tudo na minha casa, como um cachorro. Nasceria ali uma amizade duradoura. Eu o levava para passear no terreno do fundo, ele abria pequenas covas com seu focinho e suas patas.
Uma alegria para ele. Chegava mesmo a soltá-lo da corrente. Dava um pouco de trabalho resgatá-lo, mas quando se cansava, espontaneamente voltava. Pela amizade do quati, entendo bem a frase inspirada de Antoine de Saint-Exupéry no seu consagrado "O Pequeno Príncipe", pela voz da raposa: "- Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Ele tinha umas pequenas feridas e coceiras na cauda. Eram tratadas com mercurocromo e não progrediam. Desapareciam um tempo, mas voltavam.
Um dia precisou ser levado embora. Não me lembro bem porque. Teria sido levado para uma espécie de convento, conduzido por religiosas que possuía ampla área verde. Soube que morrera algum tempo depois. As feridas na cauda evoluíram, disseram-me, resultando em sua morte. Certamente que não fora cuidado devidamente. Ou morrera de saudades. Até hoje lembro-me dele com carinho... Uma vidinha simples, de amor e de amizade incondicionais, sem escolher dia e hora.