Memória (*)
Todo
profissional que trabalha em empresas do ramo automotivo (mas não
só) – americanas – “corre o risco” de passar uns dias nos
Estados Unidos. Isso aconteceu comigo em 1989. Fiquei por lá por uns
35 dias.
Espero
não ser maçante com este relato uma mera experiência profissional
e gastronômica.
Em
1988 o Brasil tivera inflação de quase 1000%. Em 1989 a moeda
passou a se chamar “cruzado novo” dando-se em janeiro o corte de
três zeros. Mas, nada adiantou. As utilidades tinham preço em
milhões de cruzados. Em 1989 a inflação chegaria a quase 2000%.
Chega-se
nos Estados Unidos com uma situação dessas no Brasil. Visita à
multinacional do ramo automotivo, em Peória (Illinois).
Embora
tivesse comigo um colega que falava bem o inglês, coube a mim, com
meu inglês ruim explicar pros americanos a loucura da inflação
brasileira.
-
Bem, nós resolvemos a inflação com a “monetary corretion”
e é possível controlá-la com a equiparação ao dólar.
Reage
o americano perplexo:
-
Mas, vocês cortaram três zeros do dinheiro! Para quê a inflação
se tem a correção monetária?
Responder
o quê?
Essa
explicação fora dada várias vezes porque a perplexidade era
justificável.
Um
dia qualquer, porém, numa visita a uma fábrica na cidade de Aurora,
um dos funcionários que nos acompanhava fez deboche dos 90% (?) de
inflação mensal.
Perdi
a paciência e com inglês ruim e tudo parti para o sermão. Mais ou
menos isto:
-
Você conhece o Brasil? Você não quer saber do poderio de São
Paulo? Você sabe que a VW emprega milhares de trabalhadores numa
fábrica imensa? Você certamente sabe dos lucros que “nossa”
empresa obtém no Brasil, com inflação e tudo, não sabe? Na
verdade bem ou mal conseguimos conviver com a inflação e o país
não vai parar por causa disso.
Depois
dessa intervenção “estranhamente” ninguém mais tocou no tema
“inflation”. (**)
O
último compromisso da viagem fora uma visita na fábrica da Chrysler
em Detroit. Eu havia trabalhado na filial no ABC um motivo para a
facilitação da visita.
Escolhemos
conhecer a linha de montagem.
Quero
dizer, antes, que em 1983 escrevera um artigo numa revista
jurídico-trabalhista, sobre “relações trabalhistas”
explanando também sobre a automação a partir de um robô que num
acidente provocara a morte de um trabalhador japonês. No debate que
suscitou, então, a previsão era de que os robôs tomariam as
funções dos trabalhadores, obrigando todos a renunciar de um modo
ou outro. E disse eu, então, naqueles escritos como decorrência da
modernidade anunciada e da “renúncia”: “atingiremos, então, a
civilização e filosofaremos”.
Bobagem deslumbrada:
quase 40 anos depois milhares de trabalhos não existem mais e nada
de filosofia, muitos os conflitos que eclodem. E o que pensar da
modernidade eletrônica que a cada dia nos surpreende? Tudo digital?
[Em 2009 nos EUA fui “apresentado” ao GPS!]
Pois
bem, a linha de montagem da Chrysler me impressionou muito: entravam
as latarias (“esqueletos”) no começo da linha e na outra
extremidade os carros saiam praticamente prontos, com intensa
atividade dos robôs com pouca intervenção dos profissionais na
linha. Não digo que automação já não começara aqui, mas não
com essa eficiência.
Pensei
nas consequências aos trabalhadores não especializada que nos meus
tempos de Chrysler eram caçados intensamente no mercado. A VW
naqueles tempos empregava 35 mil empregados. A
informação atual no Google é que agora só emprega 15 mil
trabalhadores.
Hoje,
o que fazem aqueles trabalhadores com baixa especialização ou
nenhuma que chamávamos “práticos”?
Pensado
nisso
tudo, um
certo encanto com o próprio país, então
o desfecho comemorando o êxito da viagem, o
aproveitamento e a melhora do meu inglês que hoje se perdeu...
Na
volta ao
hotel, que transpirava luxo por todos os lados subíramos
ao restaurante situado
no
terraço giratório,
envidraçado, sofisticado, que permitia ver a cidade por todos os
ângulos enquanto
se movia lentamente.
Com
amigos de última hora fizemos nossos pedidos e enquanto aguardávamos
a comida, num copo imenso, foram servidos camarões temperados,
brinde da casa.
Já
meio cismado com “frutos do mar” porque havia anos assumira não
comer carne de qualquer espécie (o
peixe de vez em quando, apenas),
mas eram eles ainda uma forma de compor algum cardápio em situações
especiais, como
se dava ali, comecei
a
comer camarões.
Num
dado momento pergunto, apontando para alguns exemplares no copo:
– O
que são estas linhas pretas aqui, em cima dos camarões?
Um
dos que ocupavam a mesa, me respondeu com ironia:
– São
os intestininhos do bicho. Eles são os temperinhos...
Dizem
sempre que os camarões são espécie de urubus minúsculos dos mares
que se alimentavam de tudo o que apodrece.
Nada
de delicadezas e afetações, mas
meu
estômago revirou, um assombroso sopro em forma de arroto exalou
silencioso. A minha repulsão tornara-se impossível disfarçar.
Mal
jantei, um macarrão temperado razoavelmente ou algo assim,
apimentado. Seria a salvação, depois de comer por longo tempo
pizzas adocicadas, fritas, catfish frito… sem generalizações, há
bons restaurantes lá.
Por
isso acho que o arroz e feijão constituem uma mistura alquímica.
Tive
outras experiências ruins mais tarde com o camarão, alergias e
“revoltas” digestivas.
E
assim, hoje, todo camarão à minha frente me faz ver aquelas linhas
pretas às quais degustei em Detroit com um vinho branco da melhor
qualidade.
Não
será preciso dizer que os “frutos do mar” foram também abolidos
do meu cardápio. Para sempre.
"Culpa" dos americanos.
De
todas essas experiências só posso me referir a uma frase comum:
“tudo tem seu tempo”, mas as memórias ficam.
(*) Parte desta crônica já foi divulgada em outras publicações neste blog
(**) O "Plano Real" eclodiria com sucesso em 1994
Detroit
vista de Windsor, no Canadá.
O GINASIANO