30/05/2009

LARGO DE SÃO FRANCISCO. A ACADEMIA DE SÃO PAULO



"Beijo eterno"
Foto: Neuza Guerreiro de Carvalho (www.vovoneuza.blogspot.com)


Há um encanto no Largo de São Francisco mesmo que mau cuidado. Por mais exausto que esteja nessa “paulicéia atribulada”, não consigo me livrar da imagem da Faculdade de Direito bem ali à frente, para mim a figura de uma esfinge. Mau estudante, não consegui resolver seu “enigma”, o vestibular e por ela fui “devorado”.
Chego até a igrejinha do Convento de São Francisco, fundado em 1647 ao lado direito da Faculdade e lá, surpreso, descubro que as primeiras aulas foram ministradas em sua pequena sacristia, a partir de março de 1828.
Avanço nos dados históricos: dom Pedro I instituiu os cursos jurídicos no Brasil em 11 de agosto de 1827, com faculdades em Olinda e São Paulo. Tal se deu porque não havia opção de formação de bacharéis no país, apenas em Portugal, na famosa Universidade de Coimbra, fundada por dom Diniz, rei de Portugal, em 1290. Falarei sobre ela numa próxima crônica.
A Faculdade de São Paulo, foi instalada no recinto do Convento de São Francisco, que contava com instalações adaptáveis e biblioteca. Somente em 1933 o prédio do antigo convento foi demolido. Foram encontrados esqueletos humanos misturados à argamassa em suas paredes, o que pode significar que serviram elas de túmulo para os religiosos.
O novo prédio da Faculdade ficou pronto em 1938, mas de modo completo somente 12 anos depois.
Apesar dos esqueletos encontrados nas paredes do prédio demolido do Convento, não há fantasmas na Faculdade. No seu ambiente, porém, de tantas tradições, de tantos vultos que lá estudaram e se formaram, sempre pressinto um sentido solene em seu ambiente.
Derrubaram-se as paredes, mas ficaram as vibrações, o “espírito” do lugar.
Quase defronte à entrada principal da Faculdade, um contraste a esse sentimento captado no seu interior, encontra-se a irreverente escultura do sueco William Zadig, “Idílio” ou “O beijo eterno”, na qual amantes nus, representando um francês e uma índia se enlaçam num ósculo vibrante e sensual. Fora uma homenagem do Centro Acadêmico XI de Agosto a Olavo Bilac que falecera em 1918. Essa escultura foi instalada em locais diferentes de São Paulo, sempre removida porque considerada uma “imoralidade”. Permaneceu, por tal censura absurda, adormecida por muito tempo em depósitos da Prefeitura até que, por injunção dos estudantes da própria Faculdade, foi ela instalada no Largo de São Francisco e lá permanece firme, uma homenagem ao amor e à poesia sensual de Olavo Bilac. O “Beijo eterno” do poeta tem esta estrofe final:

Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!


Afasto-me do “Beijo eterno”, a escultura que encontrou a sua “liberdade”, atravesso o Largo e saio pela rua Líbero Badaró nos rumos do Largo de São Bento.
Penso nessa figura polêmica que deu nome à rua: Líbero Badaró.
Teve ele vínculos com a Academia, como professor de Geometria do curso preparatório para ingresso na Faculdade de Direito. Dedicou-se, também, à medicina e ao jornalismo. O italiano Giovanni Batista Badaró um liberal, incluiu no seu nome o apelido “Líbero” – que não tem sentido preciso no português, salvo na linguagem futebolística -, resultando no nome Líbero Badaró. Fundou o jornal "O Observador Constitucional" que propagava as idéias liberais, antimonárquicas e antiabsolutistas. Com esses ideais e campanhas, obteve inimigos poderosos. Foi vítima de um atentado a tiros nas proximidades de sua residência, nunca esclarecido, que se deu em 20 de novembro de 1830, e que resultaria na sua morte horas depois, momento em que teria dito a frase célebre: "Morre um liberal, mas não morre a Liberdade".
Liberdade, liberdade!
A rua de São José onde morava passou a chamar-se Líbero Badaró.
Meio nostálgico por todas essas impressões, confortei-me em lembrar que também estudei num convento que não perdeu ainda sua forma original, a PUC de São Paulo. E como foi difícil obter o diploma naquela escola tão rigorosa, naqueles dias.
Quantas vezes, beirando a madrugada, depois dos exames orais descia apressado a rua Monte Alegre, Perdizes, garoa fria no rosto, encharcado correndo para o último trem na Barra Funda. E nas noites quentes, tranquilas, já com meu Fusca vermelho, uma pausa na Xavier de Toledo, na leiteria, uns petiscos e uma olhada no Mappin que já se foi.
São Paulo da garoa, hoje dos congestionamentos e da poluição, mas repleta de reentrâncias e muitos segredos a serem revelados. Aqueles tempos mais doces que amargos...

22/05/2009

AMARGURAS E TERNURAS CONTIDAS











VÍCIO DOENÇA

Uma sensação de alívio. Aquele dia estava salvo. Tudo ficaria mais tranqüilo. O olhar para os colegas de escola seria mais confiante, haveria mais ânimo para enfrentar algumas aulas monótonas e, no geral, um fim de noite mais tranquilo.
A angustia ao anoitecer, era diária. Chegaria ele sóbrio ou embriagado?
Se embriagado, a angústia se converteria em constrangimento e insegurança.
A saída de casa seria envergonhada, não conseguiria sorrir porque tinha a sensação de que seus olhos, se o fizesse, revelariam seus segredos e sua amargura.
Por essa permanente incerteza, os amigos deveriam ser discretamente mantidos à distância de casa. Para qualquer adolescente, um pai não casualmente embriagado dificilmente não se constitui causa de alguns traumas.
Às vezes, uma exagerada reação agressiva com os amigos, momentos de exacerbada humildade, que se aproximavam da depressão.
Mas, nessa relação angustiada, tempestuosa e mesmo rancorosa, por incrível que pareça, há dezenas de perdões e de promessas. Quem sabe, não será amanhã o início da recuperação, sendo a vergonha em casa mais forte que a tentação da bebida?
Seria o alcoólatra um egoísta sem vontade de reagir? Pois resta-lhe o sabor e, principalmente, o conforto e a alienação da bebida. Para a família, o sabor da amargura e, para os filhos, a vergonha das ruas e a insegurança constante. Mais, a impossibilidade de entender o desarranjo havido naquele ser humano amado, que se apresenta com a personalidade destroçada pelo álcool.

Havia lá pelos lados onde morei um bêbado perdido e abandonado, apelidado de "Risadinha", apelido que se coadunava com seus cantos desconexos e suas gargalhadas por nada, salvo a visão dos seus demônios alcoólicos.
Muitas e muitas vezes tropecei nele, sempre desacordado numa esquina suja, mitório de cães de rua, estirado, desacordado e malcheiroso.
Pendurado na parede, dois metros acima onde permanecia desacordado, era fixado o cartaz do principal cinema da cidade, que mudava duas ou três vezes por semana, anunciando os filmes e os dias de exibição. Quantas vezes os títulos dos filmes coincidiam com a cena do corpo negro jogado no canto imundo: “Qual será o nosso amanhã?”, “Servidão humana”.
Numa manhã de domingo surpreendi-me vivamente com ele. Lá estava "Risadinha" de pé, sóbrio, à minha frente. Retornara à vida. Um quase ex-alcoólatra estava tentando recuperá-lo, tendo mesmo arrumado um emprego para ele. Lembro-me bem: naquele dia, ao ser oferecida uma bebida qualquer, aceitara apenas "água tônica". Era um sujeito simpático e inteligente. Naquela manhã estava perfumado e seus cabelos crespos retidos por alguma loção naqueles tempos da brilhantina.
Depois daquele rápido período de vida abstêmia, fora encontrado morto na mesma esquina. O filme anunciado no cartaz, com uma ponta de ironia, lá pendurado, fora “A fonte dos desejos”. Seus amigos de bares e de porre total, ao serem informados de sua morte, apenas comemoraram com mais uma dose. Porque havia mais que comemorar, o álcool o exigia.
Os tempos mudaram, para melhor. Antes o alcoólatra era considerado um viciado fraco, egoísta e desavergonhado.
Hoje o alcoolismo é classificado como doença psiquiátrica pela Organização Mundial da Saúde mudança que dá tolerância maior ao alcoólatra que pode se submeter a tratamento especializado.

DESPEDIDA

Acompanhei de perto os últimos momentos de vida de meu pai, acometido de insuficiência respiratória, certamente pelas décadas de fumante que foi, a despeito de, havia muito, ter largado o vício com algum sacrifício no começo. Costumava mascar "chicletes" para se livrar da maldição do cigarro toda vez que a abstenção da nicotina reclamava reposição.
Lembro dele fazendo caminhadas pela cidade, cada vez mais curtas à medida que aumentava sua dificuldade em respirar.
Nos últimos momentos de sua vida, estivera eu em São Caetano do Sul, exatamente para resolver algumas pendências deixadas por ele e minha mãe naquela cidade do ABC.
Naqueles últimos dias, ele já estava na UTI, respirando com extrema dificuldade, sendo auxiliado por aparelhos.
Após resolvidas as pendências naquela cidade do ABC, passaria no hospital em São Paulo para visitá-lo.
O trânsito estava pesado, totalmente parado na Av. do Estado. O metrô paulistano estava paralisado em greve, agravando o tumulto.
Imobilizado no meio de todos aqueles carros, ansioso por chegar ao hospital, mentalmente solidarizava-me com as pessoas nervosas de uma cidade tão difícil como São Paulo, com o povão amarrotado dentro dos ônibus superlotados ou mesmo indo a pé, como naquela tarde, pela falta de transporte que lhe fora sonegado. A poluição era sufocante e as árvores mantinham (como mantém) um verde escurecido, sobreviventes.
Quando cheguei ao hospital, o horário de visita já se expirara. A recepcionista da UTI gentilmente compreendera meu atraso. Deram-me um avental branco e um par de sapatilhas também brancas. Devagar, mantendo o equilíbrio no chão liso do hospital, cheguei à enfermaria onde estava meu pai.
Havia outro paciente ao seu lado, prostrado, adormecido.
Meu pai estava muito pálido, muito magro com o aparelho de oxigênio ligado diretamente em suas narinas. Parecia dormir.
Sentiu minha presença: abriu levemente os olhos e fez um leve cumprimento com a cabeça. Fechou de novo os olhos e pareceu adormecer.
Tentei tocar seu peito, mas não cheguei a isso. Ele estava muito magro, com o peito encolhido pela doença.
Deixei o hospital. No elevador, desci com o médico da UTI. Pergunta óbvia para uma resposta insincera e grosseira:
- Doutor, quais são as possibilidade de meu pai?
- Como você acha que vou saber? A qualquer momento ele pode se recuperar...
Perturbado com a resposta assumi insensatamente que meu pai poderia viver mais algum tempo.
Viajei à noite para o Interior de São Paulo.
Ao chegar ao meu destino, ele já havia falecido. Cerca de 15 minutos depois de minha saída.
Um sentimento de revolta contra o médico e um profundo sentimento de dó e ternura por meu pai me invadiu.
Quais diferenças e divergências passadas poderiam macular aquele momento solene da despedida?
Tudo, naqueles momentos finais, se transformara em amor e perdão.
Permanecerão para sempre em minha mente o esforço daquele aceno, a ternura de um olhar sofrido. De uma ansiada e esperada despedida que se prolongou até minha chegada fora de hora ao hospital.
Muitas vezes sonhei com ele depois disso. A separação pela morte parece impenetrável, mas em determinados estados de consciência, o véu se rompe, principalmente quando ela foi calma e sem rancores, como no caso do meu pai.


Minha mãe se tornara uma mulher forte, todos esses anos de lutas e feridas que muito tempo depois cicatrizaram mas que na velhice fizeram com que se tornasse impaciente com a vida que permanecia em seu corpo já cansado e que afetava sua lucidez mental. Nos últimos tempos, tinha dificuldade em externar pensamentos lógicos, dizia sempre que não tinha mais vontade de viver.
Tinha consciência de que a vida passara. Lembro-me dela na sua própria casa, simples, cuidando das cadelas, das bananeiras no fundo do quintal, colhendo alguns cachos de uva na parreira que constituía um caramanchão, do pé de tomate japonês e seus frutos ácidos, de suas plantas em volta, flores e abelhas. Um dia, pela manhã, fora encontrada morta. Sua passagem fora silenciosa e sem rancores. Havia muita serenidade no seu rosto. Para ela, certamente, um prêmio pela vida dura que enfrentara com bravura e com momentos de felicidade que usufruíra.
Não fora carinhosa naquele sentido de meiguice, mas esteve sempre presente, bonita e forte.
Por isso, tal a minha ternura que até hoje lamento não ter feito mais por ela e por meu próprio pai. Há momentos na vida que as coisas podem se inverter nessa relação pais e filhos.
E eu deixei passar oportunidades.

SUPERAÇÕES

Foram muitas as voltas por cima, digamos assim, que dei.
Tanto foi o esforço de superação que na cidade de São Caetano do Sul realmente tive um período, na década de 60, diferenciado, com forte envolvimento e influência na vida estudantil e na pequena imprensa.
Haveria muito que contar desses tempos deslumbrantes de realizações e influências.
Haveria que mudar o mundo.
Mas, há um momento em que a vida chama. Acaba-se o encanto como se dá ao acordar de um sonho bom.
Todo esse idealismo e autoestima foi jogado no lixo ao começar a trabalhar numa multinacional do município, me deparando com um supervisor truculento, problemático, que ignorou desde o primeiro dia meu “currículo externo”.
A despeito dele, houve períodos bons na empresa. Foi nela que comecei a me interessar pelo sindicalismo. O saldo foi positivo, mas a marca de sua ferradura permanecerá indelével no meu peito, como se gravada a ferro quente.

Herdei todos esses influxos familiares e profissionais e, por fim, casamento que já perdura por 40 anos com algum tumulto e filhos, cinco.
Da mesma forma que recebi, transmiti aos meus filhos esse distanciamento, essa tensão, até pelo excesso de trabalho que já perdura por quase 50 anos, algumas viagens ao exterior por períodos relativamente longos. Meio século de trabalho e não enriqueci. Dizem que quem trabalha não tem tempo de enriqucer.

Em comemoração ao “dia dos pais”, em 1982 recebi uma carta de meu filho mais velho que haveria que ser carinhoso na homenagem por ordem da sua professora, claro, mas que deixa transparecer minhas omissões. Sua carta que até hoje guardei:

Meu pai esta carta que estou lhe escrevendo é um tipo de um presente que mando-lhe no dia dos pais
Tenho certeza que você vai gostar dela. As palavras que estou lhe escrevendo saem da minha cabeça e não é copiada da lousa
O dia dos pais para você deve significar muita coisa porque é seu dia. Você promete muitas coisas mas demora para cumpri-las, por exemplo: quando eu queria ir no Parque Antarctica para ver o Palmeiras jogar mas isso demorou bastante, até que levasse. Você é esquisito, só gosta de estudar, não gosta de jogar nada, não gosta de montar barcos, aviões em miniatura, como os demais, só de estudar e também é vegetariano não come carne isso é muito engraçado. Não sei como resiste a uma feijoada, a um frango assado e outras coisas. Eu o admiro muito.”


Minha filha reclama desse meu distanciamento ao longo do tempo, ausência de carinho, mas não há mais jeito de recuperar isso. Apenas paguei as contas, diz ela. Aliás, herdei esse carinho contido de minha mãe. Tenho tentado alguma compensação com meus netos que já são cinco, incluindo de minha filha duas meninas gêmeas idênticas, mestiças nepônicas (japinhas).
A única coisa que posso dizer disso tudo é que, se me colocar ao lado dos meus filhos, talvez seja eu o pior deles.

(Acima, enfeitando esta crônica a foto das gêmeas idênticas, Sofie e Yarin. Ainda não sei dizer qual delas é ela e ela).

16/05/2009

SUSTOS

A guisa de explicação

Falei na crônica anterior sobre os efeitos da ligação com o ocultismo leve. Volto nesse tema. Não estou sendo repetitivo porque para cada relato exsurge um elemento peculiar. Ao absorver alguns conceitos básicos, vez por outra algum acontecimento fora do comum que ocorra, tende-se a interpretar segundo essa cultura. Demais, não será preciso lembrar a atração que produz a força mental sobre certos eventos e realizações.
Escrevi, digamos, um livro no qual misturo ficção com muitas dessas experiências pessoais. Tudo começa com um crime, havendo redenção da heroína no final. Não consigo deixar as coisas mal aparadas: "o crime é um dar de ombros" como se contata nestes tempos amargos. Quem relata essa história, aliás, é um advogado. Difícil é publicá-lo, mas sempre há esperança e os “desígnios da natureza” são invocados.
Depois, de tantos clássicos e campeões de venda que tenho lido, há páginas e páginas maçantes neles que chegam até a deslustrar a beleza da história. Claro que não quero justificar a minha mediocridade medindo a dos outros, máxime de autores consagrados.

Os sustos abaixo são pinçados desse livro. Deixo claro que, pelo menos por ora, omito outros eventos pelo receio de que mais alguma alucinação divulgada me conduza ao qualificativo inevitável de “alucinado” contumaz. Ironias e blagues à parte adapto o relato no qual há elementos verdadeiros e um pouquinho de ficção:

“Enveredar pelo ocultismo, esoterismo ou qualquer ramificação nessa linha, já se disse e digo eu, tende a influenciar o adepto para sempre. Retém ele certos conceitos, impressões e, talvez, até mesmo ilusões. Para mim fora no passado uma espécie de auto-ajuda, além de me fazer acreditar que a cada evento, a cada fenômeno a análise se dará pela lei da “causa e efeito”, que explica que aquelas eclosões foram decorrências dum ato qualquer, positivo ou negativo, perdido no tempo que vem prestar contas na hora aprazada, de crédito ou débito.
Esse indivíduo pode exagerar e se tornar mais sugestionável e às vezes tem experiências que considera aterradoras, atribuindo-as aos influxos desses conhecimentos que abriram frestas do desconhecido, do oculto, em sua alma.

Não teria coragem de relatar esta experiência que se dera mirando-me num espelho a meia luz, num entardecer beirando a noite, olhos fixados nos meus próprios olhos refletidos, e ver o surgimento momentâneo de imagem que não parecia mais ser a minha, um outro rosto em lugar do meu, disforme, envelhecido ou mal formado. Aquela experiência fora a um só tempo inquietante e reveladora porque pudera de início fixar-me nos seus próprios olhos com profundidade e encontrar timbres de uma individualidade superior (da alma?) até que a imagem distorcida tirou-me a coragem para continuar.
Coragem não teria sequer de contar essa história se não lesse em Guimarães Rosa, no seu “Primeiras Histórias”, no conto “Espelhos” uma revelação semelhante dita na sua linguagem rebuscada:
“Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei...Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento espavor. E era – logo descobri...era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?”

Há susto outro que me encorajo a relatar. Lia um livro, certa madrugada, de alto ocultismo, certamente que “Zanoni”, de Eduardo Bulwer Lytton. Naquelas páginas, se bem me lembro, num momento culminante, era relatada uma terrível experiência que um iniciado nos mistérios estava tendo, ao decidir retornar do ponto de onde chegara. Tinha o personagem visões fantasmagóricas na escuridão indevassável no caminho da renúncia. O livro escrito com tal beleza levava-me a sentir o drama do iniciado renunciante.
A escuridão, as sombras e os fantasmas, o terror enfrentado pelo iniciado que desistia e, naquele instante culminante de pavor, a luz da sala se apagou com pequena explosão: POF. Dei um salto na poltrona, busquei ardentemente o interruptor, acionei-o insistentemente sem resultado, a escuridão era impenetrável tal qual descrito no livro. Tropeçando pelos móveis da sala cuja localização tão bem conhecia, cego de terror, cheguei à cozinha clareada pelo luar que penetrara pela cortina entreaberta e aí acendi a luz. Coração batendo forte. Pus a mão no peito tentando me acalmar. Mesmo reconhecendo o simbolismo da cena tão bem descrita no livro, por muito tempo fora influenciado por aquela experiência estranha, a coincidência da luz que se apagara num pequeno estouro quando as trevas dominavam aquele trecho da narrativa que aguçava, naquele momento, minha capacidade em distinguir vultos me observando.
Fora um grande susto. Por algum tempo fugi mais cedo da noite e da madrugada a partir do momento em que ficasse só.

Meus fantasmas...que se foram...sei não!

03/05/2009

VERSOS PARA NINGUÉM (II)

A PERDA DA VEIA ROMÂNTICA

Ao se enveredar com alguma persistência para o estudo esotérico – que na verdade tem muito de auto-ajuda sem que isso se revele expressamente ou faça parte dos seus objetivos primeiros – mantém-se para sempre alguns conceitos que se leva pela vida. Eu acredito nisso e eu ainda carrego esses sintomas, embora hoje já não me dedique (tanto) a tais veredas.

Já disse – e se não disse, digo - que no campo da poesia tenho certa dificuldade em elaborar proposições românticas. É que num dado momento, obriguei-me a pisar no chão duro da sobrevivência profissional e, nesse passo, há sempre distorção de valores e desvios de prioridades.

Perde-se nesse mundo próprio a coragem pelo lirismo, e até mesmo em pronunciar a palavra ternura. Uma pena, porque os tempos não voltam. Por isso, admiro aqueles que conseguem superar esse antagonismo, obtendo refinada inspiração.

Então, do que escrevi ao longo do tempo e que consegui recuperar – porque o computador é ótima ferramenta até o momento em que uma pane descarta tudo, o bom e o ruim arquivados -, farei por temáticas, isto é, versos com semelhanças de enredo.

Seguem dois que tratam de indagações existenciais. O primeiro é completado pelo segundo:

Presente, passado e futuro

A tarde é cinzenta e fria. É outono
Bate forte o vento na janela entreaberta
Estas tardes melancólicas de sábado
me fazem viajar no tempo
E anoto quão ele é inexorável
de estação em estação.

Ligo o passado jovem com o presente
Sou eu mesmo, pena que sem mais
os projetos mirabolantes, belezas utópicas,
Sem mais as ilusões de mudar
com discursos o mundo,
Nem parece verdade todo esse trajeto.

Que posso dizer disso tudo, afinal?
Que tenho saudade do feito e do não feito?
Contabilizando os trens que passaram
sem que embarcasse?
Pelas oportunidades e o tempo desperdiçados?

Não sei bem o que sinto, na verdade.
Só sei que tal ligação passado-presente
Está aqui comigo, n’alma,
E me desperta a cada dia
Quem fui, quem sou e quem serei?

Quem sabe um idealista que queria
mudar com discursos o mundo,
Lamentando os trens perdidos
Que me levariam...para onde?
Olho do alto da maturidade
Serena e...mais além...
Lá serei uma lembrança remota
cuja presença se perderá no pó...

Inexorável!


Antigu-idade

Caminho olhando pra frente
Firme, busco compreensão sentida,
Dessa coisa que sacode ardente
Dessa centelha frágil chamada vida!

Mas, o que é isso tudo, afinal
Se a cada momento dado, há impostas
barreiras, desafios, sem prévio sinal?
Remexendo interiores, sem respostas?

Olho ansioso para o alto, então
Ouço a voz universal, tênue e piedosa
Sinto-me entre as estrelas, em solidão
Nada sei dessas luzes silenciosas!

Volto-me para mim, miro-me n’alma
Medito no todo dessa realidade (?)
Insisto em desvendar a centelha calma
Mas, apenas intuo que já vivo antiga idade...

26/04/2009

"TEMPOS MODERNOS"

Dedicado ao amigo Caio Venâncio Martins


i – Os tempos do Satriani no Ipiranga

Voltara com frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo, na rua Silva Bueno, por muitos anos, numa pizzaria famosa.
Ela me marcara porque a frequentara desde a adolescência, naquelas noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas discussões se prolongavam,transferidas na volta da pizzaria, naqueles sábados estendidos, até as primeiras horas da madrugada para o bar nos baixos do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor qualquer, os mais afoitos ingerindo um destilado, conhaque de preferência.
Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade e de Deus, debatendo-se a reecarnação e o sentido da vida. Eram os tempos dos Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual e, com ela a promiscuidade, misturado ao V de “paz e amor”...
Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60, para quem deles usufruiu, que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com incrível nitidez.


ii. Tempos de maravilhas e perigos

Mas, ao lado dessas experiências maravilhosas numa época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos tecnológicos nos rumos do espaço, iniciados pela União Soviética, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os Estados Unidos...
Tinha em mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O presidente soviético, Nikita Kruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas, com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima.
A séria crise dos mísseis – que começaram a ser instalados em Cuba, mirados para os Estados Unidos -, em 1962, no embate havido entre Kennedy e Kruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas potências, para mim fora a coragem de Kennedy que vencera os soviéticos.
O que se deu nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de aula, um velho professor de francês, o Deleo, com seus gestos delicados que provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa numa noite começaria a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou ele:

Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west, mais où tout le monde meurt. Vous avez déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit?
Silêncio.
- Alguém entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre os Estados Unidos e a União Soviética.
O professor riu o que raramente fazia. Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do perigo, o conflito prestes a espocar e, na sua cristandade assegurou que tudo se resolveria com a intervenção divina.

Kennedy fizera concessões aos soviéticos. Fora sua prudência que evitaria qualquer retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática. A ameaça nuclear foi afastada.
Quando do atentado em Dallas, acompanhei tudo com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. A emoção se irradiou pelo mundo, perplexo com a brutalidade do atentado.


iii. Política e repressão

A guerra fria depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no poder, mas não ainda no governo.
Os eventos políticos em março de 1964 se precipitaram, resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve comemoração e alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe.

Tive um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o Isaque:
- Esse comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói do nada. Um desastre. O que significou a “Coluna Prestes” se não uma fanfarrice? Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis, propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe na sua insanidade os argumentos dos ditadores tanto de Getúlio como dos militares em 1964 para implantarem a ditadura.

À medida que os militares se consolidavam no poder mais a oposição era retaliada. Políticos eram cassados, os sindicatos esvaziados, prisões políticas se tornaram rotina e os movimentos de rua reprimidos.


iv – Grupos armados

Não demoraria muito, e grupos armados se organizaram opondo-se ao golpe militar, iniciando-se uma luta surda e sórdida nos bastidores. Nos porões dos órgãos oficiais de repressão, a tortura selvagem se tornara uma prática comum. Brutal. Mas, claro que não havia santos do lado dos grupos clandestinos armados.
Jovens e estudantes inteligentes se uniram a esses movimentos alimentando um ideal ambíguo de desforra impossível. De mudar o país com o povo unido. Ideais sem povo, porém, e ideologias que não diziam respeito a muitos daqueles que aderiram à luta armada. E, pior, tombaram sem bandeira e sem razão. O estilingue contra o canhão. Essa luta armada, no fundo, dera munição aos militares para o endurecimento do regime e o “vale tudo” da linha dura fortalecida na atividade repressiva.
Parece que o medo de serem descobertos nos seus esconderijos, porque esses “soldados armados” viviam na clandestinidade, fora das piores torturas. E a elas as torturas físicas de que foram vítimas. É que certo tipo de experiência embrutece e descolore os ideais por muito tempo ou para sempre. Muitos conseguem “dar a volta por cima”, recuperar a integridade enquanto outros mantêm na sua interioridade, um sentido de ruína por todas as tensões quando descobertos e presos, pela violenta tortura física e moral a que foram submetidos, aqueles choques elétricos que revolvem o espírito para sempre.
Não foram muitos os que se decidiram por aquele caminho belicoso incluindo os que rumaram meio às cegas, mas vários foram os militantes que se deram mal. Entregaram a vida. Esse tipo de oposição fora instituída num momento de arrogância militar. Um erro de estratégia. Haveriam esses opositores que esperar o momento começando por discutir idéias nas oportunidades que surgissem. O regime militar haveria que se enfraquecer como resultado de suas próprias mazelas. Cairia de velho. O sindicalismo no ABC, mais tarde, tivera essa percepção ou agira do modo como se toma a sopa, enchendo a colher pelas bordas, saboreando-a e dera sua contribuição para a queda do regime militar.
Já disse que em outra crônica, mesmo com o esquema radical de censura, beirando o ridículo nos seus atos de desaprovar manifestações literárias e artísticas, houve nessa década um razoável nível de criatividade, uma intensa atividade cultural e musical.


v – Derribados e sobreviventes

Na luta armada se envolveu um amigo. No começo fora difícil acreditar, pela sua sensibilidade e pela sua inteligência.
Poeta talentoso, cronista e contista que mexia um pouco com os meus cotovelos, na verdade minha convivência com ele, nos tempos do colegial, não fora fácil, não só pelo seu talento, como por suas explosões e demonstração de valentia dando vazão à sua personalidade contraditória. Mas, essas atitudes ambíguas, inseguras, seriam, também, um grito interior resultado de sua própria repressão pessoal que de certa forma, em todos se manifestava com maior ou menor intensidade. E talvez pela sua origem humilde, ele que vivia num bairro modesto na periferia. O colégio onde estudávamos, embora público, concentrava, em boa parte os herdeiros da elite da cidade.

Um professor, já então usando barba espessa à moda de Fidel Castro tinha por hábito fazer pregações de natureza política contra os militares no recreio do colégio.
Algumas dessas pregações ouvi por acaso porque não era mais aluno do colégio, e já começava a me preparar para a faculdade de direito.
Para mim, ainda mantendo resquícios de um sentimento anticomunista em linha com o golpe militar – que não demoraria a se desvanecer -, sabia da notória desinformação entre a maioria dos alunos daquele professor sobre o ambiente político e a repressão que poderia gerar se pegassem em armas. Não sei se sua pregação resultou em alguma adesão. Acho que não.
Esse professor engajado na luta armada não sobreviveria, sendo morto pelas forças da repressão em 1974.

Mas, aquele meu amigo, o poeta talentoso que ingressara na Faculdade de Direito não demoraria a se engajar na “luta contra a ditadura”, mas a partir dos bancos do Largo de São Francisco.
Fugindo do país, vivendo antes a tensão de ser descoberto ou denunciado, passando pelo Uruguai, por Cuba e França, conseguiu trabalhar regularmente na então Alemanha Oriental.
Retornou ele a salvo e hoje escreve crônicas e poesias admiráveis. Sua sensibilidade pela sua experiência e até pelo remédio do tempo, fora aguçada. Sobrevivente, vive da inspiração.
Revirando papeis daqueles tempos encontrei um poema que ele escreveu ainda como estudante do antigo clássico:

"Somos assim como mares profundos,
praias desertas, que quando assoladas
recobrem com areia as pegadas
da vida passada em outros mundos."


vi – “Lindo sonho de amor que tão cedo acabou"

Num jornalzinho do Grêmio – entidade dos estudantes do colégio-, encontrei de sua autoria uma espécie de poesia sobre alguns alunos de nossa classe a qual denominou "ABC da turma brava".
Transportando-me exatamente para aqueles dias, bate nos meus ouvidos uma música romântica que, infelizmente, não sei o autor e menos ainda o cantor que tinha o seguinte trecho: "Ah, lindo sonho de amor, foi o nosso romance que tão cedo acabou..."
É que, na nossa classe comum, havia algumas garotas que se destacavam pela sua beleza. Uma, injustamente, era apelidada de "Bolinha" porque, dizia-se, fora gordinha.
Nesse clima e pela minha participação estudantil forte tive alguma aproximação com ela.
Seus interesses estavam definidos, principalmente ingressar numa faculdade de renome, não só pela sua inteligência como aplicação nos estudos. E nesse objetivo, obtivera sucesso.
Certo dia em plena aula, como péssimo aluno que fora, comecei a fazer "graças" sem qualquer graça talvez querendo impressioná-la. Eis que ela já aborrecida ameaçou-me:
- Se você não parar com isso atiro-lhe este livro.
- Quero ver, disse eu duvidando.
Desafiada, ato contínuo, o livro veio em minha direção, sem qualquer conseqüência.
Claro que o livro voando pela sala, resultou num "zum, zum, zum" porque fora um plena aula, incidente logo esquecido. Encerrou-se o ano e o curso e cada um foi para um lado.
Eis que no seu "ABC da Turma Brava" esse episódio fora registrado assim:
"Diz um "M" que é de MM...
rapaz que nunca sai da linha,
e quando tentou levou foi mesmo
uma livrada da Bolinha".

Estais achando uma extrema pieguice?
Mas, saibas, foi “um lindo sonho de amor que tão cedo acabou.”

19/04/2009

VERSOS PARA NINGUÉM (I) (Dias de ingenuidade)

Sei bem que o “novo sempre vem” mas há apenas momentos do passado que amo. Uma paráfrase parcial da música de Belchior ("Como nossos pais") interpretada de modo arrepiante por Elis Regina. Quanto ao novo, ontem já está envelhecendo nesse caminhar célere dos dias e da própria vida.

A crônica de hoje, de regra, como outras, também baseada em fatos reais. Destaco “reais” porque o Aurélio ensina que fato é “aquilo que realmente existe, que é real.” Assim, se é fato...

A década de 60 é considerada “de ouro”. Fora uma divisora de águas, entre a década de 50 de afirmação, ainda com ranços do pós-guerra, o esquentamento da guerra fria que quase resultou num conflito nuclear em 1962 entre os Estados Unidos e União Soviética e o intenso progresso que eclodiria a partir dos anos 70. Um passo antes, em 1969, os americanos alcançaram a Lua, naqueles tempos em que os Estados Unidos haviam decidido obter (ou manter) a liderança tecnológica e científica no mundo minimizando a influência soviética. Também em 1969 com a interligação de quatro universidades americanas, possibilitou que professores e pesquisadores se comunicassem por precários computadores, em rede.

Quanto mudou o mundo a partir daí!

Mesmo os anos da ditadura que começaram em 1964 não impediram intensa criação artística. Basta lembrar os momentos célebres da “jovem guarda” e suas músicas açucaradas, românticas. As músicas geniais de Tom Jobim desde os primórdios da bossa nova. Mesmo Chico Buarque nessa década não se destacara por suas músicas com temas “sociais” e de revide velado aos atos da ditadura. "Olê, olá" é de 1965, a “Banda" é de 1966.

Pois bem, a cidade de São Caetano do Sul, nesses tempos dourados destacava-se pela intensa atividade cultural, artística, política e social. Inigualável.

O movimento estudantil empolgava e eu fiz parte dele fortemente.

Foi nesse caldo de cultura que aliado a um outro estudante, Emerson Marcon, ambos “doidos”, vivendo intensamente – mais não “vivi”, porque infelizmente ninguém me avisou, e nem poderia, como aquilo tudo era bom demais e que nunca jamais se repetiria – elaboramos uma cartilha de poesias, imprensa devidamente, arrumadinha, cujo título fora “Versos para ninguém”. A capa, um vulto mal atravessando uma porta transparente.

Com o tempo, com reservas pelas minhas “poesias”, porque feitas para preencher o tal livreto, sem inspiração e quase zero de transpiração, eis que anos depois, encontro uma delas transcrita num jornal interno de uma multinacional de eletrônicos. Claro que uma surpresa considerando a maneira como fora ela composta.

Tenho um amigo naquela cidade com quem militei na pequena imprensa, brilhante advogado, já antigo, pouco mais do que eu, João da Costa Faria, que me dizia – e se não disse, está dito – que tudo que publicamente se escreve, nunca se sabe onde vai parar o texto.

Essa “poesia” piegas demais foi exemplo efetivo disso. Ei-la:

Louvemos o homem que ri
Sem vaidade,
Admiremos o homem que fala
Sem hipocrisia
Respeitemos o homem que chora
Pela verdade,
Citemos o homem que estampa
Humildade

Louvemos o homem desiludido
Que perdoa
Admiremos o homem que perde
E reinicia
Respeitemos o homem que ama
E chora
Citemos o homem honesto
E feliz.

Louvemos o homem doente
Sem desânimo
Admiremos o homem pobre
Que trabalha
Respeitemos o homem que é rei
E modesto
Citemos o homem rico
E simples,

Louvemos o homem feliz
E otimista
Admiremos o homem paciente
Que espera,
Respeitemos o homem cansado
Que repousa
Citemos o homem que morreu
Mas viveu.


As virtudes que se inserem após cada louvação, fazem desse homem um super-homem. Utopias e esperanças naqueles tempos de transição, uma espera para qual lado caminharia a mente dos homens e o próprio mundo. As coisas, como se vê hoje, não caminharam bem: recrudesce a truculência entre o “homo sapiens”, as misérias se multiplicam e o agravamento assustador da devastação ambiental. Quais as consequências que advirão desses atos? Tremo ao imaginar.

De Emerson Marcon selecionei “Peregrino Errante” uma de suas poesias que compôs o livreto citado:

Viajei as estradas da vida tal um peregrino,
Vaguei pela chuva, pelo sol, sem um destino...

Conheci o céu, a terra, o mar, a luz, os amores,
o pó, a lama, a dor, o fogo, o perfume das flores.

As minhas vestes se rasgaram nos espinhos
e os meus sonhos se esfumaram sem carinho,

na carne os espinhos cicatrizes deixaram
e n’alma tantas vezes os sentimentos se afogaram!

Deus! Quanto sangue verti pelas feridas
e as lágrimas choradas foram perdidas!

Agora que a conheci, encontrei o meu destino,
não mais na vida serei um errante peregrino!

Depois de vê-la o passado é nada,
chegou o peregrino no fim da jornada!.


INGENUIDADES

Acima, no título, falei de “dias de ingenuidade” que se inserem naqueles anos dourados.

Claro que atrás de certo recato, inimaginável nos dias de hoje, havia a angústia sexual, reflexo de sua demonização por séculos, pregação das várias religiões que repetiam conceitos que hoje se perderam.

Muitos padres, então, aos meninos e meninas que iam confessar, faziam a inevitável pergunta: “você fez coisas más?” Será preciso explicar o que sugeria tal pergunta?

Sobre isso, aqueles que se propuserem a ler as crônicas em “Poetas”, aquela primeira cujo título é “Poeta falsificado que rima rosa com prosa”, há a explanação dessa “angústia sexual” porque o vulcão reprimido mexia com a cabeça...e como mexia.

Deu no que deu, no eterno efeito do pêndulo que solto se desloca violento para o outro lado, arrebentando tudo. Nestes dias assustadores a truculência sexual se faz presente como nunca.

Mas, o momento é de amenidades. Animo-me, então, a transcrever crônica meio poética que reflete bem o espírito romântico daquela época tão preciosa:

Esmeralda sem rosto

A primeira futura ex-namorada. Em nome dela, em sua homenagem, num domingo chuvoso de paixão, perdido no tempo, formulara alguns versos com rima pobre:

Como são fortes, candentes
Os primeiros amores,
Ardentes
A primeira namorada
Dúvida amarga
Amada.

Toda essa relação apaixonada fora tão tímida, havia indecisão em se aproximar da possível futura namorada. Naqueles idos. Uma torcida para que ela passasse na mesma rua após as aulas, no mesmo horário, um encontro silencioso e ansioso.Estudante destacadíssima. Aceitaria?

Encontros forçados, à espreita numa esquina qualquer, uma paixão ardente. Inesquecível.

A imagem dela na bicicleta, descolorida, meio enferrujada, sem rosto, um vulto, de branco. A rua cinzenta, úmida da garoa havia pouco, vento gelado no rosto, o sobrado humilde desbotado, com muro baixo. Alguns gerânios vermelhos nos vãos e rosas vermelhas e amarelas no canto do jardim. Um buquê retorcido no vento.

Esmeralda. Lembranças. Tudo passou de repente. Só o amor sem rosto ficou.

Amor ou lembranças que se perderam no tempo, não sei bem! Um pouco dos dois. Há desses instantes que não se perdem. Ficam porque doces.

Fazia justa associação: uma espécie de La Esmeralda, a cigana, vulto deslumbrante de Victor Hugo no “Corcunda de Notre Dame”. Também sem rosto, deslumbrante, porém.


Ainda voltarei com versos e poesias. Um dia desses.

10/04/2009

ANIMAIS (ZINHOS) E BICHOS

EXPLICO

Minhas relações com as várias espécies de animais (zinhos) e bichos sempre foram as melhores possíveis. Já nem falo de cachorros. Tem uma preta já velha e agitada me encarando suplicante pela janela, aqui do lado, esperando por um afago, passando minha mão pelos losangos da grade. Se não chego perto, ela choraminga.
Daqui mesmo, olhando à esquerda vejo rolinhas, anuns, pica-paus, bem-te-vis e outros espécimes que não sei identificar (há um pássaro azulzinho frequentador assíduo) saboreando bananas e metades de mamões postos para eles, sobre o muro, pela manhã, exatamente para que compareçam diariamente.
Gatos são, porém, minha preferência, embora tenham eles sumido das vizinhanças. Há muita gente intolerante com esses animais e partem para a maldade. Talvez nem eu mesmo tenha tempo para eles hoje, mas sempre que por perto, foram entre malandros e doces. Um tinha por costume morder suavemente meus pés com aqueles dentinhos finos. Aos meus protestos, ele parava, olhava para cima, com aquelas pupilas que vão e voltam e ficava a espera de um agrado.
Um indivíduo velho desses, que morreria atropelado, certa manhã comia sua ração quando um estrondo de tampa de panela no chão o fez saltar em pânico e sair correndo para a janela em fuga, batendo a cabeça no vidro. Percebendo a gafe e a risada geral, o sujeitinho se postou quieto perto da janela e carregado carinhosamente de volta à comida, ronronou como se tentasse explicar o vexame por que passara. Como não gostar desses caras?
Que valor tem, por exemplo, reter na mão um beija-flor que adentrou numa sala, na hora do almoço talvez atraído pelo perfume dum suco de uva? Cansado de se debater em busca da saída, barrado pelo vidro transparente sem entender porque não alcançava a liberdade - que estava a um palmo abaixo na abertura escancarada da janela -, que via lá fora, suas flores e suas árvores tão perto, entregou-se à sorte encostando-se indefeso num canto da parede. Eu o embalei cuidadosamente. Um chumaço de penas na minha mão, bicudo e olhinhos pretos. Solto lá fora, bateu as asas e desapareceu. Ficou a sensação de sua presença.
Que valor tem um momento desses? Para mim muito valor, muitíssimo.
Certamente que muitos dirão que isso ou aquilo é rotina e contarão passagens mais interessantes.
Mas, para mim foram experiência e impressões únicas, daí...


A Coruja


Numa tarde modorrenta de domingo, eis que uma coruja - ave muito comum no interiorzão de São Paulo, onde fazem seus ninhos em covinhas nos campos – no alto de um telhado vizinho, debatia-se para soltar sua perninha dos arames que retinham uma antena de televisão. Encontrava-se presa num desses fios onde se forma uma espécie de “v” ou “y”. Tentava se soltar pressionando a perninha no sentido do vértice da forquilha o que cada vez mais a feria.
Para melhor enxergá-la, munimo-nos de um binóculo. A perninha presa sangrava e mais se feria na medida em que forçava para escapar da armadilha.
Um dos meus filhos, verdadeiro “animal trepador”, então, resolveu soltá-la. Chegou ao telhado escalando muros e, com jeito, alcançou a corujinha. Já exausta e ferida não esboçou reação alguma, quem sabe conformada com o seu fim, eis que o inimigo cruel chegara para abatê-la impiedosamente.
Num movimento suave foi ela solta. Após alguns segundos, percebendo a liberdade, voou para uma folha alta de coqueiro, numa área verde próxima. Estava salva. Vacilara um pouco em voltar para seu esconderijo bem embaixo do coqueiro. Não demoraria muito, ela desapareceria. Sua cova estava vazia.
Algum tempo depois, ela reapareceu, mas empoleirada numa folha de coqueiro de minha casa – aquele tipo de coqueiro classificado de “anão” mas que vai crescendo e engordando como gota próximo da terra e se tornando alto e inalcançável. Certa vez, ainda não tão alto como hoje, ele produziu duma só vez 76 cocos, algo inimaginável. Não se trata de conversa de ...pescador, até porque falo de cocos e odeio pescar. Jamais pesquei e detesto! Inspiro-me sempre numa frase de Leon Tolstoi em “Ana Karenina”:“Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Ainda baixo o coqueiro a coruja ali se acomodou, sem a perninha esquerda. Certamente que infeccionara atrofiando-se, resultando na sua amputação. Dali do coqueiro ela não fugia, ficava horas quietinha. Deixava-se tranquilamente examinar com o binóculo. Dava voltas de quase 180 graus com sua cabeça.
Não sei se seu instinto revelara que ali, naquele coqueiro, naquele lugar havia segurança para ela ou se, no seu pequeno cérebro, espocara algum sentido de gratidão.
À noite, ela desaparecia. Nas proximidades, uma coruja chirriava de forma arrepiante. Talvez fosse ela nos estertores de sua vida.
Um dia ela (ou ele?) sumiu. Talvez tenha sido ceifada por infecção na região da perninha amputada.
Ficou sua imagem e a nossa gratidão em estar conosco por algum tempo.


Abelhas

Numa pequena chácara que tivera, construí uma casa de madeira, bem própria para o campo. Arrumadinha mas com alguns detalhes meio precários, caso dos vãos entre o telhado e o forro, que permitiram que morcegos frugíveros ali passassem a viver, ruidosos a noite inteira sobre o forro. E mais, num dos lados, bem na aba da varanda, a pouca altura, instalou-se um enxame de abelhas.
A colméia cresceu muito. Chegamos a extrair mel em razoável quantidade.
No calor insuportável dos dias de verão, as abelhas pareciam sofrer muito porque as telhas de amianto aumentam a temperatura. Em grande quantidade elas deixavam o abrigo e “nervosas” saiam em busca de alimento ou permaneciam esvoaçando ruidosas a poucos metros do chão.
Tinha por hábito passar no meio delas. Elas se embaraçavam nos meus cabelos, mas nunca foram agressivas. Jamais fui vítima de seus ferrões, salvo uma única vez em que uma delas, vendo-se presa atrás da lente de meus óculos, ameaçou a picada que não consumou. Se se consumasse, poderia ter atraído o ataque de outras e teria sido perigoso.
Essas abelhas eram agressivas. Certa feita, num pequeno serviço de terraplenagem por perto, o tratorista foi violentamente atacado por elas.
Para mim, essa relação de confiança demonstrada pelas abelhas, transcende o acaso, deixando transparecer que até elas respeitam sentimentos de não agressão e de tolerância.
Mas, cuidado, porque a reação delas pode não ser a mesma em qualquer outra circunstância ou pessoa.


Vespas ou marimbondos

Quando vim para o interior de São Paulo, aluguei uma casa assobradada. Na parte de baixo espécie de salão de jogos, dando para amplo quintal, instalara-se, parecia fazer algum tempo, um ninho de vespas, aquelas cujas picadas são muito dolorosas.
As crianças querendo fustigar os marimbondos que ali viviam quietos e amistosos, passaram, numa tarde de sábado, a mirar tênis no ninho. Claro que o vespeiro ficou agitado e agressivo. As vespas se aproximavam tentando identificar o agressor.
Impedidos por mim de continuarem atiçando os bichos, depois de algum tempo, não houve jeito, tive que recolher os tênis bem embaixo do ninho semidestruído.
No momento em que estiquei o braço direito para recolher um dos tênis em local bem abaixo donde esvoaçavam as vespas, uns cinco indivíduos me atacaram, picando apenas o braço ameaçador. Eles não me atacaram para agredir, apenas para se defenderem na iminência de nova ameaça de agressão.
Meu braço inchou, mas eu apreendi a lição de não agressão.


O leitãozinho


Sempre que ia ao açougue naqueles tempos já saindo da meninice me dava um aperto no peito aqueles ganchos nos quais eram pendurados pedaços de cadáver de porco e boi. Sempre no mesmo horário de domingo, frequentemente um chinês dono de pastelaria próxima, aproveitava o moedor do açougue para preparar o recheio dos pasteis. Os filetes da carne moída e das pelancas que se misturavam caiam numa bacia imunda, meio amassada, contendo nas reentrâncias resíduos de outras moagens.
Os pedaços de porco mais me impressionavam porque havia alguns anos assistira ao abate de um leitãozinho que circulava meio livre pelo quintal. Lá estava, presente que meu pai recebera, nem sei bem porque e de onde.
Chegou o dia de ser abatido. O vizinho afeito à matança desses animais se prontificara a não só abater o bicho já grandinho como retalhá-lo em pedaços para serem consumidos. O Natal seria comemorado dali a uns dias.
Numa manhã de domingo tal se consumou. O homem, já velho, curvado, nariz avantajado com crateras lunares, olhos avermelhados, sem expressão, de chapéu de feltro batido e desbotado, escondendo seus cabelos grisalhos, apropriou-se de uma faca enorme, agarrou sem dificuldades o porco porque habituado à presença de todos, segurou-o pelas costas apertado-o no seu peito com o braço esquerdo e com a mão direita desferiu o golpe abaixo de sua pata dianteira em direção ao coração.
A facada não atingira o coração do bicho. Gritando desesperado, pressentindo a traição e a morte iminente, aqueles olhos vermelhos procuravam por todos aqueles em sua volta em quem confiara e recebera carinho, de mim especialmente, se debatendo não demorou, momentos depois, a perecer num segundo golpe, agora certeiro. Seus olhos morreram fixados nos meus.


O escorpião no sapato

O escorpião é um animal (zinho) amaldiçoado na Bíblia. Eis alguns versículos que o tratam como um demoninho:
Apocalipse 9,5: “...e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião quando fere o homem.”
I-Reis 12,11: “...meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.”
Eclesiástico 26,10: “Uma mulher maldosa é como jugo de bois desajustado; quem a possui é como aquele que pega um escorpião.”
Lucas 10,19: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada fará dano algum.”
Por vezes um acontecimento que poderia ser ignorado num mero bocejo, rebate como se houvesse um sentido oculto, uma mensagem velada. Tive várias dessas experiências. Uma delas, meio assustadora, dera-se numa chácara que freqüentava. Lá chegando, quase todos os domingos, calçava um par de sapatos velhos, feito chinelos, folgados e saia pelos campos. Num fim-de-semana, calço os tais sapatos e sinto que há algo saliente dentro de um dos pés. Jogo o sapato no chão. Sai a carcaça de um escorpião adulto, o mais venenoso, que amassara na semana anterior, sem que percebesse. Passara incólume de sua picada venenosa e dolorida.
Algo diferenciado se dera nesse episódio? Fora alertado sutilmente do perigo em calçar os sapatos sem olhar? O que se faz numa hora dessas? Olho para o céu azul e indago: o que isso quis significar?
A minha “cultura esotérica” insiste que não leve certos eventos para o mero acaso, a sorte.
Deixei o versículo de Lucas por último, acima (“Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões..."), que fora uma afirmação do poder de Jesus transmitido aos seus discípulos. A mim não serve esse poder, nem pensar, até porque tenho uma propensão agnóstica, meio moderada, porém.
Mas, o que isso significaria, “agnosticismo moderado”? Poderia ser definido numa frase do professor Paulo Edgar A. Resende em artigo numa antiga revista da PUCSP (1968 – “Deus hoje, Sim e Não”): “Os cristãos que passam ao ateísmo, não o fazem a partir de um raciocínio da existência de Deus ou da não-existência de Deus. Eles partem da convicção de que a crença em Deus não tem significação para o relacionamento com os homens, é algo separado da terra, e que poderia ficar para depois, para os períodos de intervalo, para as situações limites, para a velhice, para a época da doença.”
Por esse agnosticismo, ainda que moderado, não sou elegível a pisar a salvo nesses demoninhos.
O caso é que eu pisei e o amassei. Bichinho adulto, amarelado, imóvel diante dos meus olhos perplexos.
O que isso significou? Sorte? O acaso? Já disse que há situações em que rejeito explicações por essas palavras.
Não sei, mas quando dele me lembro, sinto algo a mais no meu sapato mesmo que não tão folgado como aquele no qual se alojara o escorpião sem sorte (epa!) num domingo de céu azul e ensolarado.


O Quati

Houve um tempo em que morara numa casinha simples, boazinha, cujo quintal dava fundos para o já então poluído rio Tamanduateí, violentado pelo despejo de fábricas, esgotos, lixo. O quintal era separado por uma cerca de ripas, tendo um portãozinho que dava para um terreno baldio e, atravessado esse, a aproximadamente 30 metros, depois de um caminho de terra à margem, "caia-se" no rio Tamanduateí. Perto dali, havia uma ponte de madeira e, na outra margem, na mesma direção do meu quintal, havia um campo de futebol, onde aprendera a andar de bicicleta.
Quando chovia muito, o rio transbordava, chegando as águas até ali, perto da cerca, inundando todo o terreno baldio dos fundos. As águas não chegavam até meu quintal, porque o terreno de minha casa era mais alto. Bem encostada na cerca, do lado de dentro de meu quintal, havia uma amoreira, que frutificava sem parar. Quase que diariamente, meus dedos ficavam tingidos de vermelho das amoras, graúdas, saborosas. Certa feita, trouxera meu pai para casa, um quati. Fora um presente. Não sei dizer sua origem. Viera ele dentro de um caixote.
Foi-lhe posta uma coleira, sendo preso por uma corrente, com cuidados especiais, próximo à amoreira. Meio selvagem, meio perigoso pelos seus dentes caninos afiados, mantínhamos certa distância no começo. O quati, segundo o Dicionário Aurélio, é um mamífero carnívoro, "com sete subespécies distribuídas por todo o Brasil" (!?)
O "meu" quati, seguindo a descrição normal das espécies, tinha focinho e pés pretos, corpo meio amarelado, com cauda longa e com anéis pretos. O animalzinho preso, tinha mobilidade suficiente para trepar na amoreira.
E isso ele fazia constantemente, enroscando a corrente nos galhos. Com muito cuidado, algumas vezes por dia, íamos desenroscá-la para que o bicho voltasse a ter a mesma mobilidade. Quanto a mim, depois de algum tempo de sua chegada, querendo as amoras criei coragem e fui para perto da árvore e comecei a colhê-las. O quati permaneceu quieto de pé, cauda alevantada. Quando me sentei para comer as frutinhas acompanhando o caminho de formigas cortadeiras que passavam por ali carregando pedacinhos de folhas, entre assustado e em pânico, tentei tirar o quati de cima de minha cabeça que avançara inesperadamente, tendo a corrente batendo no meu rosto.
Mas ele não fora feroz. Não fora agressivo. Na verdade, tivera tempo de "cavoucar" delicadamente minha cabeça com as patas dianteiras. E esse carinho maravilhoso ele repetiria sempre. Subia pelos meus ombros sem cerimônia e "cavoucava" minha cabeça. Embora carnívoro, comia quase de tudo na minha casa, como um cachorro. Nasceria ali uma amizade duradoura. Eu o levava para passear no terreno do fundo, ele abria pequenas covas com seu focinho e suas patas.
Uma alegria para ele. Chegava mesmo a soltá-lo da corrente. Dava um pouco de trabalho resgatá-lo, mas quando se cansava, espontaneamente voltava. Pela amizade do quati, entendo bem a frase inspirada de Antoine de Saint-Exupéry no seu consagrado "O Pequeno Príncipe", pela voz da raposa: "- Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Ele tinha umas pequenas feridas e coceiras na cauda. Eram tratadas com mercurocromo e não progrediam. Desapareciam um tempo, mas voltavam.
Um dia precisou ser levado embora. Não me lembro bem porque. Teria sido levado para uma espécie de convento, conduzido por religiosas que possuía ampla área verde. Soube que morrera algum tempo depois. As feridas na cauda evoluíram, disseram-me, resultando em sua morte. Certamente que não fora cuidado devidamente. Ou morrera de saudades. Até hoje lembro-me dele com carinho... Uma vidinha simples, de amor e de amizade incondicionais, sem escolher dia e hora.

29/03/2009

POETAS

EXPLICAÇÃO

Há anos, escrevi uma série de crônicas sobre “tipos notáveis” que conheci, que soube da história e alguns inventei a partir de fragmentos de fatos "reais".
Entre os "tipos notáveis", insere-se "O Solitário" que tem muito de delírio e nos seus discursos, a despeito de sua vida incomum, um modo de encontrar inspirações, as respostas que dá não são conclusivas, significando imensa dificuldade para compreender esta existência de nexos, conexos e desconexos.
Também entre os notáveis, o relato em "O deserto e o mar". Esses "tipos" estão publicados aqui.
Os "poetas" estão, também, entre os "tipos notáveis".
São crônicas longas que podem desincentivar a leitura mas afirmo, como já se disse, que não houve tempo de serem mais curtas.


I – Poeta falsificado que rima rosa com prosa.


Vivia-se naqueles tempos mágicos em que não se falava de abominações como pedofilia e outras aberrações humanas de hoje. Não havia preocupação com a devastação ambiental. Os tempos eram mais lúcidos e limpos.

No domingo, as missas eram até obrigatórias. A das 10h40 na matriz mais ainda porque desfilavam garotas perfumadas e encantadoras. E que não fumavam...

E nesses tempos, havia espaço para a boemia. Para se ser boêmio, havia que se ter uma certa indiferença com o dia-a-dia da vida, isto é, não estar muito preocupado com a manhã seguinte, com o emprego (o “trampo”), com o patrão.

Se essas preocupações batessem, já por volta da meia noite, não seria o indivíduo um boêmio, mas um notívago que na manhã do mesmo dia, estaria acordando cedo, bocejando sem parar e, pior, ter que dar conta do batente e ouvir as ordens do patrão.

Pois a convivência com esse tipo de figuras, naqueles tempos em que os poetas de botequim rimavam mais ‘rosa’ com ‘prosa’ e não ‘nexo’ com ‘sexo’, havia um grupo misto de garotos e garotas que frequentava uma pizzaria bem em frente do maior colégio da cidade, do outro lado da avenida e, sentados num banco de cimento nos fundos do salão, punham-se, depois de nacos de pizza devorados, algumas doses de cerveja ou conhaque, a "meditar sobre a vida".

As frases entreouvidas:

- Eu tenho problemas, eu não consigo me controlar, estou doente, não sei bem o que é!

Sem um psicanalista por perto, depressão não se conhecia, o problema jamais era identificado. Algumas das garotas, para se "automedicarem" falavam em estudar psicologia.

Uma delas até chegou a esse extremo. Já madura, sem saber o que fazer com o diploma de psicologia por total inaptidão voltou a estudar, formando-se em direito. Tornou-se mais tarde juíza com distinção e já era cotada para assumir posição no tribunal, numa merecida promoção. Não perdera mesmo nesse nível, a sua meiguice que trazia desde aqueles tempos de colégio. Muitos foram seus pretendentes e apaixonados. Na atualidade, solteira, nas audiências, havia advogados que torciam para que suas ações fossem distribuídas para sua vara de tal ordem a admirarem a virtude da meiguice, encantados com seu modo de explanar as idéias. Rigorosa, o resultado da demanda se adverso, era sempre perdoado e os recursos redigidos de modo respeitoso de tal modo a não ofendê-la nas razões expostas. Mas, sua erudição e independência estavam acima desses flertes. Não sei se casou, eu a perdi de vista.

Entre esse grupo da pizzaria, havia um garoto que revelava os mesmo sintomas.

Tornara-se um jovem alto, magro, cabelos lisos e pretos, mais para branco do que para mulato, à noite sempre de camisa branca, impecável. Pouco se sabia de sua vida privada, de sua família, de sua casa...

Trabalhando como aprendiz operário numa fábrica no Ipiranga, nas proximidades do Museu, abominava o trem “lotado e proletário”, que tomava diariamente e reclamava de tudo, do chefe, do almoço, do trabalho repetitivo, da burrice dos colegas... de tudo.

Já estudante do colegial, engajou-se nessa "turma problemática". Toda noite, bastava beber um pouco e, aos prantos, esbravejava suas emoções incontidas e, depois, encostando a testa na mesa, escondendo-se com os braços, curtia a bebedeira, esperando por algum consolo. Por tudo queria parecer vítima e às vezes era bastante convincente quando reclamava entre lágrimas de sua má sorte.

Dizia-se poeta. Numa dessas noites, depois de uma crise de histeria, escreveu num guardanapo alguns versos com aquelas rimas medíocres, de rosa, com prosa revelando toda sua paixão por um amor não correspondido:

"Meu amor, és para mim uma branca rosa,
Sua imagem doce me inspira em verso e prosa."

Colegas mais matreiros, desconfiados do seu “problema”, nalguns sábados, levavam-no a inferninhos bravos de São Paulo, naquelas zonas próximas da praça da República ou no Teatro de Revista numa travessa da avenida Ipiranga para provocá-lo. Eram aqueles tempos em que as doenças venéreas eram curáveis.

Mas, não havia meio: não se embalava. Embebedava-se, fazia papelão no meio daquelas mulheres ávidas por uns trocados, exibia-se recitando algumas poesias medíocres e ficava a espera de "muletas". Nada funcionava para ele.
Certo dia, um sábado meio ensolarado meio nublado, engajou-se numa excursão a um parque público que tinha como atrações um bosque bem fechado e um lago amplo e bonito tendo, às suas margens, quiosques reservados para churrascos e piqueniques.

Na viagem de ida, no ônibus, por acaso, sentou-se ao lado de uma moça, já não tão moça, mais para "coroa" devidamente desimpedida.

Essa mulher assanhou-se para o seu lado. Não demorou muito para que o clima esquentasse. Logo após o almoço, discretamente foram para o bosque e se encostaram numa árvore iniciando a mútua excitação.

Desceram a roupa de baixo naquela “volúpia incontida”. Teve início o ato sexual, sem medo e sem vergonha, exultante. Mas, fora este interrompido de forma até abrupta e cômica. Um vigia do parque os viu em pleno ato e apitou com todas as forças de seus pulmões. Foi a sorte de ambos, porque permitiu que saíssem correndo da maneira que puderam, ajeitando a roupa pelas trilhas do bosque. O “poeta” aos tropeços na barra da calça mal ajeitada e a mulher recomposta do jeito que pode, fugiu por outra trilha num recanto mais fechado do bosque.

Não foram pegos por pouco. E se fossem seria um grande vexame, um escândalo, teriam muita dor de cabeça, porque naqueles tempos tudo se resolveria na delegacia. E como se explicar aos colegas da excursão, à professora que a organizara?
Passado o susto e o desprazer pelo prazer interrompido, voltaram juntos no ônibus rindo muito e pelo que ele próprio contara, nunca mais se viram. É o que disse...

A partir daquele dia o "poeta beberrão" mudou. Suas choradeiras tornaram-se raras. Apenas doses agudas de conhaque poderiam aguçar sua sensibilidade. Depois abandonou o curso e desapareceu. Sobre ele só ficaram estes versos, redigidos por um boêmio solidário, tão “problemático” quanto, numa noite fria em que a histeria ridícula do beberrão passara dos limites e o álcool falara alto por todos:

”Ah ! poeta falsificado
triste e doido beberrão;
rei da histeria tola
o que pensas da poesia ?
Julgas que diante dos copos ,
da garrafa vazia,
encontraras a musa do amor ?
enganado estás meu caro medíocre !
a musa imaculada que buscas,
aquela que o verdadeiro poeta canta,
não está no brilho d’uma garrafa,
Ilustre beberrão !
Porque a musa doce e bela
a pura e límpida impressão,
É a alma limpa que chama
É o espírito são que revela...
tolo beberrão.”

Aqueles tempos idos que agora voltavam à memória afetavam a sensibilidade. a doçura da juventude, acordes de músicas daqueles tempos ressoavam em meus ouvidos orquestradas no éter.

Agora pisava no chão duro, há muito compelido a enfrentar os desafios, os chamados da vida.


II – Poeta infeliz, um lutador sem vaidades


Fui às lágrimas ao me lembrar de outro poeta, mas este diferente daquele porque tivera uma vida amarga e, na realidade, consumido por ela.

Ele também convivera com esses grupos de jovens “problemáticos”, notívagos e boêmios. A única extravagância é que, um dia, no meio daquela turma, no seu silêncio bebera um pouco mais e se proclamara com um copo nas alturas de “João, o poeta”.

Esse sujeito, um simplório, mulato, fez de tudo para sobreviver: trabalhou num centro de abastecimento carregando caixas de frutas e legumes, foi motorista de táxi e até mesmo ambulante. Mas, a despeito de todas essas atividades duras, ele continuava se qualificando como poeta. A sua humildade tinha um certo encanto: por causa dela, ninguém conseguia ignorá-lo e era sempre bem-vindo.
Sua educação formal não fora além do colegial. Seu pai falecera, vítima de cirrose hepática, quando tinha apenas nove anos. Dissera certa feita que ver o seu pai bêbado quase todo dia, fora dilacerante. Sua mãe, infeliz e batalhadora, operária de uma indústria têxtil, garantiu ao filho esse nível escolar. Mais não pôde.

Nos últimos tempos, tornara-se lavadeira. Cheguei a conhecê-la: apresentava rosto sofrido sulcado por pequenas rugas, os cabelos grisalhos a envelheciam implacavelmente muito além da idade. Seus olhos opacos sem brilho demonstravam cansaço e tristeza. Suas mãos e braços apresentavam feridas e inchaços doloridos, porque dia após dia, enfrentava o tanque, os sabões e o cloro. Por terem, apesar de tudo, algum conforto até há um mês, sua dor maior fora se mudar para uma favela, em condições precárias. Todas as tardes, quando chegava ao seu lar tão desarrumado, seus olhos se enchiam de lágrimas.

O pendor de João pela poesia fora, talvez, uma forma que encontrara para se diferenciar dos demais, se superar nas imensas dificuldades de sua vida suportando ironias e deboches num meio pouco afeito à solidariedade e à compreensão. E ao mirar sua mãe ferida trabalhando sem parar, escondia o rosto com as mãos, como se escondesse sua dor e sua vergonha por nada poder fazer por aquela senhora, sua mãe, que lhe dera tudo o que pôde dar.
Quem se proporia, naquele meio, a dar um apoio? Naquele meio em que o dinheiro do pai falava mais alto, dava prestígio? Naqueles tempos em que se tornava rei quem possuísse um “fusca sedan”?

Naquela noite em que João se proclamara poeta, um desses sujeitos bem de vida, com forte dose de álcool no sangue, no fundo da pizzaria, com aquela voz mole de embriagado, equilibrou-se como pôde e gritou:

- Ô João bobo, o poeta de ninguém, o negrinho sem vintém!

João baixou a cabeça por alguns instantes. Levantou-se vagarosamente, deixou o copo vazio com restos de espuma sobre o banco e reagiu violentamente. Um único soco, além de ferir o supercílio do ofensor deixou seu olho roxo. O impacto do soco arremessou para trás o ofensor e, sem equilíbrio sob os efeitos do álcool, sentou-se no banco de cimento batendo a cabeça na parede com aquele ruído muito próprio.

O tumulto foi geral. Alguns davam vivas, outros erguiam o braço do João pelo nocaute obtido e todos cantaram num ritmo alucinante,com vivas, “o poeta beberrão”.

Sendo a "vítima" quem era, João foi assunto por semanas, não pela sua poesia desconhecida, mas pelo soco merecido dado num cara prepotente que por vários dias ostentara o curativo e o olho roxo.

Anos depois, num dia frio, eu o encontro numa esquina abrigando-se da garoa:

- Como vai, João, há quanto tempo! Eu estudei com você, lembra-se. O que você tem feito?

Ele esboçou uma resposta qualquer, balbuciou monossílabos incompreensíveis. Não parecia bem, estava abatido, cabisbaixo. Sua aparência era pior, porque vestia roupa surrada.

Disse apenas:

- Minha mãe morreu no sábado.

Em silêncio, tentando esconder a emoção pela perda daquela que tanto lhe fizera, que tanto lutara, abriu uma velha pasta de mão retirou um livro (“A Maça no Escuro“ de Clarice Lispector) e do meio dele puxou um envelope desgastado:

- Olha algumas de minhas poesias, até agora não serviram para nada. Nunca mostrei a ninguém. Guarde-as para mim.

- João, alguma vez na vida você tentou um concurso literário, tentou publicá-las perguntei.

Ele me encarou surpreso, pensando que fosse mais um deboche. Percebendo que a pergunta fora séria, seus olhos brilharam, esboçou um sorriso e calou-se.

De repente, saiu pela garoa forte, correndo. Voltou-se e fez um aceno.

Uns oito anos depois, soube que João falecera havia uns três anos de "doença grave" nos pulmões. Para minha surpresa, o que me fez pensar por vários dias, toda a conta do tratamento hospitalar tardio e do enterro de João, fora paga por aquele sujeito bem de vida, vítima de seu soco, agora um poderoso empresário, herdeiro da empresa de seu pai.

Sua empresa fazia doações ao hospital e mantinha convênio para atendimento de seus empregados. Numa tarde, o empresário saindo do hospital com o diretor clínico reconheceu sentado, cabisbaixo, João, “o poeta.”

Parou na porta, certificou-se de quem se tratava, voltou-se e discretamente apontou para João:

- Doutor, está vendo aquele mulato branquinho ali? Veja o que está acontecendo. Dê-lhe todo o carinho e tratamento. Depois falaremos de custo, se houver.

Soube dias depois de sua grave doença irreversível e, logo depois, de sua morte, como se a ela se entregasse tantas as amarguras que enfrentara. Emocionou-se e redimiu-se com o passado de deboches ele que era mal visto até entre os “problemáticos”. Discretamente acompanhou o sepultamento de João que pagara como pagara a conta do hospital.

João fora, rigorosamente, um simples. Em sua humildade e no seu gosto pela poesia, estava sua grandeza. Ele poderia ser alvo de deboches, mas nunca ignorado. Era daqueles que incomodam positivamente.

Nem eu levara em conta sua poesia. Ao saber de sua morte, lembrei-me delas. Procuro ardentemente o envelope, encontrando-o finalmente no meio de velhas contas pagas, numa divisória da estante. Ao tocar no envelope, a presença do poeta ao meu lado naquela tarde garoenta fora sentida com intensidade.

Uma poesia que certamente refletiu seu modo de vida, suas angustias é esta:

TUDO É VAIDADE (ECL. 12,8)
Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...
Extinta, então, a tênue vida, não o Espírito
Falam as Escrituras dum fio de prata rompido
Retornando o Espírito desse ponto partido (?).
Mas, como "tudo quanto sucede é vaidade"
Quando tal soberba sem medida cresce
O Ser humano, no Espírito, enfraquece.

Depois disso, resolvi ler o livro de Clarice Lispector (“A Maçã no escuro”) em cujo exemplar estava o envelope de poesias de João.

Achei-o “meio chato”, embora a história apontasse à exaustão, as contradições, as fraquezas do espírito humano e, especialmente, a angustia da solidão expressada pelo personagem principal que cometera um crime, Martin.

Tempos depois de lido, muitas vezes alguns episódios voltavam à minha memória, sinal de que o livro, a despeito de maçante para mim, o poeta João dissera algo, fora importante.

08/03/2009

RENÚNCIA À CARNE (Animais brutalizados)


Proclamar-se vegetariano num mundo predominantemente carnívoro, isto é, apreciador de carne como alimento não é tarefa fácil. Frequentar restaurantes ou reuniões sociais, onde predominam, de regra, churrascos e salgadinhos à base de carne é sempre complicado porque será necessário escolher pratos sem o componente animal no cardápio ou saber antes qual o conteúdo do salgadinho oferecido. Por isso, esse tipo de sujeito, obrigado a conviver como uma exceção, como minoria nesse mundo "desigual" será, no mínimo, considerado um "chato".

Além de comentários impacientes e eventualmente irônicos, os seus pares, os que se deliciam com um churrasco e com a carne de um modo geral, sentem-se de alguma forma incomodados convivendo com alguém que repudia o delicioso alimento de origem animal.

Eu conheço bem essa situação. Há mais de 40 anos deixei de lado todas as carnes, salvo o peixe em raríssimas ocasiões. Quanto a este, sem nenhuma razão especial, salvo a de não ser "tão diferente", “tão chato”, em reuniões sociais, mas sempre com um peso na consciência, um estágio de nojo.

Nesse tempo todo, somente uma vez vi-me obrigado a comer pequena porção de um bife, nos Estados Unidos, porque atendia a convite de um casal ávido em servir comida brasileira. Tanto pela presunção do anfitrião, como pelo "reencontro" com a carne, percebi que não valera a pena o sacrifício.

As razões que me fizeram deixar de consumir a carne, foram inspiradas em certos ensinamentos esotéricos que consideram os animais uma outra onda de vida que, em vez de serem sacrificados sem piedade, deveriam ser respeitados, ajudados e amados pelos homens. A isso, acrescentem-se as cenas de terror que se sucedem intermináveis nos matadouros onde a crueldade é inimaginável.

Claro que abandonar o hábito da carne num país como o nosso é esperar muito.

Há, sem dúvidas, a proliferação natural de certos animais ressaltando-se porém que há o incentivo e técnicas de procriação e, há,ainda, é verdade, muita fome grassando pelo Brasil e, de resto, em todo o planeta.

Escrevi alhures, porém:

Relatório da ONU denominado de “A grande sombra do gado” esclarece “que os gazes emitidos pelos excrementos e flatulência dos animais, pelo desmatamento para formar pastos e na geração de energia gasta na administração do gado respondem por 18% dos gases-estufa emitidos anualmente no mundo.”


O mais grave é que o Brasil é o maior exportador de carne do planeta e comemora esse êxito pelos milhões de dólares que amealha no negócio.


Mas, além desses prejuízos ambientais, há aspectos ponderáveis a considerar nesses êxitos.(?) 


Os paises importadores da carne brasileira, a compram “limpa” não precisam investir em pastos, rações e em reservas de água para a criação e engorda dessa incontável massa bovina.


Quanto à soja cujo plantio também tem sido causa de imensos desmatamentos é um dos componentes da ração do gado.


Mas, é inequívoco que as pessoas que deixaram de comer carne costumam atestar que se sentem bem assim. Livraram-se de um alimento mais pesado que provém do sofrimento do animal, na hora do abate afetado pelo instinto de preservação violado, pelo grito da violência iminente e do temor.

Os animais tendem a se apegar ao homem, na medida em que forem tratados com carinho e amor. Às vezes, passam a confiar cegamente no seu "irmão maior", a pessoa que deles trata e os alimenta.

Imaginem que tipos de vibrações eclodem no ato da morte do animal domesticado, quando abatido, em especial pelo seu próprio "dono".

Não me parece que em tempo algum a morte violenta esteve tão banalizada tanto na hora do almoço, como na hora do jantar. A televisão sofistica os detalhes. Claro que as guerras passadas ceifaram a vida de milhões de soldados, nessa luta “sem razões”, que não fosse a busca insensata pelo poder, pela dominação de povos e conquista de territórios, aspirações de grandes líderes providos de pequenas almas.

Mas, a despeito da carnificina que se sofistica entre o homo sapiens, não posso me omitir sobre um artigo do “Estado” de abril 2006, assinado pela colunista Regina Schöpke que produziu excelente resenha do livro do filósofo Tom Reagan, denominado “Jaulas Vazias”. O livro que trata da crueldade que se pratica contra os animais, tem no autor um defensor daquilo que “chama de uma consciência animal, ou seja, desse despertar do homem para a sua própria condição ou parte da natureza”, qualificando-se o escritor, então, “porta-voz daqueles que não podem falar e que, em função disso, tornaram-se escravos de nossas necessidades e comodidades."

Refere-se a articulista às freqüentes referências ao gênio Leonardo da Vinci contida no livro, porque, “afinal ele, que desde criança tornou-se vegetariano por não suportar as atrocidades que se cometiam, dizia que o homem transformou seu estômago num túmulo para todos os animais”.

Há um sentido antropofágico se se considerar a evolução da própria espécie humana , porque “Darwin estudou tais emoções (dos animais e sobre isso nos referiremos mais à frente) e, mais do que isso, ele foi o primeiro cientista a desferir um golpe profundo em nossa arrogância ao mostrar que nossa espécie evoluiu de outras inferiores e que somos apenas animais, ainda que muito inteligentes”(!?).

Há anos chegou às minhas mãos um vídeo que não consegui chegar ao final, que mostra a brutalidade que se comete contra os animais, os frangos prestes a serem abatidos e os bois no “corredor da morte”, antes da pancada na cabeça, que ao perceberem o que se passa, aguçando o sentido da sobrevivência, relutam em prosseguir e são empurrados por choques elétricos.

Algumas crueldades, entre outras, relatadas pela revista “Super Interessante” de 09/2003 que todos sabem ou “desconfiam” mas “esquecem” na hora de devorarem nacos do churrasco:

. A vitela é a carne de um bezerro anêmico que passa os seus cinco meses de vida em um cercado minúsculo, impedido de se mover, para a carne ficar macia;

. Bichos com pele valiosa não dão cria em cativeiro e são caçados, permanecendo dias com as patas dilaceradas, presas em armadilhas. A pele costuma ser retirada com o animal ainda vivo;

. Galinhas poedeiras vivem espremidas sob luz quase ininterruptas para que comam e botem sem parar; os bicos são cortados para evitar o canibalismo.

Mais esta, segundo relato extraído do livro resenhado:

“Assim como amontoar cães e gatos em gaiolas, como fazem certos restaurantes da China, para que eles sejam escolhidos pelos fregueses e mortos na hora, só se explica por uma brutalização maior do homem, já que nem os animais que se tornaram nossos mais fiéis companheiros são poupados”.

Com breve pesquisa, será fácil encontrar outros atos de violência contra os animais. É só ter coragem para enfrentar as cenas deprimentes e covardes.

Do ponto de vista do divertimento, as execráveis e covardes touradas que colocam o touro em total desvantagem e, com facas afiadas, vai sendo enfraquecido na sua resistência ao ser seguidamente espetado no dorso. O toureiro é um covarde, um estúpido como estúpida é a platéia que vibra com sua covardia, jamais um herói.

De outra parte, muitos são os estudos que garantem não ser a arcada dentária e mesmo o estômago do homem apropriados para a mastigação e digestão da carne.

Mas, qual o preço da vibração cósmica que produz essa brutalidade sem fim? Valho-me, porque acredito, de trecho de um velho (os conceitos são válidos) e pequeno livro editado pela editora “O Pensamento”, de autoria de Cinira Riedel de Figueiredo, “Sabedoria Esotérica”, esquecido há muitos anos na minha estante:

“A falta de respeito aos reinos inferiores da natureza leva o homem a criar mau karma (carma, lei da causa e efeito), e este é o motivo da Humanidade estar vivendo dias cruéis, repletos de moléstias incuráveis, de guerras e desajustamentos”.

Acima me referi à emoção dos animais. Relato um caso que vivenciei:

A VACA E O BEZERRO SEDENTOS

Há alguns anos, numa chácara em São Pedro (SP), pus-me a regar certas plantas e árvores tenras. O calor era insuportável.

Numa área vizinha, a aproximadamente 50 metros, uma vaca e seu bezerrinho, desde cedo ali confinados, ouvindo o ruído da água, postaram-se perto da cerca e ali permaneceram ela que sempre se mostrara arredia à minha aproximação, desconfiada da possível maldade que poderia praticar o estranho. Era água que pedia tanto para si como para sua cria. Enchi um balde e levei até eles. Não foi suficiente. Enquanto bebiam o segundo balde, acariciei o pescoço da vaca.

Devidamente saciada, o animal ergueu a cabeça e seus olhos bateram nos meus. Havia no seu olhar muita doçura, gratidão...amor.

Não ! Definitivamente, não conseguirei mais voltar a comer carne.
Eis aí a emoção “animal” que jamais esquecerei.

02/03/2009

O SOLITÁRIO (Delírios e Altruismos)

O médico clínico geral, de família abastada, filho de alto executivo de multinacional, que nunca trabalhara, deparara-se havia alguns anos com as misérias humanas, trabalhando na emergência de um grande hospital de São Paulo ainda como estudante dos últimos semestres do curso de medicina, convencendo-se a cada dia da fragilidade da vida. Adquirira ali, a consciência da mortalidade pelas quantas vezes assistira o domínio da morte, da dor, a crueldade assassina e o abandono do semelhante. Nem crianças em tenra idade eram poupadas naquele recanto de misérias.
Por causa disso e porque os estudos estavam exigindo muita dedicação, começou a sentir-se angustiado, com momentos de solidão e silêncio.
Numa noite, parou seu carro no acostamento duma estrada secundária, divisa de São Paulo com Minas Gerais, para respirar, pensar um pouco. Olhou para o alto, lua cheia, céu estrelado e caiu no lugar comum. Disse alto:
- Qual o sentido de tudo isso, essas estrelas, essa Lua? Quem comanda isso tudo? O que eu faço aqui, na mais absoluta ignorância?

Nas proximidades de São Tomé das Letras, deparava-se a uns 20 metros da estradinha de terra, num terreno plano, pequena casinha, com boa base construtiva, reboco externo bem acabado, duas janelas na frente e, sob elas, beirando a parede, florezinhas miúdas, violetas, “marias-sem-vergonha”, azáleas vermelhas. Perto, alamandas amarelas e roxas num canteiro cercado por pedregulhos do tamanho de melões. À esquerda, no meio do pomar enfeitado por algumas quaresmeiras, o poço e hortas mal cuidadas. Seu morador, vivendo humildemente, um homem jovem, barbudo. Quando foi notado, perambulava pelas matas, alimentando-se de vegetais e frutas silvestres que parecia tão bem conhecer.
A lenda que dele se contava, tinha muito de fantástico. Segundo ela, certa noite tivera um encontro misterioso com extraterrestres que dele se aproximaram, interceptando seu veículo num trecho deserto de rodovia. Mantido refém, ao que parece, pois que deixara de dar notícias de seu paradeiro, conta-se que fora submetido a certas experiências por esses seqüestradores alienígenas. Dias depois, fora libertado, numa noite escura, sob tormentosa tempestade. Ao acordar pela manhã, ensopado, localizado pela policia, ao ser informado onde estava, a dezenas de quilômetros de sua cidade e de onde se lembrava ter estado até acordar encharcado, teve um choque, perdendo os sentidos. Para sua família foi o alívio e a emoção do reencontro, já que o procuravam intensamente, imaginando coisas piores.
Após seis meses, recuperado da experiência, recobrou seu vigor mental, mas recusava-se a comentar o que se passara naqueles dias de ausência. Suas atitudes eram outras: tornara-se mais calmo, introspectivo exatamente o oposto de antes, aquele comodismo pelo conforto fácil de moço rico que tudo tinha.
Dois anos mais tarde, assim que concluíra o curso de medicina com dedicação na emergência hospitalar, retornou àqueles sítios nos quais iniciara sua experiência, ali se instalando precariamente, vivendo modestamente mantendo-se distante da vizinhança.
Essa mudança assim radical fora um choque para sua família, que tudo fizera para acertar o rumo de sua vida. Mas, para diminuir o desgosto de sua mãe, prometera um breve retorno.
Talento que demonstrara possuir e que começou a chamar a atenção dos moradores por perto, era o de cuidar de animais doentes e abandonados. Com essa virtude, os lavradores e chacareiros que de hábito o ignoravam, desconfiados com seu modo de vida passaram, a princípio hesitantes e encabulados, a procurá-lo com seus animais doentes, na certeza de que o estranho vizinho os curaria.Teve, certa feita, uma reação indignada quando uma mulher, trazendo uma cachorrinha doente, pediu-lhe que a sacrificasse para acabar com o sofrimento do animalzinho. Rispidamente, ele reagiu e se revelou:
- Eu estudei para curar, não para matar, senhora. Não é aqui que encontrará o desprezo pela vida! A cachorrinha, com rápido tratamento, obrigada a beber um chá feito de ervas, logo melhorou. Com essas ações, passou a ser admirado e respeitado pelos vizinhos e moradores do lugar que viam nele uma presença permanente de segurança e socorro. Com a pobreza à sua volta, passou a cuidar de crianças doentes e, com certa relutância, também dos adultos carentes e ignorantes, muitos bebedores de cachaça, fumantes inveterados. Chegara a fazer partos urgentes. As parturientes, sem exceção, diziam ter sido uma experiência tão menos dolorosa que o normal, falando até mesmo em "milagre". Assim, granjeou o solitário muita simpatia embora, de certa forma, fosse um pouco temido talvez pela sua barba espessa que escondia em parte seu rosto e pela fama que, inexplicavelmente conseguira, de feiticeiro. Talvez porque, para aquelas pessoas simples, as beberagens que preparava, tivessem algo de mágico. E o disco voador, ele não viajara com os marcianos, não aprendera com eles?Ninguém o incomodava porque a despeito de tudo o que fazia, não se aproximava dos vizinhos. Só era procurado quando houvesse alguma necessidade, doença em animais ou crianças. Para retribuir sua ação graciosa, num sábado de muito sol os moradores com habilidades, percebendo a dificuldade que tinha o estranho com as ferramentas, sem nada perguntar e nada revelar, melhoraram o telhado de sua casa, as hortas foram alinhadas, o pomar cuidado e limpo, a mato roçado. A reação do solitário fora de surpresa nos primeiros momentos mantendo-se em silêncio, olhos arregalados vendo aquilo tudo, aguardando o resultado final, aceitando ficar à margem do mutirão.
Ao final do dia, monossílabos de agradecimento e gestos que demonstravam gratidão pela ajuda inesperada que recebera.
Um indivíduo assim estranho, cheio de virtudes, numa pequena comunidade como aquela não poderia deixar de produzir comentários e curiosidade além fronteiras. Aliás, aquela região, mais naqueles tempos, era muito propícia a alimentar a curiosidade dos turistas, pela fama que alcançou em ser um "ponto" de discos voadores, pelas suas montanhas brilhantes. Numa manhã iluminada de sábado, chegou até sua casinha, um grupo de estudantes universitários, dispostos a desmistificar o misterioso morador altruísta e dado a feitiçarias.
Esses estudantes, ao se depararem com aquele estranho sujeito, tiveram certa decepção: estatura média, barbudo, franzino e não irradiava aquele ar santo que esperavam encontrar. Todas as perguntas de sua vida pessoal, ele ignorou, como se não as ouvisse. Quando se referiram à história dos extraterrestres, ele foi para dentro da moradia como se em sua volta não existisse nada além dos elementos da natureza e seus animais soltos por perto. Sem conseguirem as reações que esperavam, permaneceram em silêncio alguns instantes, imaginando a melhor estratégia para abordar o solitário. Havia, no fundo, o desejo sincero de conhecer as idéias desse sujeito raro que curava animais e homens. Já se decidiam a ir embora quando uma das moças presentes, a que tinha um gravador nas mãos, acendeu um cigarro. A sua reação fora imediata. Explodiu:
- Apague isso. Mulher que fuma não tem perfume, apenas cheira. E mal.
Entre surpresa e assustada, como se fosse uma ordem impossível de ser contrariada, ela apagou o cigarro. Atônita, perguntou meio sem convicção:
- Qual é, afinal, a sua verdade?
O solitário parou por um instante, como se refletisse na pergunta. Voltou-se, encarou a estudante com aqueles olhos pequenos e brilhantes, respirou fundo e, respondeu, deixando todos boquiabertos:
- A minha verdade? Mas, o que é a verdade? A estudante ligou o gravador. Seria a verdade a clássica definição daquilo que está em conformidade com o real, que não admite o oposto? O que é o real? Muitos sábios que proclamam "suas verdades" cometem tantas vezes erros grosseiros que acabam por ingressar na enciclopédia do absurdo. Tal tem ocorrido em todos os ramos do conhecimento humano ao longo do tempo. Na medida em que o homem evolui na alma e no conhecimento, as verdades se multiplicam...e se completam. Ou são corrigidas mesmo sendo “verdades”. Uma proposição não verdadeira, aceita como verdadeira por longo tempo, pode ter o mérito de provocar uma nova perspectiva, o oposto, proporcionando, então, uma "nova verdade" e a conseqüente ampliação do conhecimento. Do ponto de vista da sua interioridade, da alma, de seu grau de compreensão, de inteligência, de evolução espiritual o indivíduo se situa num certo patamar de crença e ali busca inspiração para entender sua vida mortal e, a partir daí, encontrar a sua verdade ou a verdade dos outros. Porque são muitos os que aceitam as "verdades" de outrem, sem questionar. Manifestações aceitas pelo adepto, podem um dia, num estalo, contrariar suas próprias descobertas interiores. Se não desprezar esse momento de revelação poderá encontrar na sua caminhada, novas indicações da verdade que busca. Eis porque são absolutamente insensatas as desavenças entre religiões e crenças e insanas as tais “guerras santas”, porque todas elas, a despeito de suas virtudes, imperfeições e ódios, são degraus para o alto ou para baixo até. Não falo sobre estas. A Grande Verdade, aquela que acabará florescendo na interioridade do ser humano, aquela que, por seus méritos, ser-lhe-á revelada um dia, a todos espera pacientemente.
Respirou e concluiu:
- A "minha verdade" pois, se situa nessa busca calma de um degrau superior ou lapidar uma pequena face nessa pedra brilhante que representa a Verdade.
Perplexos com a longa resposta, os estudantes mantiveram-se por alguns segundos em silêncio. Não sabiam como prosseguir a conversa e se, numa nova pergunta, haveria resposta. Recolhera-se o solitário ao seu mutismo habitual. Debruçou-se sobre a base redonda do poço e desceu o balde. Na sua subida entoara aquelas notas cadenciadas dos grossos pingos retornando à sua base, redonda, límpida e primorosa, fazendo rodelas no espelho lá embaixo. Tendo o balde quase cheio à sua frente, apoiado na borda do poço, por alguns instantes parecera meditar ou orar sobre a "benção da água". Em seguida, despejou pequena parte dela numa moringa. O resto pôs numa vasilha para uma cabrita e seu filhote que o rodeavam docemente.
Um dos estudantes com semblante debochado, acadêmico de direito, refeito da surpresa da intervenção do solitário há pouco, aguçara sua veia irônica.
- Doutor, mas qual o sentido da vida, hem?
Sem se virar para ele, o solitário respondeu:
- Percebo a provocação contida em sua pergunta séria, jovem, e sinto as angústias de seus dias e sua luta de superação, mas vou respondê-la sem qualquer graça ou troça “doutor”. Essa indagação sempre me afligiu quando, por exemplo, me deparo com o mistério de ter, à frente, mirando-me nos olhos, um outro ser humano e, ao seu lado, em sua casa, animais domésticos que lhe dão amor, nunca pedindo nada em troca e, ainda mais, no seu jardim, plantas e flores que seguem com incrível beleza e sabedoria, seu próprio ciclo, apontando para as alamandas. E o que dizer dos pássaros, dos beija-flores, das árvores frutíferas, das abelhas.
Olhe para o alto e sinto o Universo sem fim...e sem começo. Qual o sentido da vida? De onde vim? Que faço aqui? Para onde vou quando morrer? São perguntas freqüentes que intrigam a vida terrena efêmera. Quem não pensa nisso tudo, tendo diante de si um amigo ou parente inerte, morto? É, portanto, uma pergunta muito difícil de responder. Quem me dera pudesse respondê-la, precisa e definitivamente. Sofri muito com isso, por experiências passadas, mas adotei o sermão mais comum. O “propósito da vida” está no aprendizado, na busca pelos séculos, de valores interiores e o encontro do ser humano com a verdade que ele traz na alma, o fragmento divino, ou de Deus, chame essa fonte original do que você quiser. O homem carrega dentro de si um templo. A grande religião que parece estar tenuemente avançando ou selecionando alguns, é aquela em os homens vagarosamente vão encontrando chaves para a abertura desse seu templo. As religiões, mesmo as que fazem da fé um negócio lucrativo poderão auxiliar nessa revelação porque por ela o fiel pode dar um passo à frente. As religiões, então, não importa em que grau de espiritualidade ocupam, servem para ir despertando seus praticantes para esse novo patamar. Todo o processo de elevação espiritual, de santidade, embora possa ter por alavanca uma qualquer religião, se consolida dentro do homem, em sua alma, numa profunda experiência psíquica. É no seu interior, sem testemunhas, que ele encontrará a manifestação suprema. Quando o homem encontrar a divindade dentro de si, terá ele subido vários degraus nos rumos da santificação e, então terá mais revelações sobre os propósitos da vida. Mas, você aí com esse olhar de sábio debochado, está disposto a alcançar a santidade, a renunciar, a perdoar as ofensas? Muitas vezes me fiz essa pergunta. Muitas vezes vacilei. De que serve essa aspiração se sou feliz assim? Silenciou como se voltasse a meditar. Encarou o estudante agora atento à explanação e prosseguiu:
- A humanidade não é uniforme: nesta escola de aprendizagem muitas são as classes e mundos: "Na casa de meu Pai há muitas moradas", disse Jesus. Há seres humanos que se destacam pela humildade e grandeza, há outros que se destacam pela soberba e outros que se comportam como bestas-feras. Quais as razões dessas diferenças? Parece que dispomos neste mundo níveis que vão do jardim da infância à universidade de altíssimo nível. No jardim da infância são matriculados seres humanos cujas almas havia pouco se libertaram de uma massa mais densa, num misterioso processo de evolução e mutação. Assim considerados, podem cometer desatinos da maior gravidade. Mas, aprenderão tendo como mestre a lei da causa e efeito, isto é, "o que você faz, você recebe na mesma proporção e intensidade, mais dia menos dia, no momento preciso". Há as classes intermediárias, onde os seres humanos matriculados têm consciência das forças do bem e do mal. De regra, optam pelo bem, porque é mais forte aquela voz da consciência. Mas, é claro, cometem deslizes e desatinos, às vezes, também, da mais elevada insensatez. Finalmente, os "níveis superiores" ocupados pelos líderes espirituais sinceros e filósofos que pelas suas palavras e ações, ajudam e inspiram toda a humanidade a evoluir, chamada à razão e a trilhar o caminho da caridade, da humildade e do perdão. Esses vários degraus ou níveis só podem ser explicados pela reencarnação. Porém, de onde provém, originariamente, essa "matéria" extremamente leve ou extremamente densa que é a alma humana, segundo seu estágio evolutivo, é um mistério, até aqui acima da compreensão ou vedada a revelação ao homem no seu atual estágio. Depois, note como os reinos inferiores, mineral, vegetal e animal evoluem, se transformam e se aperfeiçoam. Há guias invisíveis designados para que esse processo decorra irreversível. Por isso eles podem nos emocionar: quem já não se encantou pela beleza de algum mineral? Ou se emocionou diante de uma floresta majestosa? Diante de um riacho límpido e harmônico no meio da floresta? Ou pelo sentimento de amor permanentemente transmitido por um animal doméstico ou domesticado? Como um processo permanente de ajustes, cabe ao homem a missão de voltar ao mundo em muitas vidas, não só para prosseguir no aprendizado como, num dado momento, para auxiliar e ensinar seus semelhantes, com seu conhecimento de irmão mais velho e evoluído. E praticar a caridade.
Demonstrava o palestrante agora um certo cansaço, incomodado com visitas não anunciadas. Impaciência nos seus gestos, mas parecia se conter porque talvez houvesse algo mais a ser dito.
O estudante de direito desfez o ar de deboche e se perguntava constrangido se o “cara” não seria sensitivo:
- Que história era aquela quando disse “sinto as angústias de seus dias e sua luta de superação”? pensou.
Instantaneamente o solitário se voltaria e o encararia com aquela ar sereno e sem malícia. O estudante baixou os olhos.
A estudante perguntou, então, de forma direta valendo-se do que lhe restara de coragem:
- Essa sua renuncia aos valores do mundo, essa vida humilde, não tem algo de demagógico ou, no fundo, muito de vaidade, para se mostrar diferente dos demais? O senhor é médico ou veterinário?
O solitário permaneceu calado por alguns segundos como já se dera antes. Afagou o cabritinho ao seu lado e respondeu:
- Há na Bíblia menção à vaidade, dita pelo Pregador: "Vaidade de vaidade, tudo é vaidade" porque tudo volta ao pó e o espírito volta a Deus. Assim, a minha vaidade consiste em encontrar, por mim próprio, "palavras de verdade", de tal sorte que possa eu inscrevê-las lapidadas, ainda que numa pequena face daquele brilhante a que já me referi. Será demagogia ter tal aspiração? Quanto à vida humilde ou modesta, assumi esse modo não apenas como um requisito para alcançar aquele objetivo. E eu me sinto muito bem assim. Há modos de felicidade. Se sou médico? Procure você mesma a resposta
Ditas essas palavras, o solitário encerrou sua explanação abruptamente. Fizera um sinal quase imperceptível de que era hora de deixá-lo só, com suas tarefas. Gravador desligado. Os estudantes deram um "até breve" e partiram sem olhar para trás um pouco encabulados pelo que esperavam encontrar e aquilo que realmente encontraram.

Na noite desse mesmo sábado, choveu muito. Uma tempestade. No domingo ensolarado, manhã inspiradora porque tanto os pássaros como as árvores festejam a chuva da madrugada, os vizinhos a caminho da missa e dos seus cultos, notaram o silêncio no casebre. Os animais estavam por ali, alimentando-se. Mas, pareciam agitados, desconfiados.
- Ora, o homem saiu um pouco pelo mato, lá pro riacho que hoje está cheio. Logo mais tarde ele estará de volta, disse um fiel para sua esposa. Mais tarde, retornando, os vizinhos notaram que o "feiticeiro" continuava ausente. À tarde saíram à sua procura. Não o encontraram e não descobriram qualquer vestígio de seu paradeiro. Entraram na casinha e ela estava limpa como se esperasse a volta breve do seu morador. Mas, ele não voltou no dia seguinte e não mais. Os seus vizinhos agradecidos por tantos favores, preocuparam-se em cuidar dos animais como ele cuidava. Na mente simples daquelas pessoas, o homem solitário viajara para sempre com os extraterrestres. Afinal, não fora abandonado por eles depois de o terem sequestrado numa noite de chuva forte?

Mas, há outra versão: não gostaria de se constituir numa "atração turística". Parece que já vinha se preparando para outra morada, adiara por causa dos seus animais e pela carência de seus vizinhos, mas os estudantes foram a gota d’água. Hoje, quem sabe, estará nalgum outro recanto, curando animais e homens, em silêncio, levando uma vida simples sob o manto da natureza e das divindades que sua alma procura.
Ou por outra, voltado à sua vida de médico clínico na emergência de algum hospital no mais absoluto anonimato. Parece que assim se dera, alguém dissera um dia.