04/08/2012

UM TIPO NOTÁVEL



(Dos altos e baixos que a vida prepara)

Deu-se naqueles idos fenômenos da década de 60 onde a vida tinha um sabor de festa, de imortalidade.
Pois, naquela minha vontade imensa de me arrumar na imprensa, de escrever artigos apondo meu nome, essas coisas, fez-me experimentar venturas e aventuras.
Imaginem que num tempo a perder na memória, a lápis, escrevi uma história sobre viagem à lua. De onde a influência? Não sei dizer. Talvez porque desde sempre a lua tem sido para mim um mistério a ser desvendado.  E continua até hoje. “No mundo da Lua”.
Mas, bom que eu confesse que o português, todas aquelas regras, conjunções, análises sintáticas foram sempre dificultosas para mim.
Na informalidade do que escrevia, certa vez, em aula, fui sorteado para ler a redação, lição de casa que a professora havia passado.
Li apressadamente e ao final, “apoteótico”, conclui com sonoro “michô”.
A professora, uma senhora de óculos, não entendeu bem a palavra e eu resolvi que não a repetiria. A professora ficou perplexa e lá veio o sermão:
- Imaginem uma língua tão rica como a nossa e o senhor usa uma palavra dessas que não entendi bem, uma gíria, para encerrar sua redação. Ora, ora... (1)
Foi, então, com esses antecedentes que passei a frequentar e trabalhar em redações da pequena imprensa da cidade. Elas me encantavam.
Por que não estudei jornalismo? Porque naqueles tempos, a predominância era a advocacia.
Havia sempre presente, geralmente à tarde, um sujeito, bom amigo, se não me engano corretor de anúncios do jornal que se esforçava muito em escrever algum texto.
Mas, era muito ruim na redação. Era eu quem dava alguma forma ao que ele pretendia transmitir. Não por ser eu a melhor opção, mas por estar disponível. Ou porque levava a sério seus textos. 
E assim passo a passo, foi organizando uma coluna social, aproximando-se das pessoas destacadas da cidade.
Sua coluna se tornou, com o tempo, bem atrativa, variada.
Por conta disso, um dia, foi convidado a assinar coluna social do jornal mais importante da região.
E com ela tornou-se muito conhecido na região. A coluna levava seu nome. E todo dia, lá estava ele ao lado de personalidades, de políticos, da riqueza, convidado especial dessas festas e jantares comuns nos meios sociais, relatando os passos da grã-finagem, sem esquecer a ‘futileza’ tão do agrado do fútil: “ó Ibrahim, põe meu nome no jornal.” 
Essas expressões comuns: "nímia gentileza"; "os nubentes exultantes disseram 'sim' sob as bençãos do padre X".

Seu êxito era total, merecido pelo esforço em melhorar e a facilidade que tinha em se relacionar com essas pessoas que, afinal, conquistara, tornando-se um “deles”.
Alguns anos depois, talvez nem tanto, sua coluna social deixou de se publicada. Outro nome apareceu no seu espaço.
Este meu amigo desapareceu completamente, pelo menos do meu ambiente de trabalho.
Um dia, tempos depois, eu o encontro casualmente. Estava carregando caixotes num caminhão.

O brilho da vaidade perdera a luz. Mas, a humildade tem seu brilho, seu valor. Na verdade, os extremos se tocam.

 Legendas:

(1) O dicionário Michaelis registra a palavra michar como verbo intransitivo - gíria. Assim: vint gír. Diminuir ou perder o valor; perder a coragem. Eu usei a pronúncia errada ("michô"), com o sentido de “acabou”.

Fotos:
1. Pavão albino
2. Pés no chão, na areia. Palmilha gasta.


24/07/2012

ESSAS COISAS DE MATO GROSSO




Uma vista rápida de pontos de Mato Grosso, em pouco tempo, revelam muito. Cuiabá está em obras, por conta da copa do mundo de futebol. No geral, não vi pontos altos de beleza, como se dá em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.
Mas, nas duas cidades há muito que fazer como de resto se observa em todo o país, em locais mais em locais menos.
Quanto às paisagens há muito que ver, melhor, que ver e até repensar sobre certas formações geológicas que intrigam.
Na Chapada dos Guimarães, aquela imensa área “cavoucada” na qual ecoa no fundo a queda d’água, refinada, o véu da noiva. Tempos de seca, porém.



Mas, o que impressiona é, realmente, o mirante do denominado marco Geodésico, que seria o centro da América Latina... mas os cálculos levam o centro geodésico do continente para Cuiabá.
Pois é nesse mirante que ao longe, do outro lado, se avistam imagens diminutas da capital, não há como evitar: há um sentido de desafio naquela formação lá embaixo, uma imensa cratera. Seria demais perguntar quais fenômenos na crosta terrestre produziram aquele acidente? Quando?


É só querer, despojando-se do micro comércio lá atrás, e de tudo o mais em volta que perturbe – afinal, todo mundo tem direito ao silêncio – há o acometimento de uma tênue emoção que leva a um sentimento místico. E nesses instantes, apesar de tudo em volta, um sentido de paz, mas não a meditação – esta só se torna viável no silêncio da reflexão.
 A chegada em Poconé propicia atingir a Transpantaneira, estradinha de terra, com pinguelas de madeira mal constituídas, mas que, bem ou mal permitem atravessar os riachos que a cruzam.
Há imensas áreas desmatadas no pantanal, pastos com bois e sem bois, muitas em vias de degradação clamando pela recomposição natural.
Nos trinta quilômetros adentro, nesta época de seca, se torce para cruzar com animais livres naquelas matas que parecem adoentadas.
Mas, não. Poucos. Jacarés negros ao sol nas margens, uma paca cruzando a estrada, pássaros múltiplos e periquitos barulhentos, tucanos nas alturas...
Um raro tuiuiú – ave com sua cabeça e pescoço negros – não é bonito. Mas, bonito é a sua liberdade de bicar tranquilo naqueles charcos em busca de alimentos.


Numa pousada para uma parada rápida, recomposição e descanso, uma surpresa porque impensado para os caipiras das cidades.
Numa pequena casinhola de madeira, quirera espalhada na sua também pequena base retangular, aguça o empenho das abelhas em obter...exatamente o quê?
- É o melzinho que tem o milho naquela parte branca, explica o caboclo.
Ora, pelo modo como elas se empenham sobre o milho picado, quase imóveis, parecem embriagadas ou querendo se tornar.


Não ligam em dividir a “iguaria” com dezenas de cardeais, aqueles pequenos passarinhos, de penugem vermelha na cabeça que se apoiam na casinhola e também avançam sobre a quirera.

Estrangeiros circulam por ali, hospedados, dias de simplicidade e convivência.
Fico imaginando acordar naquele local tão diferenciado pelas seis horas da manhã e respirar fundo ao som da natureza.
Um privilégio que, quem sabe, um dia terei.    

Fotos:
(1) Descida à Chapada dos Guimarães
(2) "Véu da noiva" que se vê daquele mirante
(3) Mirante do "marco geodésico"
(4) Tuiuiú 
(5) Abelhas e cardeais na quirera
(6) Modelo de habitação pantaneira (Pousada Rio Claro)                                                         

27/06/2012

TRADIÇÕES, MEMÓRIAS, FRAGMENTOS (III)


         
O meu afastamento de São Paulo, já por décadas, privou-me de muitas “emoções”. Todo mundo fala de congestionamentos e tudo o mais, mas já escrevi que a maior cidade do Brasil, é o que é, pelas nossas opções e, claro, por falta de mais alternativas do ir e vir, resultado de longa omissão do poder público.
Saibam que eu me encantei com a estação da Luz do trem para o metrô. Aquela galeria subterrânea, coisa de primeiro mundo!
Mas, por razões circunstanciais, há alguns poucos anos, voltei ao prédio da PUC de São Paulo, da rua Monte Alegre, de tantas tradições, memórias...

Aquele prédio velho, continua “o mesmo”, com paredes desgastadas pelo tempo mas, quanto a mim, andando no seu interior, subindo e descendo escadas me vi com uma ponta de emoção por tudo aquilo que por alguns anos frequentei.

As minhas descidas pela rua Monte Alegre, com garoa no rosto depois do exame oral, às pressas, para não perder o último trem, na estação Barra Funda, até Santo André. Na falta do meu fusca – 64.
Entre os fragmentos de lembranças há um momento hilário, talvez não fosse inspiração para uma crônica, mas, o que fazer, se o episódio nunca mais me saiu da memória?
O professor era uma boa pessoa, já idoso, diziam ter alguma doença que era minimizada com doses moderadas de conhaque. Não sei.
Uma noite, meio chuvosa, mal começada a aula, não sei se pelo conhaque ou pelo pó do giz, esse professor começou a espirrar sem parar.
Num dado momento, num acesso mais forte, voou sua dentadura que bateu num canto da carteira de uma aluna. Ela se assustou, recuou o que pode, mas se manteve respeitosa.
Com toda aquela dificuldade, cambaleando, o professor se abaixou e conseguiu resgatar a dentadura no chão, num local incômodo. Escondeu-a no bolso do paletó. Quem poderia ajudá-lo?
A aula se encerrou. O professor nunca mais voltou.
A cena entre o trágico e o cômico. Ri muito, demais. Anos depois, me divertia em lembrar essa cena que no fundo, fora rigorosamente triste.

Lembranças do TUCA – Teatro da Universidade Católica, histórico, ao lado, do teatro – inaugurado em 1965 com a peça “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto - das conferências, da resistência à repressão, dos incêndios suspeitos em 1984, sua reinauguração em janeiro de 2002, todo esse clima nos prédios da querida PUC, no meu inesquecível curso de Direito.


Fragmentos

Em qualquer lugar onde esteja, sempre sou surpreendido por lembranças de cenas e experiências que fizeram parte da minha vida, mas algumas são fragmentos inexpressivos: uma imagem de um filme, um acontecimento qualquer, um rosto, um colega de escola que nunca mais vi, uma chuvarada, uma frase perdida.
Mas, um antigo vizinho, muito pobre, morando numa edícula caindo aos pedaços, moleque leal, humilde, amigo, sempre esteve por perto. Ele tinha uma irmã mais velha, que eu soubesse, melhor de vida em relação à família muito pobre.
Um dia, ao anoitecer, ele me trouxe um naco de pudim que sua irmã havia preparado. Eu gostei muito. São essas lembranças que estariam perdidas não fossem esses mecanismos psíquicos que as trazem de volta num momento inesperado. Aparentemente sem causa.
Este fragmento não é tão inesperado: o dia em que fui destacado para acompanhar como instrutor o desfile de sete de setembro do ginasial, pelo professor de educação física – talvez porque eu me destacara numa aula de defesa pessoal, leve – juntamente com uma menina sabidamente mui aplicada.
Quanto me interessei por ela! Talvez ela percebesse e retribuísse algo.
O caso é que tanto eu como ela andávamos de bicicleta pelas redondezas, sempre nos cruzando, não faltando aquele flerte tímido. Eu, na verdade, forçava para encontrá-la.
Como acabou isso tudo? Não sei bem. Só sei que já devo ter falado desse flertezinho nalgum lugar.
Naqueles tempos heroicos, que me sentia forte candidato à namorado da Brenda Lee quando fez excursão pelo Brasil, sonhando que os caminhos do destino me fizessem chegar até ela. Alguém se lembra dela? “I’m sorry”, lembram-se?
Mas, essas imagens estão comigo e às vezes renascem, como outras tantas.

Ah, os fragmentos.

Referências:

Fotos:
www.skycrapercity.com (1a. e 2a.) 

08/06/2012

POEMAS, para não dizer que não falei de... (VII) (Poemas e Prosa)


I – VAIDADE DE VAIDADE

Meu conhecimento bíblico é modestíssimo. Minha aproximação com textos diversos da Bíblia se deu lendo literatura ocultista.
Um dos textos que me marcaram foi o de Eclesiastes 12.6-8:

“6. Antes que se quebre a cadeia (cordão) de prata, e se despedace o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se despedace a roda junto ao poço,
7. E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu.
8. Vaidade de vaidade, diz o pregador, tudo é vaidade.”

Esse cordão prateado, dizem os místicos, quando rompido de vez, significa o fim da existência terrena, atual.

Diz Max Heindel:

“Um extremo desse cordão prende-se ao coração por meio do átomo-semente. É a ruptura do átomo-semente que produz a paralisação do coração. O cordão só se rompe depois que todo o panorama da vida passada, contido no Corpo Vital, foi contemplado.”

Essas passagens da vida nesse estágio da alma, são apresentadas na ordem inversa, do fim (da vida) para o seu começo.
O místico observa que, por conta dessa passagem, “deve-se ter muito cuidado em não cremar ou embalsamar o corpo antes de decorridos no mínimo três dias e meio após a morte...”
E em outra passagem o místico explana que o Corpo Vital ainda presente no post-mortem flutua sobre a sepultura, constituindo-se “espetáculo repugnante para o clarividente desenvolvido” cenas que convenceriam a trocar o “mau e anti-higiênico método de enterrar os mortos” pelo método da cremação, “que restitui os elementos à sua condição primordial sem que o cadáver alcance os desagradáveis aspectos inerentes ao processo de decomposição lenta.” (1)

Na crônica “Minha Entrevista com Sócrates” esse tema também é explanado numa pergunta ao filósofo com este encaminhamento: “em outro momento o senhor defendeu que se a alma maculada, impura, se afasta do corpo, é ela carregada com esse peso e, com medo do mundo invisível, do Hades, se torna visível, vagando em volta dos túmulos, dos cemitérios, fantasmas medonhos, espectros assustadores...” (2).
Um outro modo de interpretar essas “visões medonhas” (segundo Sócrates) dos cemitérios...para o clarividente.

Com todos esses conceitos, redigi há muito o poema abaixo,  já bastante referidos nestes Temas, ilustrando outras crônicas,  inspirado em  viagens astrais em sonhos cujos locais e  ruas são lembrados ao acordar e especialmente no texto bíblico e nos elementos acima, da literatura esotérica, há inserido um sentido reencarnacionista: “Retornando o Espírito desse ponto partido (?).”


Tudo é vaidade

Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...”
Extinta, então, a tênue vida, não o Espírito
Falam as Escrituras dum fio de prata rompido
Retornando o Espírito desse ponto partido (?).
Mas, como “tudo quanto sucede é vaidade”
Quando tal soberba sem medida cresce
O Ser humano, no Espírito, enfraquece.


II – CAUSA E EFEITO

Esse poema abaixo também tem a ver com a existência, a vida, com os atos praticados e com a “lei de causa e efeito”. Foi escrito num momento de angústia, ao me defrontar com alguma das muitas tragédias humanas, na linha, “o que tenho que ver ainda”. Com esse poema e outros com essa temática, tento me autoinspirar e praticar, lembrar a solidariedade. Não é fácil, pelas agressões do dia-a-dia, pela violência rotineira, pelas dores que nos constrangem e emocionam.  

Causa e efeito

Segue um caminho a linda jovem
Se arrasta infeliz o enigmático indigente,
No leito moribundo jaz para próxima viagem
O prostrado ancião já mirando para o poente.

Vemos pelo mundo afora, seres que sofrem, 
Semelhantes no mesmo teto tão diferentes
E no entanto não nos lembramos o sentido
Que, na essência, em tudo, somos parentes.

Nossa beleza, atividade, sofrimento,  amargura
Estão na proporção de ações já distantes, 
Mas, o amor, a caridade ao semelhante augura
A escola que cursaremos no exato instante.

O fútil, a injúria, o egoísmo, a inveja
São do interior atos sombrios de mau devedor,
O Interior elevado por certo preveja
Que a doação na vida é saldo credor.


III – PÁSSAROS

É sempre um alívio, para mim, ter pássaros próximos, mesmo que não percebam, por algumas razões, que estão sendo observados nos seus encantos. Ou um vidro de janela espelhado ou numa posição que se deixam ver sem serem vistos.
Sobre eles, os passarinhos, já escrevi crônicas diversas.
Os poemas abaixo “Bem-te-vi” e “Tristeza” estão relacionados porque o alento do bem-te-vi numa certa manhã teve o efeito restaurador, da esperança e da superação da tristeza. Quanto a esta, felizmente, é sempre efêmera. Ela se afasta de modo imperceptível, do mesmo modo como avançou: ou por um bem-te-vi, ou por uma notícia boa ou porque precisa ser sobrepujada. Há que ser conquistada, sempre, a alegria, ainda que apenas contida, se possível tal conceito.

Bem-te-vi

A manhã começara mal-humorada
Não bastara o café adocicado
Algo no jornal que me deprimira
Uma notícia cruel e malvada.
Mas, ai um bem-te-vi
Na janela me avisou que me vira
Eu também bem te vi, estridente passarinho.
Bem vindo que me consola.

Tristeza

Devagar ela se aproximou
Me visitou
E me tomou, pesada sombra
A tristeza que amarga, sem causa (?) 

Ameaço verter lágrimas
- Do quê? Por quê? Não sei
Ela é só minha, ela me pertence
Quem haverá de entendê-la...por mim?

Fico com ela, medito, aprofundo
Me liberto, dela saio, sobrevivo,
O que seria do poeta sem a tristeza?
O que seria da tristeza sem o poeta?


Referências:

(1) “Conceito Rosacruz do Cosmos”, Max Heindel – 3ª Ed./1993, pags. 98/102
(2) “Minha entrevista com Sócrates", Crônica de 16.10.2011


13/05/2012

IDADE

Nas minhas várias manifestações de temas, não poucas vezes me referi ao avançar da idade e o quadro de perplexidade que daí surge à medida em que ela se sucede desenfreada, inexorável e velozmente, pelo que a preocupação com o significado de tudo, das experiências, da vida e...da morte.
Tenho um refúgio em Águas de São Pedro, no interior de São Paulo, cidade com seu verde exuberante. Nem sempre preservado como deveria ser. Esta tarde o tempo está fechado o que me remete aos meus tempos jovens, nestas mesmas tardes, mais intensas, porém.


Agora aprecio as árvores e os arbustos floridos neste meu recanto, não de descanso, mas de meditação. Talvez apenas o descanso da alma. Estar comigo. Sei que nesses momentos se pode atingir algo de universal. Quem sabe algumas luzes se iluminem num lampejo.
Não fujo da realidade, porém, mas o passado está comigo, como disse e tenho dito.

Olhas para trás e o que vês?
Apenas um passado de sombras?
Ou há luzes que oscilam tênues?
O que fazer com tais obras?

Não há como delas escapar,
Mas, estás em silêncio aqui e agora
Perplexo com clamores e decepções
Que revolvem a mente e tudo explora?

Respiro neste silêncio um sentido de paz interior. Lá fora, além das nuvens me deparo com pássaros saltitando num pequeno gramado. O que são eles senão a inspiração dessa paz? Um brinquedo leve da Natureza?


Desconfiados, quando aparo a grama, bem-te-vis ficam por perto caçando os insetos que estranham a perda da proteção e saem à luz. Por que não se aproximam, não chegam até mim?
Seria o auge da poesia aplicada! Uma realização.

Inspira-te nos pássaros à tua janela
Que sobrevivem em árvores desalinhadas
Aproximaram-se do cinza das cidades
Encontrando vãos para suas ninhadas.

Nesta minha idade sou chamado ao perdão. Em perdoar a todos. Enterrar essas mágoas que a nada mais levam. Estou lá, mas o meu presente me clama ao perdão. Conseguirei, superarei os rancores, há mágoas, eu sei, que me marcaram pela vida. O tempo da reconciliação como filho e como pai.

O que és agora nasceu naqueles idos
Naqueles dias de alegria, dúvidas e solidão
Caminhas, sabes, para a frente, para além,
Mas, ressurgem nos sonhos apelos, a emoção!

O que fazes com tais angústias que te assaltam?
Com tantos sentidos de nostalgia e desamor?
Basta viver cada hora, ouves...cada dia
Neste mundo sem tréguas, cruéis e de...amor!

Não serei ingênuo em ignorar este meu tempo de horrores, de contradição e que me assalta. Eu vivo nele e nele sobrevivo. Quantas vezes gritei alto, dolorosamente, “o que mais terei que ver nesta loucura?” Essa vontade de desaparecer, de abreviar o meu próprio tempo. Mas, não, miro-me na minha existência e recebo a resposta: “não ainda não realizei tudo o que quero (ou preciso?), ainda que pouco seja a realizar.”
A minha idade! Minha antiga...idade!

Sabes que nestes tempos de agora
São tempos de soberba e de devastação
Os horrores se multiplicam assustadores
Rareiam os gestos de tolerância e devoção

Essas contradições que te assaltam
Falsas virtudes que te afagam
Apele para o que te resta de superação
Aquilo que estes tempos duros apagam.

Muitas vezes, ah, a minha idade, pela manhã, às vezes lembranças tênues de sonhos insondáveis de há pouco, sobrevém aquela angústia do dia a ser vencido com seus desafios. Melhor que eu ficasse num ócio consciente, se tal fosse possível, com o que do céu enxergo, esses recantos de beleza que ainda vejo erguendo os olhos, árvores altas e floridas em volta, o meu coqueiro que dá coco, lembranças de minha cadelinha preta que não recebeu de mim todo o amor que deu...

...minhas pequenas orquídeas, minhas violetas, begônia “eterna” num cantinho que bem as protege. Extremas simplicidades.
Mas, não!
Saio para o tempo tentando encontrar qualificativos na divergência, vencer os revezes efêmeros e as vitórias também efêmeras e no final do dia, uma certa dignidade pelo enfrentamento a que me obriguei.
O que é viver nestes dias tensos, pois?

Significa não ignorar o quê em tua volta
Não significa a tudo relevar e renunciar
Não é essa uma atitude sóbria, sábia
Contra tal corrente há que resistir e lutar.

Este é um apelo solene que eclode, então
Não desistas do amor e da reconstrução
Reaja às desolações e às perdas
Porque nestes tempos tudo clama ação.

Nunca me imaginei chegar a estes tempos que para mim, neste passado que está comigo, jamais pensei que chegasse. É que eram tempos tão distantes, inatingíveis, sequer pensados. Não pelo receio da vida que se extingue e se extinguirá a qualquer momento. Naqueles tempos não havia morte, apenas a imortalidade da graça vivida.
Eis-me, aqui, agora, porém. Apenas mortal. Algum dia, uma tênue e efêmera lembrança.


Fotos (Não são de paisagens de Água de São Pedro, embora existam lá até com maior beleza):
1a. Azáleas e arbusto - Foto de Milton Pimentel Martins
2a.  Gramado "frequentado" por bem-te-vis quando aparada a grama
3a. Ramos de tipuana e espatódia entrelaçados - Foto de Milton Pimentel Martins
4. Canto das orquídeas, violetas e begônias. Já inseri fotos semelhantes em outras crônicas. 

TEMA CORRELATO: "O SENTIDO DA VIDA" DE 19.07.2013

29/04/2012

INGLÊS. AH, VOCÊ PRECISA MESMO APRENDER..


Quantas vezes tenho relatado episódios dos meus tempos de garoto atirado carregando meus grilos.
Pois, nos tempos do ginasial, eu não tremia com uma professora de inglês, da melhor qualidade?
Ela mandava preparar textos na língua para expor em classe e fazia sorteio pelo número do livro de chamada valendo-se de pedras de tômbola. Eu entrava em pânico. E se chamasse o meu número? Nem pensar.
Quando sabia que não suportaria aquela tortura, porque nada preparara eu fugia da aula, chegando a pular o muro da escola.
Esses traumas, obstáculos.
Mas, o inglês, seria o meu tormento pelo resto dos meus dias profissionais.
Tudo me conduzia para o idioma: numa das primeiras multinacionais que trabalhei, um dos meus trabalhos era traduzir currículos de americanos que fariam parte de processos de autorização para trabalharem no Brasil.
Na década de 70, na minha primeira viagem internacional pela América Latina – e não cheguei aos Estados Unidos porque tinha pavor de emudecer nos contatos com os americanos – enfrentei dois incidentes que me desgastaram.
Chego à Argentina falando um bom portunhol. Conduzido à antessala do diretor de RH me dirijo de modo amistoso à secretaria, falando portunhol.
Ah, o orgulho argentino. Reposta mal educada e lacônica:
-Yo no hablo portugués, espanõl e Inglés solamente.
Constrangido, entrei num processo de mutismo forçado como se a secretaria não existisse e eu não estivesse na Argentina. (*)
No México, em visita às pirâmides de Teotihuacán nas proximidades da capital, hospedado num hotel voltado para hóspedes americanos, passei maus bocados em muitos momentos culminando com a excursão, porque toda em inglês. (1)
Fazia-me de mudo. Nada era comigo. Que tormento!
Aí, tardiamente, estudei muito mas concluíra pelas minhas dificuldades reais com o idioma.
Uma professora de multinacional onde trabalhava chegara a afirmar:
- Você nunca vai falar inglês.
Estudando fortemente o idioma nessa multinacional eis que alguns anos depois fui para os Estados Unidos.
Já por lá, soletrava o idioma no começo com muita dificuldade. Os dias foram passando e, dependendo do interlocutor americano, esquecia que falávamos em inglês. Meus ouvidos estavam melhorando.
Prova de que estágio em país de língua inglesa, aguça a possibilidade da fluência. As palavras aprendidas em aula começam a aparecer com pronúncias variáveis.
E também se aprende o real significado de certas, digamos, pegadinhas: a sobra de refeição em restaurante que se manda embrulhar, usei o “please, dog bag” para salvar um “saldo” de pizza – aquelas adocicadas com “catchup” - que seria o mesmo que pedir para embrulhar, como me fora ensinado.
A supervisora do restaurante ao meu pedido, mostrou-se contrariada e o que fez? Trouxe-me um saco plástico e deixou comigo a tarefa de inserir o resto da pizza diretamente, sem o embrulho cuidadoso. (2)
“Dog bag”, ora.
Num jantar entre gerentes americanos e visitantes sindicais belgas – que falavam francês, espanhol e flamengo – cheguei a traduzir para um americano ao meu lado o que diziam os belgas. (**)
Naquela noite, voltei exultante para o hotel porque me convencia que poderia falar o idioma. Estava chegando lá.
Pensara no que dissera aquela professora:
- Eu a derroto!
Mas, depois dessa viagem, raramente precisei do idioma e ele foi sendo enfraquecido. Alguns anos se passaram.
Muitas vezes, nesses pesadelos acordado em que tinha que me valor do inglês, no sonho me vi em situações nas quais falava o idioma com bastante fluência.
Pois é, falava inglês dormindo, sonhando, mas sofrível acordado.
Anos depois, há uns três anos, voltei aos Estados Unidos a passeio.
Quão decepcionante para mim! Num dado momento, num “fastfood” precisava de uma colher – mas onde estava a palavra?
Apontei a colher para a atendente:
- Ok, you need a spoon!
- Yes, respondi logo.
Aquela professora me vencera.
(E a dizer que fui “sócio” oculto de uma escola de inglês!)

Referencias no texto:
(*) O orgulho argentino ainda prevalece. Há alguns anos, não tanto, lá em Buenos Aires pergunto a um guia turístico argentino orgulhoso qual banco fora adquirido pelo Itaú que possui várias agências em Buenos Aires.
Resposta do meu interlocutor:
- Nenhum é apenas uma franquia do Itaú.
Não consegui conter o riso irreverente. O Itaú vendendo franquia...

(**) “Flamengo”, conforme a Wikipédia: Flamengo (Vlaams) é o nome dado à língua neerlandesa à falada na Bélgica. Não existe nenhuma língua flamenga exceto o próprio neerlandês, que é a língua oficial principal na Bélgica: 60% dos belgas vivem numa zona onde o neerlandês é a única língua oficial. O francês e o alemão também são línguas oficiais no sul do país. O neerlandês é falado em toda a Flandres, da costa até Limburgo, embora Bruxelas, no centro da Flandres, seja oficialmente bilíngue (neerlandês e francês em condição de igualdade), o resto da Flandres é unilíngue.

(1) Ver crônica “Pirâmide de Teotihuacán e os arrepios da brisa” de 04.04.2010.
(2) Ver crônica “Camarões” de 14.10.2010

15/04/2012

POETA, CANTAI, CANTAI AS ILUSÕES DESFEITAS

I Minha juventude foi passada na cidade de São Caetano do Sul. Quanto já disse! Aos trancos e barrancos, em meio a flertes e paixões, de regra com meninas bem situados, economicamente, fui me envolvendo no meio estudantil e nem sei dizer como é que me envolvi com a imprensa nanica na cidade – nanica mas influente. Ainda me lembrarei. Naqueles tempos, São Caetano brilhava no ABC. Em plena ditadura, todo mundo meio desconfiado de tudo – olha o que fala, pense escondido! – a cidade fervilhava. E foi nessa onda que obtive alguma projeção na cidade, julgando-me alguém cujo futuro reservava a missão de promover grandes transformações sociais. Não importa o que pensavam meus interlocutores, tão malucos quanto eu. Para mim, eu era mais eu. Acho que o ano de 1965 foi a coroação de tudo em que me meti. Um ano doirado. Mas, já aí a idade me chamava. Afinal, colegas cdf já estavam ingressando nas melhores faculdades, especialmente no Direito do Largo de São Francisco. Não consegui chegar perto porque a despeito desses encantos eu era mau estudante. O acaso – ou a sorte – me abriu as portas para a PUC- SP. Teria que trabalhar para pagar a faculdade, fosse ela aonde fosse. Embora envolvido com políticos, um pouco por falta de coragem outro pouco por falta de estrutura não pensei em enveredar para a política. Trabalhando aqui e acolá, haveria que, num dia, encontrar um emprego que não me anulasse, que eu pudesse desenvolver os trabalhos com a mesma desenvoltura que tivera na imprensa local e nos movimentos estudantis que há pouco deixara, além de me formar no Clássico no mesmo ano. 

  II Não demoraria muito, fui trabalhar na principal multinacional da cidade (automobilística). Um choque tremendo. O supervisor tinha lá seus “grilos" a resolver, porque mal resolvidos - esses caras que um dia pensaram em ser padres -, tinha atitudes intempestivas e abusadas. Marca da ferradura. Ah, sim, tenho até hoje uma marca dela no peito já cicatrizada. Mas, dá para ver... Não posso dizer que tudo foram desenganos. Foi lá que viajei de avião pela primeira vez, foi lá que conheci Brasília, foi lá que aprendi a dirigir para valer, foi lá que me desinibi no seu âmbito ministrando palestras para supervisores mas, também, foi lá que ia encher o tanque do carro do chefe com alguma regularidade, ia colher assinaturas de documentos lá pelos fundos da fábrica e algo que me marcou muito: com a perua Veraneio da empresa rumei muitas vezes pela periferia mais periférica de São Paulo tentando achar empregados (os carinhosamente denominados “peões”) a ponto de me obrigar a compulsar o livro dos horrores no IML aquelas fotos “no estado em que se encontravam as vítimas”, para tentar identificar um empregado desaparecido. O ar por ali era ruim, odor de...carniça! Restos mortais... Muitos “desaparecidos” flagrei em pequenos botecos jogando bilhar com uma dúzia de cervejas já consumidas. Aquelas desculpas constrangedoras pela falta ao trabalho havia dias... Eu me convertera num operário de relações trabalhistas. Com o tempo e por conta do salário, dos laços familiares nascidos, fui me adaptando e, de certo modo, me anulando, aquele sentido de perda por tudo que julgava havia feito mas, como tudo na vida tem o outro lado, houve também momentos de empolgação. Mas, depois de tantas multinacionais, com tanta submissão hierárquica, me tornei retraído, as desilusões que me abatiam. Convivendo com algumas mediocridades. 

  III Numa das últimas vezes em que frequentara a pizzaria do Satriani – fenômeno -, no Ipiranga com a família, notei que no balcão de bebidas, um sujeito de aparência cansada, cabelos grisalhos, barba alta também grisalha, trabalhada, me olhava meio de lado, de modo discreto. Minutos depois, dirigi-me em sua direção, para pedir refrigerantes. O sujeito me encarou por alguns segundos, olhar ansioso e perguntou: - Você não é o advogado, que trabalhou na G.? Meio surpreso porque não o reconhecera, encarei-o, tentando me lembrar de onde teria havido algum contato com o interlocutor. Mas, o homem grisalho se apresentou: - Eu sou F., que trabalhava na área de projetos. Lembro-me bem de você, pelas palestras que você ministrava no curso de formação de supervisores. Esse ex-colega tivera atuação profissional destacada na multinacional a partir de suas sugestões, amealhando prêmios importantes, pelas alternativas e ideias que formulara em inúmeras oportunidades, reduzindo custos de operações e melhorando o próprio produto final. Trabalhara por mais de 30 anos para a empresa e para nenhuma outra. Fidelíssimo. Sua saída fora suave, conforme relatou. Sua demissão fora anunciada com calma. Recebera homenagens por tudo o que fizera. O primeiro mês do desemprego, para quem se envolvera tanto com a empresa, parecera um período de férias meio longo. Mas, os dias foram passando e, num certo momento, deu-se conta de que as férias seriam permanentes. Alguns meses depois, angustiado, entrara num estágio de depressão brava, tendo que ter assistência médica por meses. Chegara a se esconder num quarto escuro por horas, rejeitava ver ou falar com alguém, quem fosse. Relatara ele tal experiência, com muita emoção, ainda, concluindo: - Tudo isso porque para mim a G. fora uma extensão de minha vida e porque muitas das minhas ideias foram aplicadas diretamente nos produtos. Pela perda disso tudo sofri muito, mesmo nada tendo a reclamar dela. Para superar esse vazio, associara-se à pizzaria e estava “levando a vida pra frente”, conforme explicou. 

  IV Deparei-me muito com situações dessas, ex-empregados que desempenharam funções gerenciais que se vincularam tanto à empresa que não tinham outro assunto para conversa que não os “bons tempos” nela. Reúnem-se para relaxar mas o relaxamento se concentra nesses tempos do emprego, do feito e do não feito. Do ruim e do bom. Quanto a mim, depois de tantas multinacionais automobilísticas que trabalhei, não adquiri esse “hábito”, porque além do meu empenho profissional algo me provocava na interioridade e aquela angústia consequente. Saí delas, da última, de modo meio melancólico, porque retraído sim, mas minha sobrevivência fora sempre por eficiência profissional e não política. Saibam que há muita política por trás dos muros das empresas. 
(1) Quanto às desilusões foram muitas, tinha, talvez ainda tenha uma veia jornalística, mas é ao Direito que me curvo por tudo – pouco que seja – que conquistei. Até hoje. Há muito que relatar.
 (2) Poeta, poeta, cantai as ilusões desfeitas. 








  Legendas: (1) V. crônica “Pensamento forte” de 17.11.2010 (2) Crônicas relacionadas. São muitas: De 2009 19.04 – Versos para ninguém – dias de ingenuidade (I) 26.04 – “Tempos modernos” 03.05 – Versos para ninguém (II) 30.05 – A academia de São Paulo 21.06 – Raízes sancaetanenses (I) 11.07 – Raízes sancaetanenses (II) 03.11 – Encontros e desencontros De 2010 11.04 – Ternura, essa palavra feminina...(?) 14.12 - Camarões De 2011 17.04 – “Sermão da montanha, fragmentos históricos”

01/04/2012

“PAIXÃO MAL RESOLVIDA”

Não me chame de Leocádio. Não escolhi e não gosto do meu nome. Me chame de Leo, por favor. Leo lembra leão. Signo, de virgem, fazer o quê? De setembro. Gosto de astrologia, mas não esses astrólogos que fazem horóscopos diários, sabem?
Caras, há uns bons anos trabalhei numa grande empresa, num serviço chatíssimo. Não dava para aguentar. Tinha que cadastrar fichas guardadas nuns caixotes dos quais saiam até tesourinhas. Dava para aguentar?
Sem computador, faz tempo!
Mas, diariamente, de manhã e a tarde era servido o sempre esperado cafezinho e lá vinha uma humilde copeira, despejando a bebida quentinha para todo o salão.
Depois, com uma jarra de inox alvíssima enchia os copos com água dos gerentes, uns três nas salas em frente.
Tinha a impressão que sempre que chegava até à minha mesa, ela fazia algum gesto simpático. Servia o meu café e quase segurava minha mão. Roçava nos meus dedos.
- Bom dia senhor; boa tarde senhor.
Nesses meses todos entrei num processo de incontrolável paixão.

Saibam que naquela minha mesa acinzentada e gasta havia momentos de folga.
E esperando todas as manhãs e tardes a copeira, a minha Deise – um nome americano para margarida -, numa dessas folgas, rabisquei uns versos que irradiavam a minha paixão:




Menina, sua humildade é que me inflama
Sua voz de poucas notas doces e suaves inspira
Menina, olha por um instante a este que a ama
Sorri tão lindamente para este que mal respira.


Esta Deise, sua imagem, ficou comigo até há pouco. Ou talvez esteja até hoje. Achei que fosse uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, porque não era possível que eu não a esquecesse.
Ai, soube de uma astróloga conceituada que respondia consultas feitas por carta.
Escondido, escrevi uma carta informando meus dados pessoais, nome, signo, essas coisas. Perguntei se nesse caso seria uma paixão mal resolvida num passado remoto da minha vida. Numa encarnação passada.
Passou um tempo, esqueci completamente da consulta. Não da Deise.
Uns dois meses depois, a resposta da astróloga veio lacônica:
“Senhor Leocádio, pode até ser uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, mas está me parecendo que estou diante de um Leão virgem mal resolvido. Hoje!”

Fiquei surpreso e ofendido com a resposta. Tentei esquecê-la mas não havia jeito. Ela martelava na minha cabeça:
- Ora, pode ser que a astróloga tenha razão. Onde estará Deise. Envelhecida?

Seguramente sequer sabe quem eu sou ou fui. Vai se lembrar de modesto empregado e sua mesa gasta? Que esperava ela aparecer com o bule? Ora...
Comecei a lutar contra o “vazio”. Na hora do almoço, o perfume do feijão recém-cozido delicioso aguça a minha fome. Minha esposa cantarola na cozinha.
Mas, continuo não gostando do meu nome. Tenho que conviver com ele...
Prefiro Leo. Leão.

18/03/2012

MEUS TEMPOS DA CALÇA CURTA



Meus caros, sinto aqui no peito que sou tudo aquilo que vivi – e quem não é? indaga minha vã filosofia -, todas as influências, a minha morada em bairros pobres, meus pais, irmãos, amigos e aqueles nem tanto e, principalmente, a influência de minha mãe.
Não há jeito. Agora recostado no meu banco na varanda, naquele silêncio de Águas interrompido pelos latidos dos cachorros vez ou outra – um cachorro late tal qual a minha cadelinha Preta que perdi -, viajando entre as estrelas um tanto ofuscadas pela iluminação pública nas ruas, me pergunto sobre tudo, especialmente essa passagem pelas várias estações da vida parando numas, perdendo outras e, por fim, rememorando nesse silêncio as experiências que amealhei em todas aquelas nas quais desembarquei. Bate o vento já de outono.
Nesta noite retornei aos tempos da escola primária, na qual convivi com professoras excepcionais, aquelas mulheres dedicadas e suas aulas inesquecíveis. E naqueles tempos machistas demais. Por onde andará a dona Olga, professora substituta que no meu último ano do primário nos ensinou o ano todo. Terá já viajado?
Como prêmio pela minha dedicação aos estudos fui presenteado por ela com um livro, “Os Três Mosqueteiros” com dedicatória enaltecendo meus esforços. Infelizmente, tantos anos depois, não consegui mais encontrá-lo.
Eu tinha apenas uma calça comprida. De todos os jeitos, naqueles últimos meses da escola, evitava ir às aulas vestindo calça curta. Afinal, estava me formando.
Chegou a data da formatura e haveria festa na escola.
Poucos dias antes tento convencer minha mãe de que iria receber o diploma vestindo calça comprida:
- Mas, você não tem calça comprida. A que você usa está muito feia. Você irá com aquela calça curta azul marinho que fica muito bem em você.
Protestei o quanto pude, não chorei é claro. Afinal, já me sentia apto a exibir calça comprida bem ajeitada...como chorar?


Não sei bem, mas acho que era o mesmo “uniforme” de gala de minha primeira comunhão, dois anos antes. Já imaginaram calça curta e paletó? (1)
Talvez não fosse. Não sei. Em dois anos deveria ter crescido alguns centímetros.
Na véspera insisti com minha mãe, mas ela respondeu a mesma coisa:
- A calça curta azul marinho fica bem em você.


No dia, manhã meio nublada, não teve jeito. Contrariado, lá fui eu de calça curta, envergonhado, olhando para todos os colegas que usavam calça comprida, não escondendo o meu despeito.
Parecia que todos me olhavam para se certificar da minha roupa de menino. (2)
Tive a impressão que até a professora Olga tivera essa curiosidade. Rosto enrubescido. Pego de calça curta.
Sobrevivi à calça curta naquele dia de festa e, como já escrevi nalgum lugar, do excelente aluno que fui – no 3° ano do primário ganhei um livro da professora por não ter dado nenhuma falta no ano todo – tornei-me a partir do ginasial mau aluno.
Penso nisso, nessas imagens, com leveza e volto a viajar pelas estrelas. Há os instantes das graças. Há que aproveitá-los.


Legendas:


(1) V. minha crônica “Regressão II: Primeira comunhão” de 24.10.2010
(2) Hoje as “bermudas”, calças curtas ou “shortões” com bolsos, dominam o meio informal e esportivo. “Bermudas”, porque popularizadas nas Ilhas de quem emprestaram o nome. As Ilhas Bermudas são também famosas porque compõem um dos vértices do misterioso “Triangulo das Bermudas”.

03/03/2012

VALORES E PENSAMENTOS QUE DESAFIAM (e até “incomodam”)

Esta crônica, escrita em dezembro de 1998, que contém “valores ideais”, em cada instante se chocam eles com o dia-a-dia do próprio cronista atônito. Ela antecedeu à crônica, “Dos sem religião – Aqueles que acreditam mas não professam” de 27.02.2009. Foi nessa crônica que me proclamei "agnóstico moderado". Contradições que assumo porque nada sei.

Um brocardo popular consagrado, que insere certo chamamento para as coisas da vida diz: "deste mundo nada se leva".
De tal simplicidade, constitui-se num verdadeiro axioma. Da matéria nada se leva: deixam-se aqui somente lembranças, intensas ou não, segundo a forma de viver imprimida pelo desaparecido. (1)
E são exatamente esses aspectos que chamam a atenção para uma maior reflexão. Ao longo dos séculos o homem, à medida que vai adquirindo conhecimento dos fenômenos exteriores, acaba se questionando sobre algumas perguntas que, para muitos, tornam-se angustiantes: "Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?" (2)
Essas indagações que se manifestam na interioridade do ser humano, encontram-se nos escritos sagrados de diferentes correntes religiosas e filosóficas e de filósofos do calibre de Confúcio, Platão, Aristóteles... (3).
E acima de tudo, mais que uma recomendação, quem sabe um apelo, a inscrição "conhece-te a ti mesmo", esculpida no arco superior (dintel) do templo de Delfos. (4)
Essas questões maiores, porém, parecem estar reprimidas na intimidade de cada um. Demais, essas reflexões quando assomam tendem a elevar a mente perplexa para uma indagação ainda superior que se perde no silêncio: quem é Deus?
Mas, neste mundo em que os interesses maiores são as proposições econômicas e a sobrevivência, o dia-a-dia, o que já não é pouco, tais valores e mesmo Deus, têm ficado em segundo plano.
Daí decorrem duas situações que podem ser comparadas a episódios bíblicos: a adoração do "bezerro de ouro" pelos judeus, enquanto Moisés conversava com Deus no Monte Sinai e a "confusão das línguas" em Babel.
Embora se reconheça que haja uma intensa procura pela espiritualidade no mundo pelas religiões que nascem, vem predominando, ainda e há muito, agora com maior ênfase, a linguagem do dinheiro, dos índices das bolsas de valores, o "bezerro de ouro" e, claro, resultando na confusão, no desentendimento, na angustia entre os países. Confusão das línguas...
Nestes tempos, esses valores superiores têm sido invocados tão somente naqueles minutos que duram um ato religioso, um sermão, uma meditação. A partir daí, porque não há tempo para questionamentos em profundidade, ao dar-se de ombros para o "conhece-te a ti mesmo", volta-se para o mundo do chão batido, dos juros e dos rendimentos.
Mas, a 'língua universal' que traz a compreensão, é a da espiritualidade, do amor e da solidariedade. Com certeza aquele que se esforça para cultivar esses valores sabe que seus compromissos não se encerram num momento de oração. Ele agirá com esse sentimento não só perante seus semelhantes, mas também amando a natureza, que alguns chamam de "mãe".
Os desvios de valores, o cavoucar no garimpo da riqueza vazia, tem trazido também imensos prejuízos ecológicos à fauna, à flora, à atmosfera, aos rios e oceanos que recebem cada vez mais imensas cargas de detritos e poluentes, em quantidade tal que impede a química natural da recuperação: "Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele". (5)
Esses todos que superam as agruras do cotidiano, precisam falar abertamente em amor, solidariedade, na falta que Deus vem fazendo nas relações entre os homens e na preservação da natureza, no respeito que merecem todos os seres que ela protege galhardamente, a despeito da ação destruidora do homem.
Será neste mundo, que nos conheceremos a nós mesmos se assim desejarmos ou nos esforçarmos. Por isso, deveremos cuidar que haja um sentimento equilibrado para que as gerações futuras o herdem. Há tempo ainda.
Porque à nossa volta há ainda resquícios do paraíso - imerecido - que foi este chão que estão sendo gradativamente destruídos por nós, agressores inconsequentes, mal-agradecidos, decaídos.
Mas, o "conhece-te a si mesmo" é um apelo à reflexão sobre esses valores que assaltam a alma com menor ou maior intensidade, porque aqueles outros do mundo ao alcance da mão nada levaras. “Tenho dito”.

Legendas:


(1) V. “Da vaidade ao pó (Reflexões sobre a “terra prometida”) de 24.04.2011.
(2) V. “Enigmas, penitências, I Ching” de 05.02.2012.
(3) Encíclica “Fé e Razão” do papa João Paulo II
(4) Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o funcionamento do oráculo (de Delfos). Descreveu as relações entre o deus, a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu instrumento e o pneuma (gás, vapor, respiração, daí as nossas palavras “pneumático” e “pneumonia”) ao plectro (varinha para vibrar a lira) com o qual ele a tocava para fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um elemento que desencadeava o processo. De fato, era o treinamento prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.
Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma. Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido, “como se viesse de uma fonte”, no ádito (no caso, câmara sagrada) em que a pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma na antecâmara onde aguardavam as respostas.
A ÚNICA REPRESENTAÇÃO (acima) da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.
A peça foi feita por um oleiro ateniense em torno de 440 a.C.

Fonte: http://www.philosophy.pro.br/oraculo_de_delfos.htm.
V. “Minha entrevista com Sócrates” de 16.10.2011
(5) Papa João Paulo II, Carta Encíclica "Centésimo Ano" de maio de 1991.

Foto:
"O Pensador" (francês: Le Penseur) é uma das mais famosas esculturas de bronze do escultor francês Auguste Rodin de 1902 (Paris). "Retrata um homem em meditação soberba, lutando com uma poderosa força interna." (Fonte: Wikipédia)