13/05/2012

IDADE

Nas minhas várias manifestações de temas, não poucas vezes me referi ao avançar da idade e o quadro de perplexidade que daí surge à medida em que ela se sucede desenfreada, inexorável e velozmente, pelo que a preocupação com o significado de tudo, das experiências, da vida e...da morte.
Tenho um refúgio em Águas de São Pedro, no interior de São Paulo, cidade com seu verde exuberante. Nem sempre preservado como deveria ser. Esta tarde o tempo está fechado o que me remete aos meus tempos jovens, nestas mesmas tardes, mais intensas, porém.


Agora aprecio as árvores e os arbustos floridos neste meu recanto, não de descanso, mas de meditação. Talvez apenas o descanso da alma. Estar comigo. Sei que nesses momentos se pode atingir algo de universal. Quem sabe algumas luzes se iluminem num lampejo.
Não fujo da realidade, porém, mas o passado está comigo, como disse e tenho dito.

Olhas para trás e o que vês?
Apenas um passado de sombras?
Ou há luzes que oscilam tênues?
O que fazer com tais obras?

Não há como delas escapar,
Mas, estás em silêncio aqui e agora
Perplexo com clamores e decepções
Que revolvem a mente e tudo explora?

Respiro neste silêncio um sentido de paz interior. Lá fora, além das nuvens me deparo com pássaros saltitando num pequeno gramado. O que são eles senão a inspiração dessa paz? Um brinquedo leve da Natureza?


Desconfiados, quando aparo a grama, bem-te-vis ficam por perto caçando os insetos que estranham a perda da proteção e saem à luz. Por que não se aproximam, não chegam até mim?
Seria o auge da poesia aplicada! Uma realização.

Inspira-te nos pássaros à tua janela
Que sobrevivem em árvores desalinhadas
Aproximaram-se do cinza das cidades
Encontrando vãos para suas ninhadas.

Nesta minha idade sou chamado ao perdão. Em perdoar a todos. Enterrar essas mágoas que a nada mais levam. Estou lá, mas o meu presente me clama ao perdão. Conseguirei, superarei os rancores, há mágoas, eu sei, que me marcaram pela vida. O tempo da reconciliação como filho e como pai.

O que és agora nasceu naqueles idos
Naqueles dias de alegria, dúvidas e solidão
Caminhas, sabes, para a frente, para além,
Mas, ressurgem nos sonhos apelos, a emoção!

O que fazes com tais angústias que te assaltam?
Com tantos sentidos de nostalgia e desamor?
Basta viver cada hora, ouves...cada dia
Neste mundo sem tréguas, cruéis e de...amor!

Não serei ingênuo em ignorar este meu tempo de horrores, de contradição e que me assalta. Eu vivo nele e nele sobrevivo. Quantas vezes gritei alto, dolorosamente, “o que mais terei que ver nesta loucura?” Essa vontade de desaparecer, de abreviar o meu próprio tempo. Mas, não, miro-me na minha existência e recebo a resposta: “não ainda não realizei tudo o que quero (ou preciso?), ainda que pouco seja a realizar.”
A minha idade! Minha antiga...idade!

Sabes que nestes tempos de agora
São tempos de soberba e de devastação
Os horrores se multiplicam assustadores
Rareiam os gestos de tolerância e devoção

Essas contradições que te assaltam
Falsas virtudes que te afagam
Apele para o que te resta de superação
Aquilo que estes tempos duros apagam.

Muitas vezes, ah, a minha idade, pela manhã, às vezes lembranças tênues de sonhos insondáveis de há pouco, sobrevém aquela angústia do dia a ser vencido com seus desafios. Melhor que eu ficasse num ócio consciente, se tal fosse possível, com o que do céu enxergo, esses recantos de beleza que ainda vejo erguendo os olhos, árvores altas e floridas em volta, o meu coqueiro que dá coco, lembranças de minha cadelinha preta que não recebeu de mim todo o amor que deu...

...minhas pequenas orquídeas, minhas violetas, begônia “eterna” num cantinho que bem as protege. Extremas simplicidades.
Mas, não!
Saio para o tempo tentando encontrar qualificativos na divergência, vencer os revezes efêmeros e as vitórias também efêmeras e no final do dia, uma certa dignidade pelo enfrentamento a que me obriguei.
O que é viver nestes dias tensos, pois?

Significa não ignorar o quê em tua volta
Não significa a tudo relevar e renunciar
Não é essa uma atitude sóbria, sábia
Contra tal corrente há que resistir e lutar.

Este é um apelo solene que eclode, então
Não desistas do amor e da reconstrução
Reaja às desolações e às perdas
Porque nestes tempos tudo clama ação.

Nunca me imaginei chegar a estes tempos que para mim, neste passado que está comigo, jamais pensei que chegasse. É que eram tempos tão distantes, inatingíveis, sequer pensados. Não pelo receio da vida que se extingue e se extinguirá a qualquer momento. Naqueles tempos não havia morte, apenas a imortalidade da graça vivida.
Eis-me, aqui, agora, porém. Apenas mortal. Algum dia, uma tênue e efêmera lembrança.


Fotos (Não são de paisagens de Água de São Pedro, embora existam lá até com maior beleza):
1a. Azáleas e arbusto - Foto de Milton Pimentel Martins
2a.  Gramado "frequentado" por bem-te-vis quando aparada a grama
3a. Ramos de tipuana e espatódia entrelaçados - Foto de Milton Pimentel Martins
4. Canto das orquídeas, violetas e begônias. Já inseri fotos semelhantes em outras crônicas. 

TEMA CORRELATO: "O SENTIDO DA VIDA" DE 19.07.2013

29/04/2012

INGLÊS. AH, VOCÊ PRECISA MESMO APRENDER..


Quantas vezes tenho relatado episódios dos meus tempos de garoto atirado carregando meus grilos.
Pois, nos tempos do ginasial, eu não tremia com uma professora de inglês, da melhor qualidade?
Ela mandava preparar textos na língua para expor em classe e fazia sorteio pelo número do livro de chamada valendo-se de pedras de tômbola. Eu entrava em pânico. E se chamasse o meu número? Nem pensar.
Quando sabia que não suportaria aquela tortura, porque nada preparara eu fugia da aula, chegando a pular o muro da escola.
Esses traumas, obstáculos.
Mas, o inglês, seria o meu tormento pelo resto dos meus dias profissionais.
Tudo me conduzia para o idioma: numa das primeiras multinacionais que trabalhei, um dos meus trabalhos era traduzir currículos de americanos que fariam parte de processos de autorização para trabalharem no Brasil.
Na década de 70, na minha primeira viagem internacional pela América Latina – e não cheguei aos Estados Unidos porque tinha pavor de emudecer nos contatos com os americanos – enfrentei dois incidentes que me desgastaram.
Chego à Argentina falando um bom portunhol. Conduzido à antessala do diretor de RH me dirijo de modo amistoso à secretaria, falando portunhol.
Ah, o orgulho argentino. Reposta mal educada e lacônica:
-Yo no hablo portugués, espanõl e Inglés solamente.
Constrangido, entrei num processo de mutismo forçado como se a secretaria não existisse e eu não estivesse na Argentina. (*)
No México, em visita às pirâmides de Teotihuacán nas proximidades da capital, hospedado num hotel voltado para hóspedes americanos, passei maus bocados em muitos momentos culminando com a excursão, porque toda em inglês. (1)
Fazia-me de mudo. Nada era comigo. Que tormento!
Aí, tardiamente, estudei muito mas concluíra pelas minhas dificuldades reais com o idioma.
Uma professora de multinacional onde trabalhava chegara a afirmar:
- Você nunca vai falar inglês.
Estudando fortemente o idioma nessa multinacional eis que alguns anos depois fui para os Estados Unidos.
Já por lá, soletrava o idioma no começo com muita dificuldade. Os dias foram passando e, dependendo do interlocutor americano, esquecia que falávamos em inglês. Meus ouvidos estavam melhorando.
Prova de que estágio em país de língua inglesa, aguça a possibilidade da fluência. As palavras aprendidas em aula começam a aparecer com pronúncias variáveis.
E também se aprende o real significado de certas, digamos, pegadinhas: a sobra de refeição em restaurante que se manda embrulhar, usei o “please, dog bag” para salvar um “saldo” de pizza – aquelas adocicadas com “catchup” - que seria o mesmo que pedir para embrulhar, como me fora ensinado.
A supervisora do restaurante ao meu pedido, mostrou-se contrariada e o que fez? Trouxe-me um saco plástico e deixou comigo a tarefa de inserir o resto da pizza diretamente, sem o embrulho cuidadoso. (2)
“Dog bag”, ora.
Num jantar entre gerentes americanos e visitantes sindicais belgas – que falavam francês, espanhol e flamengo – cheguei a traduzir para um americano ao meu lado o que diziam os belgas. (**)
Naquela noite, voltei exultante para o hotel porque me convencia que poderia falar o idioma. Estava chegando lá.
Pensara no que dissera aquela professora:
- Eu a derroto!
Mas, depois dessa viagem, raramente precisei do idioma e ele foi sendo enfraquecido. Alguns anos se passaram.
Muitas vezes, nesses pesadelos acordado em que tinha que me valor do inglês, no sonho me vi em situações nas quais falava o idioma com bastante fluência.
Pois é, falava inglês dormindo, sonhando, mas sofrível acordado.
Anos depois, há uns três anos, voltei aos Estados Unidos a passeio.
Quão decepcionante para mim! Num dado momento, num “fastfood” precisava de uma colher – mas onde estava a palavra?
Apontei a colher para a atendente:
- Ok, you need a spoon!
- Yes, respondi logo.
Aquela professora me vencera.
(E a dizer que fui “sócio” oculto de uma escola de inglês!)

Referencias no texto:
(*) O orgulho argentino ainda prevalece. Há alguns anos, não tanto, lá em Buenos Aires pergunto a um guia turístico argentino orgulhoso qual banco fora adquirido pelo Itaú que possui várias agências em Buenos Aires.
Resposta do meu interlocutor:
- Nenhum é apenas uma franquia do Itaú.
Não consegui conter o riso irreverente. O Itaú vendendo franquia...

(**) “Flamengo”, conforme a Wikipédia: Flamengo (Vlaams) é o nome dado à língua neerlandesa à falada na Bélgica. Não existe nenhuma língua flamenga exceto o próprio neerlandês, que é a língua oficial principal na Bélgica: 60% dos belgas vivem numa zona onde o neerlandês é a única língua oficial. O francês e o alemão também são línguas oficiais no sul do país. O neerlandês é falado em toda a Flandres, da costa até Limburgo, embora Bruxelas, no centro da Flandres, seja oficialmente bilíngue (neerlandês e francês em condição de igualdade), o resto da Flandres é unilíngue.

(1) Ver crônica “Pirâmide de Teotihuacán e os arrepios da brisa” de 04.04.2010.
(2) Ver crônica “Camarões” de 14.10.2010

15/04/2012

POETA, CANTAI, CANTAI AS ILUSÕES DESFEITAS

I Minha juventude foi passada na cidade de São Caetano do Sul. Quanto já disse! Aos trancos e barrancos, em meio a flertes e paixões, de regra com meninas bem situados, economicamente, fui me envolvendo no meio estudantil e nem sei dizer como é que me envolvi com a imprensa nanica na cidade – nanica mas influente. Ainda me lembrarei. Naqueles tempos, São Caetano brilhava no ABC. Em plena ditadura, todo mundo meio desconfiado de tudo – olha o que fala, pense escondido! – a cidade fervilhava. E foi nessa onda que obtive alguma projeção na cidade, julgando-me alguém cujo futuro reservava a missão de promover grandes transformações sociais. Não importa o que pensavam meus interlocutores, tão malucos quanto eu. Para mim, eu era mais eu. Acho que o ano de 1965 foi a coroação de tudo em que me meti. Um ano doirado. Mas, já aí a idade me chamava. Afinal, colegas cdf já estavam ingressando nas melhores faculdades, especialmente no Direito do Largo de São Francisco. Não consegui chegar perto porque a despeito desses encantos eu era mau estudante. O acaso – ou a sorte – me abriu as portas para a PUC- SP. Teria que trabalhar para pagar a faculdade, fosse ela aonde fosse. Embora envolvido com políticos, um pouco por falta de coragem outro pouco por falta de estrutura não pensei em enveredar para a política. Trabalhando aqui e acolá, haveria que, num dia, encontrar um emprego que não me anulasse, que eu pudesse desenvolver os trabalhos com a mesma desenvoltura que tivera na imprensa local e nos movimentos estudantis que há pouco deixara, além de me formar no Clássico no mesmo ano. 

  II Não demoraria muito, fui trabalhar na principal multinacional da cidade (automobilística). Um choque tremendo. O supervisor tinha lá seus “grilos" a resolver, porque mal resolvidos - esses caras que um dia pensaram em ser padres -, tinha atitudes intempestivas e abusadas. Marca da ferradura. Ah, sim, tenho até hoje uma marca dela no peito já cicatrizada. Mas, dá para ver... Não posso dizer que tudo foram desenganos. Foi lá que viajei de avião pela primeira vez, foi lá que conheci Brasília, foi lá que aprendi a dirigir para valer, foi lá que me desinibi no seu âmbito ministrando palestras para supervisores mas, também, foi lá que ia encher o tanque do carro do chefe com alguma regularidade, ia colher assinaturas de documentos lá pelos fundos da fábrica e algo que me marcou muito: com a perua Veraneio da empresa rumei muitas vezes pela periferia mais periférica de São Paulo tentando achar empregados (os carinhosamente denominados “peões”) a ponto de me obrigar a compulsar o livro dos horrores no IML aquelas fotos “no estado em que se encontravam as vítimas”, para tentar identificar um empregado desaparecido. O ar por ali era ruim, odor de...carniça! Restos mortais... Muitos “desaparecidos” flagrei em pequenos botecos jogando bilhar com uma dúzia de cervejas já consumidas. Aquelas desculpas constrangedoras pela falta ao trabalho havia dias... Eu me convertera num operário de relações trabalhistas. Com o tempo e por conta do salário, dos laços familiares nascidos, fui me adaptando e, de certo modo, me anulando, aquele sentido de perda por tudo que julgava havia feito mas, como tudo na vida tem o outro lado, houve também momentos de empolgação. Mas, depois de tantas multinacionais, com tanta submissão hierárquica, me tornei retraído, as desilusões que me abatiam. Convivendo com algumas mediocridades. 

  III Numa das últimas vezes em que frequentara a pizzaria do Satriani – fenômeno -, no Ipiranga com a família, notei que no balcão de bebidas, um sujeito de aparência cansada, cabelos grisalhos, barba alta também grisalha, trabalhada, me olhava meio de lado, de modo discreto. Minutos depois, dirigi-me em sua direção, para pedir refrigerantes. O sujeito me encarou por alguns segundos, olhar ansioso e perguntou: - Você não é o advogado, que trabalhou na G.? Meio surpreso porque não o reconhecera, encarei-o, tentando me lembrar de onde teria havido algum contato com o interlocutor. Mas, o homem grisalho se apresentou: - Eu sou F., que trabalhava na área de projetos. Lembro-me bem de você, pelas palestras que você ministrava no curso de formação de supervisores. Esse ex-colega tivera atuação profissional destacada na multinacional a partir de suas sugestões, amealhando prêmios importantes, pelas alternativas e ideias que formulara em inúmeras oportunidades, reduzindo custos de operações e melhorando o próprio produto final. Trabalhara por mais de 30 anos para a empresa e para nenhuma outra. Fidelíssimo. Sua saída fora suave, conforme relatou. Sua demissão fora anunciada com calma. Recebera homenagens por tudo o que fizera. O primeiro mês do desemprego, para quem se envolvera tanto com a empresa, parecera um período de férias meio longo. Mas, os dias foram passando e, num certo momento, deu-se conta de que as férias seriam permanentes. Alguns meses depois, angustiado, entrara num estágio de depressão brava, tendo que ter assistência médica por meses. Chegara a se esconder num quarto escuro por horas, rejeitava ver ou falar com alguém, quem fosse. Relatara ele tal experiência, com muita emoção, ainda, concluindo: - Tudo isso porque para mim a G. fora uma extensão de minha vida e porque muitas das minhas ideias foram aplicadas diretamente nos produtos. Pela perda disso tudo sofri muito, mesmo nada tendo a reclamar dela. Para superar esse vazio, associara-se à pizzaria e estava “levando a vida pra frente”, conforme explicou. 

  IV Deparei-me muito com situações dessas, ex-empregados que desempenharam funções gerenciais que se vincularam tanto à empresa que não tinham outro assunto para conversa que não os “bons tempos” nela. Reúnem-se para relaxar mas o relaxamento se concentra nesses tempos do emprego, do feito e do não feito. Do ruim e do bom. Quanto a mim, depois de tantas multinacionais automobilísticas que trabalhei, não adquiri esse “hábito”, porque além do meu empenho profissional algo me provocava na interioridade e aquela angústia consequente. Saí delas, da última, de modo meio melancólico, porque retraído sim, mas minha sobrevivência fora sempre por eficiência profissional e não política. Saibam que há muita política por trás dos muros das empresas. 
(1) Quanto às desilusões foram muitas, tinha, talvez ainda tenha uma veia jornalística, mas é ao Direito que me curvo por tudo – pouco que seja – que conquistei. Até hoje. Há muito que relatar.
 (2) Poeta, poeta, cantai as ilusões desfeitas. 








  Legendas: (1) V. crônica “Pensamento forte” de 17.11.2010 (2) Crônicas relacionadas. São muitas: De 2009 19.04 – Versos para ninguém – dias de ingenuidade (I) 26.04 – “Tempos modernos” 03.05 – Versos para ninguém (II) 30.05 – A academia de São Paulo 21.06 – Raízes sancaetanenses (I) 11.07 – Raízes sancaetanenses (II) 03.11 – Encontros e desencontros De 2010 11.04 – Ternura, essa palavra feminina...(?) 14.12 - Camarões De 2011 17.04 – “Sermão da montanha, fragmentos históricos”

01/04/2012

“PAIXÃO MAL RESOLVIDA”

Não me chame de Leocádio. Não escolhi e não gosto do meu nome. Me chame de Leo, por favor. Leo lembra leão. Signo, de virgem, fazer o quê? De setembro. Gosto de astrologia, mas não esses astrólogos que fazem horóscopos diários, sabem?
Caras, há uns bons anos trabalhei numa grande empresa, num serviço chatíssimo. Não dava para aguentar. Tinha que cadastrar fichas guardadas nuns caixotes dos quais saiam até tesourinhas. Dava para aguentar?
Sem computador, faz tempo!
Mas, diariamente, de manhã e a tarde era servido o sempre esperado cafezinho e lá vinha uma humilde copeira, despejando a bebida quentinha para todo o salão.
Depois, com uma jarra de inox alvíssima enchia os copos com água dos gerentes, uns três nas salas em frente.
Tinha a impressão que sempre que chegava até à minha mesa, ela fazia algum gesto simpático. Servia o meu café e quase segurava minha mão. Roçava nos meus dedos.
- Bom dia senhor; boa tarde senhor.
Nesses meses todos entrei num processo de incontrolável paixão.

Saibam que naquela minha mesa acinzentada e gasta havia momentos de folga.
E esperando todas as manhãs e tardes a copeira, a minha Deise – um nome americano para margarida -, numa dessas folgas, rabisquei uns versos que irradiavam a minha paixão:




Menina, sua humildade é que me inflama
Sua voz de poucas notas doces e suaves inspira
Menina, olha por um instante a este que a ama
Sorri tão lindamente para este que mal respira.


Esta Deise, sua imagem, ficou comigo até há pouco. Ou talvez esteja até hoje. Achei que fosse uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, porque não era possível que eu não a esquecesse.
Ai, soube de uma astróloga conceituada que respondia consultas feitas por carta.
Escondido, escrevi uma carta informando meus dados pessoais, nome, signo, essas coisas. Perguntei se nesse caso seria uma paixão mal resolvida num passado remoto da minha vida. Numa encarnação passada.
Passou um tempo, esqueci completamente da consulta. Não da Deise.
Uns dois meses depois, a resposta da astróloga veio lacônica:
“Senhor Leocádio, pode até ser uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, mas está me parecendo que estou diante de um Leão virgem mal resolvido. Hoje!”

Fiquei surpreso e ofendido com a resposta. Tentei esquecê-la mas não havia jeito. Ela martelava na minha cabeça:
- Ora, pode ser que a astróloga tenha razão. Onde estará Deise. Envelhecida?

Seguramente sequer sabe quem eu sou ou fui. Vai se lembrar de modesto empregado e sua mesa gasta? Que esperava ela aparecer com o bule? Ora...
Comecei a lutar contra o “vazio”. Na hora do almoço, o perfume do feijão recém-cozido delicioso aguça a minha fome. Minha esposa cantarola na cozinha.
Mas, continuo não gostando do meu nome. Tenho que conviver com ele...
Prefiro Leo. Leão.

18/03/2012

MEUS TEMPOS DA CALÇA CURTA



Meus caros, sinto aqui no peito que sou tudo aquilo que vivi – e quem não é? indaga minha vã filosofia -, todas as influências, a minha morada em bairros pobres, meus pais, irmãos, amigos e aqueles nem tanto e, principalmente, a influência de minha mãe.
Não há jeito. Agora recostado no meu banco na varanda, naquele silêncio de Águas interrompido pelos latidos dos cachorros vez ou outra – um cachorro late tal qual a minha cadelinha Preta que perdi -, viajando entre as estrelas um tanto ofuscadas pela iluminação pública nas ruas, me pergunto sobre tudo, especialmente essa passagem pelas várias estações da vida parando numas, perdendo outras e, por fim, rememorando nesse silêncio as experiências que amealhei em todas aquelas nas quais desembarquei. Bate o vento já de outono.
Nesta noite retornei aos tempos da escola primária, na qual convivi com professoras excepcionais, aquelas mulheres dedicadas e suas aulas inesquecíveis. E naqueles tempos machistas demais. Por onde andará a dona Olga, professora substituta que no meu último ano do primário nos ensinou o ano todo. Terá já viajado?
Como prêmio pela minha dedicação aos estudos fui presenteado por ela com um livro, “Os Três Mosqueteiros” com dedicatória enaltecendo meus esforços. Infelizmente, tantos anos depois, não consegui mais encontrá-lo.
Eu tinha apenas uma calça comprida. De todos os jeitos, naqueles últimos meses da escola, evitava ir às aulas vestindo calça curta. Afinal, estava me formando.
Chegou a data da formatura e haveria festa na escola.
Poucos dias antes tento convencer minha mãe de que iria receber o diploma vestindo calça comprida:
- Mas, você não tem calça comprida. A que você usa está muito feia. Você irá com aquela calça curta azul marinho que fica muito bem em você.
Protestei o quanto pude, não chorei é claro. Afinal, já me sentia apto a exibir calça comprida bem ajeitada...como chorar?


Não sei bem, mas acho que era o mesmo “uniforme” de gala de minha primeira comunhão, dois anos antes. Já imaginaram calça curta e paletó? (1)
Talvez não fosse. Não sei. Em dois anos deveria ter crescido alguns centímetros.
Na véspera insisti com minha mãe, mas ela respondeu a mesma coisa:
- A calça curta azul marinho fica bem em você.


No dia, manhã meio nublada, não teve jeito. Contrariado, lá fui eu de calça curta, envergonhado, olhando para todos os colegas que usavam calça comprida, não escondendo o meu despeito.
Parecia que todos me olhavam para se certificar da minha roupa de menino. (2)
Tive a impressão que até a professora Olga tivera essa curiosidade. Rosto enrubescido. Pego de calça curta.
Sobrevivi à calça curta naquele dia de festa e, como já escrevi nalgum lugar, do excelente aluno que fui – no 3° ano do primário ganhei um livro da professora por não ter dado nenhuma falta no ano todo – tornei-me a partir do ginasial mau aluno.
Penso nisso, nessas imagens, com leveza e volto a viajar pelas estrelas. Há os instantes das graças. Há que aproveitá-los.


Legendas:


(1) V. minha crônica “Regressão II: Primeira comunhão” de 24.10.2010
(2) Hoje as “bermudas”, calças curtas ou “shortões” com bolsos, dominam o meio informal e esportivo. “Bermudas”, porque popularizadas nas Ilhas de quem emprestaram o nome. As Ilhas Bermudas são também famosas porque compõem um dos vértices do misterioso “Triangulo das Bermudas”.

03/03/2012

VALORES E PENSAMENTOS QUE DESAFIAM (e até “incomodam”)

Esta crônica, escrita em dezembro de 1998, que contém “valores ideais”, em cada instante se chocam eles com o dia-a-dia do próprio cronista atônito. Ela antecedeu à crônica, “Dos sem religião – Aqueles que acreditam mas não professam” de 27.02.2009. Foi nessa crônica que me proclamei "agnóstico moderado". Contradições que assumo porque nada sei.

Um brocardo popular consagrado, que insere certo chamamento para as coisas da vida diz: "deste mundo nada se leva".
De tal simplicidade, constitui-se num verdadeiro axioma. Da matéria nada se leva: deixam-se aqui somente lembranças, intensas ou não, segundo a forma de viver imprimida pelo desaparecido. (1)
E são exatamente esses aspectos que chamam a atenção para uma maior reflexão. Ao longo dos séculos o homem, à medida que vai adquirindo conhecimento dos fenômenos exteriores, acaba se questionando sobre algumas perguntas que, para muitos, tornam-se angustiantes: "Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?" (2)
Essas indagações que se manifestam na interioridade do ser humano, encontram-se nos escritos sagrados de diferentes correntes religiosas e filosóficas e de filósofos do calibre de Confúcio, Platão, Aristóteles... (3).
E acima de tudo, mais que uma recomendação, quem sabe um apelo, a inscrição "conhece-te a ti mesmo", esculpida no arco superior (dintel) do templo de Delfos. (4)
Essas questões maiores, porém, parecem estar reprimidas na intimidade de cada um. Demais, essas reflexões quando assomam tendem a elevar a mente perplexa para uma indagação ainda superior que se perde no silêncio: quem é Deus?
Mas, neste mundo em que os interesses maiores são as proposições econômicas e a sobrevivência, o dia-a-dia, o que já não é pouco, tais valores e mesmo Deus, têm ficado em segundo plano.
Daí decorrem duas situações que podem ser comparadas a episódios bíblicos: a adoração do "bezerro de ouro" pelos judeus, enquanto Moisés conversava com Deus no Monte Sinai e a "confusão das línguas" em Babel.
Embora se reconheça que haja uma intensa procura pela espiritualidade no mundo pelas religiões que nascem, vem predominando, ainda e há muito, agora com maior ênfase, a linguagem do dinheiro, dos índices das bolsas de valores, o "bezerro de ouro" e, claro, resultando na confusão, no desentendimento, na angustia entre os países. Confusão das línguas...
Nestes tempos, esses valores superiores têm sido invocados tão somente naqueles minutos que duram um ato religioso, um sermão, uma meditação. A partir daí, porque não há tempo para questionamentos em profundidade, ao dar-se de ombros para o "conhece-te a ti mesmo", volta-se para o mundo do chão batido, dos juros e dos rendimentos.
Mas, a 'língua universal' que traz a compreensão, é a da espiritualidade, do amor e da solidariedade. Com certeza aquele que se esforça para cultivar esses valores sabe que seus compromissos não se encerram num momento de oração. Ele agirá com esse sentimento não só perante seus semelhantes, mas também amando a natureza, que alguns chamam de "mãe".
Os desvios de valores, o cavoucar no garimpo da riqueza vazia, tem trazido também imensos prejuízos ecológicos à fauna, à flora, à atmosfera, aos rios e oceanos que recebem cada vez mais imensas cargas de detritos e poluentes, em quantidade tal que impede a química natural da recuperação: "Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele". (5)
Esses todos que superam as agruras do cotidiano, precisam falar abertamente em amor, solidariedade, na falta que Deus vem fazendo nas relações entre os homens e na preservação da natureza, no respeito que merecem todos os seres que ela protege galhardamente, a despeito da ação destruidora do homem.
Será neste mundo, que nos conheceremos a nós mesmos se assim desejarmos ou nos esforçarmos. Por isso, deveremos cuidar que haja um sentimento equilibrado para que as gerações futuras o herdem. Há tempo ainda.
Porque à nossa volta há ainda resquícios do paraíso - imerecido - que foi este chão que estão sendo gradativamente destruídos por nós, agressores inconsequentes, mal-agradecidos, decaídos.
Mas, o "conhece-te a si mesmo" é um apelo à reflexão sobre esses valores que assaltam a alma com menor ou maior intensidade, porque aqueles outros do mundo ao alcance da mão nada levaras. “Tenho dito”.

Legendas:


(1) V. “Da vaidade ao pó (Reflexões sobre a “terra prometida”) de 24.04.2011.
(2) V. “Enigmas, penitências, I Ching” de 05.02.2012.
(3) Encíclica “Fé e Razão” do papa João Paulo II
(4) Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o funcionamento do oráculo (de Delfos). Descreveu as relações entre o deus, a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu instrumento e o pneuma (gás, vapor, respiração, daí as nossas palavras “pneumático” e “pneumonia”) ao plectro (varinha para vibrar a lira) com o qual ele a tocava para fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um elemento que desencadeava o processo. De fato, era o treinamento prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.
Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma. Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido, “como se viesse de uma fonte”, no ádito (no caso, câmara sagrada) em que a pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma na antecâmara onde aguardavam as respostas.
A ÚNICA REPRESENTAÇÃO (acima) da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.
A peça foi feita por um oleiro ateniense em torno de 440 a.C.

Fonte: http://www.philosophy.pro.br/oraculo_de_delfos.htm.
V. “Minha entrevista com Sócrates” de 16.10.2011
(5) Papa João Paulo II, Carta Encíclica "Centésimo Ano" de maio de 1991.

Foto:
"O Pensador" (francês: Le Penseur) é uma das mais famosas esculturas de bronze do escultor francês Auguste Rodin de 1902 (Paris). "Retrata um homem em meditação soberba, lutando com uma poderosa força interna." (Fonte: Wikipédia)

21/01/2012

SANTOS DUMONT vs IRMÃOS WRIGHT. Pioneirismos

Lembro-me que a primeira vez que entrei num avião, trabalhava numa multinacional e, principiante, havia que cumprir uma audiência em Belo Horizonte.
Ficava imaginando como me comportar no avião. Entrei naquele “pássaro”, trêmulo e cheio de dúvidas.
Minha ansiedade foi ao extremo no momento em que ele se pôs em movimento e em minutos cortava as nuvens.
O avião tremia um pouco. Eu olhava para baixo angustiado com minha acrofobia (medo de altura) não conseguindo entender como um mostrengo daqueles permanecia apoiado no nada, no éter.
Demorei em me acostumar com essa ideia, com a ideia desses aviões cada vez maiores transitarem pelo ar com absoluto equilíbrio, carregando toneladas e toneladas não só pelo seu próprio tamanho, como centenas de passageiros e respectivas bagagens. E cargueiros enormes.
Assim, me empolgo com aviões, preferentemente quando fora deles. Mas, já levitei dezenas de vezes da poeira onde se assentam os pés.
Acho até hoje avião “impossível” mas quantas vezes já singrei os ares com essa impossibilidade!
Pois bem, outro dia, um canal a cabo exibiu as 100 invenções que mudaram o mundo.
Uma delas era o relógio de pulso, “oficializado”, por Louis Cartier, porque um aviador, “informava” o documentário, havia pedido ao joalheiro que fizesse um novo modelo porque na condução de seus balões as mãos ocupadas não podiam manejar relógio de maior padrão.
Não foi mencionado no documentário o nome do aviador, que no caso era ninguém menos do que Santos Dumont. O brasileiro é mui frequentemente, sempre que possível, ignorado em tudo que enalteça os seus méritos.
E a Wikipédia assim conclui a história do relógio de pulso:
“Cartier colocou então uma pulseira de couro num dos maiores modelos de relógio de pulso femininos da sua coleção, e em março de 1904 ofereceu-o a Santos-Dumont. Este episódio leva a que se considere Santos Dumont como o responsável pela popularização do relógio de pulso entre os homens.”
Tenho comigo velha edição da “Encyclopedia pela Imagem”, um trabalho publicado em fascículos pela Editora Lello, de Portugal, que circulou pouco tempo antes da década de 40 do século passado. Há que destacar que os fatos documentados sobre aviões estavam bem mais próximos dessas edições – pouco mais de 30 anos e menos quando naquela atualidade.
E ademais o texto é uma tradução de autor francês, o que garantiu alguns créditos aos seus patrícios, mas no que concerne ao aparelho dos irmãos Wright, o relato é o seguinte:
“Estes (os irmãos Wright) realizaram aparelho que era preciso lançar artificialmente, mas que podia voar e até levar um passageiro.”
Aparelho lançado...por catapulta...
Deu-se imensa publicidade, diz a velha enciclopédia, pelo que abafou todos os outros inventores e pesquisadores, inclusive os franceses. “Passava-se isto em 1908.”
Mas, diz o capítulo:
“Já em 1906, dois anos antes dos irmãos Wright, o ilustre brasileiro Santos Dumont efetuara em voo de cem metros.” (pelo sempre lembrado 14 – Bis).
Essas informações são imparciais e colocam as coisas nos seus devidos níveis. O avião dos americanos precisava ser lançado...

Mas, acompanhando o esforço americano e aliados em atribuir aos Irmãos Wright a invenção do primeiro avião que se alçara acima do solo em 1903 há comprovado o seguinte: até 1906, quando se deu o voo precário do 14-Bis, os irmãos Wright haviam aperfeiçoado tecnicamente seus aparelhos de modo superior ao 14-Bis. Por isso, só raramente o nome do brasileiro é lembrado como inventor do avíão e quando ocorre, é tratado como inventor coadjuvante.

E a enciclopédia, daqueles idos observava sobre o futuro:
“Assim, por progressos sucessivos, o homem chegou a realizar a conquista definitiva da atmosfera, deste elemento gasoso que lhe parecia vedado para sempre. E, finalmente, por um último esforço do seu gênio, elevou-se na atmosfera num aparelho mais pesado que o ar.
E este sucesso aumenta ainda mais as suas ambições. Já sonha ultrapassar o limite da atmosfera, que lhe parece agora uma prisão, ainda que outrora encarnasse a sua liberdade. Sonha em transpor as camadas aéreas, lançar-se no espaço à conquista de outros mundos, ir por pé nas “terras do céu”! Serão realizadas essas ambições? Sonhos, dizem uns. Esperanças, exclamam outros”.

E isso aí.

Imagem: Abertura da "Enciclopédia pela Imagem" no capítulo "A Aviação"

Estampa do 14-Bis (Wikipédia)

Talento brasileiro para a aviação. Avião Embraer 195

08/01/2012

NUM DOMINGO CHUVOSO. Reflexões. Dos que vão e não vão mais cedo


Até acho que já escrevi sobre domingos chuvosos, especialmente quando a chuva avança pela tarde naquelas horas em que pouca vontade há de se fazer alguma coisa. A preguiça. É domingo, deixa chover. O dia não é “feio”, como alguns classificam, apenas choroso.
Mas, no dia seguinte, quando o sol desponta pela manhã, parece que as árvores sorriem. Receberam seu prêmio.
Nesse 1° do ano, domingo, a chuva foi calma, o que me faz recordar cenas do cotidiano que eu não consigo explicar. Uma que sempre está comigo se refere à simplicidade extrema: duas garçonetes que não me lembro dos rostos, sequer, nos restaurante de uma multinacional para a qual trabalhei, elogiando uma jarra de inox como se um troféu. Por que essa imagem não se apaga?
Mas, nessa mistura de imagens, de repente caio num vazio, no vazio da absoluta ignorância. Não me ocorre, tal qual digo sobre a chuva, deixar a vida (também) rolar.
Não, não consigo. Não sei o que me espera o dia em que abruptamente ou pela velhice extrema deixar as surpresas e dores deste mundo meio sem sentido. Porque eu também faço a célebre pergunta, a pergunta que não quer calar, o que faço aqui? Encaro-me no espelho e confesso que muitas vezes não sei o que represento no meio dessas atribulações todas.
Se houver vida depois da passagem para o outro lado, como terei lá que viver? Afinal tenho por aqui, também, minhas delícias, minhas surpresas, delírios - converso com a Lua, a jarra de inox - e meus profundos desgostos. Terei o livre arbítrio de uma boa preguiça numa hora qualquer?
Mas, aprendi que a vida é assim, de delícias, estranhezas e desgostos. Por isso gosto de estar aqui.
As coisas são realmente complicadas, a partir das diferenças entre os semelhantes, alguns tão brutais que são menos semelhantes. Quanto já escrevi sobre isso! Quanto?
O que me chama mais a atenção e me põe sempre em alerta é a seleção aparentemente injusta dos que são chamados para entregar seus postos nesta onda de vida e partem para algum lugar – não sei que lugar é esse. Mas, há algum lugar?
Se der crédito aos sonhos, tinha um amigo que carregava algumas lesões congênitas que não permitiram que resistisse muito tempo e partiu. Um dia sonhei com ele: lá estava ele com seu rosto não muito definido, mas era ele, indicando que residia numa espécie de vila, com casas assobradadas, talvez geminadas com jardim e verde florido em volta. Será que as coisas são mesmo assim?
Que tipo de serviço será exigido de cada um nessa nova etapa?
Se aqui a regra é “trabalho”, não parece que nessas novas paragens para onde levados, serviços não sejam exigidos. Não acredito naqueles augúrios normalmente pronunciados: “descanse em paz”. Não creio que haja descanso. Paz, talvez...(?)
São mais que perguntas, verdadeiros dilemas que me assaltam.
Neste domingo de chuva, por acontecimentos de agora e do passado não escondo a perplexidade ao saber de amigos e figuras brilhantes, na faixa dos 40 anos, muitos saudáveis enquanto outros enfrentando graves doenças, dotados de conhecimentos a oferecer aos semelhantes mas que deixam a vida precocemente de modos diferentes. Alguns abruptamente num ataque impensado, impactante. (*)
Fora uma escolha proferida em outra escala?
Enquanto isso, no outro extremo idosos, que a muito custo mantém sua dignidade, nos desafiam a compreender esse critério de “escolha”...a dedo (?).
Seria uma advertência presente, que “a divina mente escola”, para lembrar de nossa fragilidade de um modo ou outro?
Que tudo deixamos nos lugares onde deixamos? De que fomos privados dos meios de haver com nossas coisas às quais nos apegamos?
Porque se trata de sono profundo que não nos é permitido acordar.. Romperam-se os fios. Há quem diga que vagamos no éter – por algum tempo...segundo o merecimento (?) Mas, há tempo?
Ficam as lembranças boas ou ruins entre os próximos mas que o tempo vai apagando. Inexoravelmente.
Estas questões todas voltaram a mim e me emociono com a minha ignorância nisso tudo. Serei digno, um dia em obter alguma resposta?
Provavelmente passado esse dia 1° do ano, o último de longos feriados, chamado para os meus serviços a que estou obrigado, pela vivência e sobrevivência, esqueça momentaneamente essas indagações todas.
Até o próximo 1° do ano, quem sabe, se der tempo.

(*) A propósito da morte precoce do jornalista e escritor Daniel Pizza, vítima de AVC aos 41 anos.
A poesia abaixo, que achei muito bonita, de autoria do amigo Caio Martins tem muito a ver com a crônica “Num domingo chuvoso”. Constitui-se outra forma de abordagem, variação do mesmo tema porque,
“O que corrói
é a espera...”

A ESPERA


Caio Martins


Te olhas ao espelho,
infinitesimal partícula cósmica:
- Que horror, a consciência do mundo!
Khronos, O Implacável,
comeu tuas façanhas,
as entranhas de teus versos
e não és, Poeta, senão
anti-herói de ti mesmo.
Feneceram-te musas e vestais,
as prostitutas do Templo
envelheceram...

- Que trágico! Que lindas... que loucas eram!

Aminimigos mortos
não tens mais batalhas:
as tuas guerras
perderam-se no pó da história
- da memória -
a esmo...

Nas tuas retinas estilhaçadas
não mais cabe o mundo;
ao redor ruge o caos
aos cacos.
Estás só!
A solidão, se nem a morte,
atemoriza... (Arre!)medos.

O que corrói
é a espera...

(img: cvm - estilhaços - 2012)

Fotos que ilustram a crônica são de Milton Pimentel Martins

25/12/2011

PEQUENAS REFLEXÕES, SIMPLICIDADES, COTIDIANOS

Perdões

Neste dia de Natal, não ligando nem um pouco para o papais nois, velhos garotos-propaganda do consumismo barato ou caro – afinal são eles intrometidos numa data que não lhes pertence - reflito sobre o perdão.
Do meu passado de infância e adolescência talvez me ressinta hoje e ainda de suposto não amor paterno por tudo que já escrevi. Mas, tantos anos depois, há um sentido de inocência nessas minhas suposições que devo aceitar. (1)
Pode até ser fácil perdoar, mas quão difícil esquecer. Aquelas sequelas ressurgem ao acaso, depois de tantas décadas ficadas para trás. Sei que as dores também devem prescrever, perder a validade. E olhar para o alto e obter um sentido transcendente das coisas, das experiências.
Sem nenhuma inspiração – porque não sentia na minha “alma” o que escrevera pelo que zero de inspiração e transpiração --, escrito apenas para preencher um espaço num livreto a que me obrigara (2), há décadas escrevi um poema sob o título “Compreender e perdoar”. Assim,
Que luzes são essas,
Quais são essas luzes
De tão magníficas cores,
Que invadem meu ser?
que aliviam a mente
animam viver?

Um quê universal
Algo místico, imaterial
Inspira amar
A sorrir, a rir sem cessar,
E a musa Natureza
A santa Natureza
Inspira compreender
E perdoar...

Que se pode esperar
Do homem animal,
Do pensamento material,
Do egoismo do racional,
Senão compreender
E perdoar?

Agradeço meu Deus,
Este momento,
Delicioso momento
Em que senti
Tão profundamente
Um pouco de Ti...
E compreendi,
E perdoei...

(1964)
Só me encorajei a divulgar esse poema porque hoje é dia de Natal, simbolicamente o nascimento de Jesus. E por ser o tema próprio para um dia como hoje.
Quanto ao futuro, espero que os meus descendentes não tenham sentimentos adversos quanto a mim, pelo que fui e sou e que sempre me perdoem.

Confissão

Se disser que sou próximo de Jesus e da religião, estarei faltando com a verdade. Quantas vezes me vejo cético por tudo o que já li e ouvi sobre sua alegada presença na Terra. (3)
Mas, por outro lado, nos meus momentos de angústia – e não foram poucos – ou de clamor psicológico invoquei seu nome e sua intervenção para vir em meu auxílio.
Feitos os clamores, as coisas melhoraram. Seu nome como uma oração deve soar no infinito da vida, como um mantra, desbravador ou ouvidor das agruras que atormentam a humanidade.
No meu silêncio, nos meus sonhos...

Abelhinha preta

Na véspera, estava acomodado no meu escritório, aproximou-se uma abelhinha preta, voando na altura dos meus olhos, até pousar no meu polegar, no exato momento em que lia a notícia dando conta que empresa de bebidas se responsabilizará em recolher todo o resíduo reciclável no próximo réveillon em Copacabana.

Sabia que na área verde aqui ao lado – parte dela foi “organizada e plantada” por mim e está bem arborizada – precisava de uma limpeza de garrafas “pet” e sacos plásticos, papeis.

Larguei o jornal e a abelhinha e fui para a área verde fazer a faxina.
“Fiz a minha parte”. Quase nada ou nada. Bom que se diga. Melhor não está porque ninguém faz a sua. (Assista na crônica anterior, "Apocalipse now", video "Arte do Lixo").
(Há alguns meses, um espécime daqueles marimbondos zangados, picadas doloridas, também insistiu em pousar na minha mão como se a beijasse – carinho que não merecia porque já agredi mortalmente seus iguais e fui atacado por eles - dolorosamente).
Já escrevi sobre uma dessas experiências com esses marimbondos. (4)

Águas de São Pedro

Devagar estou indo para os rumos da linda Águas de São Pedro, a 30 quilômetros de Piracicaba.
Na casinha em reforma, soube que mora uma família de lagartos.
Estou ansioso para saber que tipo de relacionamento terei com os lagartinhos e lagartões.

Essa casa tem até hoje uma placa em inglês “toca da coruja”. Mas, acho que o correto seria e será, “toca dos lagartos”.
Um dia conto o que se deu.

Amor-eira

Eu a plantei pequena, bem pequena – menos de um metro - e, embora com muita frequência perto dela, não a vi crescer...tanto.
Hoje, até ela faz sombra sobre o banco de granito que de certo modo abandonei. Foi nele, naqueles fins de tardes quentes que li boa parte dos dois volumes de “Guerra e Paz” de Tolstoi.
O tempo passou, mas não só por isso: havia uma companhia importante que se foi e que ficava comigo por lá, a minha velha cachorrinha preta. (5)
Hoje, chegando perto da amoreira, dois bem-te-vis saíram apressados de sua copa. Quem me dera eles não se assustassem com a presença suspeita. Quisera afagá-los. Mas, não é assim, a natureza os previne. Afinal, “o homem vem aí”. E com ele a maldade pode vir junta.

Legendas (crônicas relacionadas):

(1)“Fragmentos paternos” de 13.02.2011 e “Fragmentos maternos” de 08.05.2011
(2)“Versos para ninguém” de 19.04.2009
(3)"Dos sem religião" de 27.02.2009 e também "Enigmas de Jesus" de 25.12.2009 in www.votebrasil.com
(4)”Animais (zinhos) e bichos” de 10.04.2009
(5)“Dias amargos” de 28.11.2010 e “Mensagens e imagens” de 23.01.2011

Fotos e imagens:

(1) Flores “sempre-vivas”, sempre-vivo
(2) Imagem de Jesus receptivo fora da cruz
(3) A “minha” área verde que plantei
(4) Paisagem de Águas de São Pedro
(5) Amor-eira

13/12/2011

APOCALIPSE AGORA


Esta crônica foi publicada com o mesmo conteúdo em outro blog que venho mantendo, no qual a maior parte dos artigos e crônicas que lá escrevo, refere-se a temas políticos, sociais e ecológicos.
Para um blog “político” com assuntos “indigestos” devo reconhecer que esta crônica é até bem acessada.
Por conter identidade com estes “Temas”, divulgo-a aqui também com os ajustes que julguei necessários. (*)


Nem sempre o colunista consegue redescobrir suas fontes, aquelas informações que batem em sua memória, lidas nalgum lugar há décadas e que se perderam.
Mas, nesse passado numa publicação de assuntos metafísicos li que a Terra poderia suportar até seis bilhões de habitantes.
Há dez anos, essa marca foi comemorada, hoje já seriam sete bilhões.
Não de hoje, pois, tenho aquela marca na memória imaginando então, quando, atingida, quais seriam as consequências.
Curiosamente, nestes tempos de agora, na medida em que se aguça a predação ambiental, há um sentimento de que algo catastrófico vai ocorrer, algo apocalíptico, tendo como principal referência o calendário Maia que se encerra abruptamente em 21 de dezembro de 2012. Nessa data, o planeta seria então afetado por algum fenômeno natural catastrófico que modificaria radicalmente a vida conhecida, Isto é, destruição de tal ordem que a vida não seria mais esta como conhecemos.

Sete bilhões de almas realmente afetam do modo mais predatório as reservas ambientais.
Essa predação não se dá apenas pela sua necessidade em produzir alimentos e outras necessidades, mas também pelo que traz de prejuízo ambiental a tecnologia, a indústria, o lixo às centenas de toneladas.

Milhões e milhões de carros que exigem milhões e milhões de barris de combustível fóssil que por sua vez poluem a atmosfera em toneladas de resíduos.


E pior, na medida em que as necessidades de combustíveis se avolumam, a busca de fontes oceânicas tem sido desastrosa a mais não poder, com o vazamento de milhões de litros nos mares, afetando toda a fauna marinha por anos.
É afetada com essas catástrofes toda uma cadeia alimentar da qual o próprio homem dela se vale. Mas, enquanto disponível, geralmente a obtém com brutalidade, desprezando as vidas que ceifa em sua caça insana, sem sequer entender, de muitos desses animais vitimados, a própria inteligência e mesmo a aproximação amistosa que fazem perante o seu carrasco traiçoeiro. E são mortos brutalmente.

A escassez de água potável se constitui grave ameaça já havendo regiões miseráveis que não recebem ajuda ou a recebem de modo insuficiente e dela se privam sempre em maior escala.

Há a tecnologia que ativa a dessalinização das águas oceânicas que pode ser ampliada e minimizar sua escassez mas são imensos os investimentos.
Mas, não há mais tempo para suportar a poluição dos rios com esgotos e outros resíduos que tornam a água não potável, imunda. É premente a ampliação e aplicação de tecnologias do tratamento dos esgotos.
Sem qualquer propensão a levar tudo para o lado metafísico, digamos, é notória a correlação que se dá entre os vários elementos naturais. Essas destruições, o desrespeito à vida sem causa, provocam reações destrutivas num processo ‘incompreensível’ que o nosso modo de viver no dia-a-dia atribui de maneira simplista a fenômenos que sempre espocaram ao longo dos séculos e séculos.


O que se assiste, porém, é a frequência maior de pequenos e grandes eventos ditos naturais devastadores, como tsunamis, erupções vulcânicas, aquecimento global, secas, desertificações, devastações por chuvas intensas...


Há, efetivamente, indicações crescentes dos efeitos dessa desorganização ambiental que muitos não enxergam porque há a predominância da visão econômica da vida, do negócio, do consumismo e do “supérfluo necessário”, sem atentarem para os prejuízos globais que tais produtos e ações provocam no equilíbrio do planeta.

Os seis bilhões de almas, há dez anos alcançados, mantinham algum equilíbrio entre alimentos e meio ambiente. A fome em alguns países, na África, especialmente, não se dera pela escassez dos alimentos, mas por disputas políticas sórdidas que priva seres humanos do mínimo para sobreviver e também pela falta de ações solidárias de quem poderia ajudar.


Nessa linha do lucro e da linguagem do dinheiro, as florestas vão sendo devastadas, não só por conta dos pastos abertos em grandes extensões para criação de gado, mas também por exigência de amplos setores industriais.
Mas, tantos vivendo só no presente, ignorando as conseqüências no futuro, há que propagar que a preservação e reposição vegetal são essenciais para equilibrar o clima do planeta, ajustando na contrapartida técnicas do aumento da produção de alimentos nas áreas já reservadas ou devastadas.

Vive-se, nestes tempos, verdadeira babel consumista. Quanto de equipamentos desnecessários nos foram "vendidos" como essenciais a ponto de nos acostumarmos com seu uso e, mais, pelo rápido avanço tecnológico serem trocados sistematicamente por novos modelos, engrossando as pilhas de produtos obsoletos descartados. (Assista video "Arte do Lixo" abaixo).


Nem mesmo no âmbito econômico, há segurança. Os Estados Unidos em crise ainda gastando fortunas nas guerrilhas do Iraque e do Afeganistão - guerras perdidas de um modo ou outro porque as facções que se opõem à paz são criminosas sem aquela lógica ocidental em aceitar certos valores.
Aonde se situará a China, grande poluidora, até aqui indiferente aos apelos de contenção, com seus 1,3 bilhões de habitantes? Com sua produção industrial predatória? A própria Índia.
As dúvidas não param aí. Com tantas incertezas, se nada ocorrer em dezembro de 2012 nessa eclosão apocalíptica alimentada pelas grandes redes de comunicação mas que a muitos aflige como algo inevitável que merecemos passar, com certeza teremos que nos preocupar com o futuro de nossos filhos e netos.
A vida vai ser difícil de ser vivida, cada vez mais, mesmo com muito otimismo.

Esperança
Paisagens que ainda temos para contemplar.


(*) Crônica que tem relação com esta: "Qual será o nosso amanhã. E as previsões tenebrosas" de 15.06.2013

Legendas

(1) Ruas lotadas em Ambassador - Calcutá, Índia - mistura de carros, pedestres e ambulantes (foto de Randy Olson - National Geografic)
(2) Trânsito em São Paulo - Dia cinzento (Fonte: Jornal do Advogado de novembro de 2011, ilustrando artigo sobre a poluição e a relação com as doenças respiratórias)
(3) O petróleo e a sujeira nos mares, inclusive do Brasil, na Bacia de Campos - RJ (foto Google)
(4) Esgoto despejado no rio (Foto Google)
(5) Tsunami no Japão em 2011 (Google)
(6) Fome no mundo (Google)
(7) Dia de compras na rua 25 de Março / SP (Foto de Ricardo Correa - Revista Exame)
(8) Cataratas do Iguaçu (Google)