EXPLICAÇÃO
Esta crônica já publicada há anos, a escrevi num momento muito próprio de reflexão, nas variáveis e experiências que a vida insondável me impunha (e impõe) no dia-a-dia.
Ela é inspirada em “fatos reais”, rigorosamente, e ao me decidir pela sua republicação aqui tentei ser menos emocional e mais “frio” no relato.
Muitos são os tipos humanos que conhecemos ao longo da vida. De alguns, lembramo-nos com emoção, com ternura. De outros, apenas nos lembramos, mas nos lembramos sem um motivo lógico, consciente. Comigo esse fenômeno é frequente. De repente, sem mais nem menos, vejo-me repetindo o nome de alguém que remotamente conheci num episódio qualquer que ficou pelo tempo mas que perdura na memória, afluindo sem explicação.
Não é o caso de um colega de trabalho falecido há vários anos que me marcou bastante.
Seu passatempo preferido era a leitura clássica. Com uma particularidade: discutia mais o estilo literário do que propriamente as idéias do autor.
Ocupava uma posição gerencial na empresa e, como qualquer outro dedicado profissional, tinha orgulho de sua ascensão embora naqueles dias, por razões diversas, especialmente por uma forte crise econômica que afetava a indústria, enfrentasse no seu trabalho, momentos de nervosismo e tensão. Aquelas reuniões que todos reclamam sem razão.
No dia-a-dia convivemos em muitos almoços. Com outros dois amigos, um deles médico, já falecido, filosofávamos às vezes sobre o mistério da vida e da morte. Esse meu amigo era um tanto cético em certas proposições, mas não era daqueles cheios de números na cabeça e uma mente vazia.
Certa feita, com entusiasmo, passou ele a relatar sua ascensão profissional. Começara sua carreira numa fábrica de automóveis de há muito extinta (Vemag), ao lado de um colega a quem se referiu respeitosamente como sendo um mestre em sua profissão, reconhecendo mesmo ter aprendido com ele muito do que sabia em sua especialidade.
E arrematou:
- Onde estará ele? Sempre o encontrei no mesmo lugar, na mesma escrivaninha, sem grandes aspirações, emoções...
- E no entanto continua sendo mestre? perguntei-lhe
Diante do leve mas sugestivo gesto afirmativo, de seu rosto iluminado pelo entusiasmo, completei:
- Então, antes de tudo, você precisa avaliar quem é mais feliz. Ele mestre na mesma mesa, sem grandes aspirações ou você nessa sua posição hierárquica elevada sujeito às pressões e aos desencantos cotidianos. Tudo se resume, meu amigo, a um mero conceito de felicidade. Você já avaliou isso?
Minhas observações não tinham a intenção de constrangê-lo. Sem conseguir disfarçar, porém, algum desapontamento, silenciou. A conversa mudou de rumo.
Uns dois anos depois, já afastado desse meu amigo, eis que, acometido de doença crônica mal cuidada, veio a falecer. Num fim de semana chuvoso.
Os sonhos transmitem mensagens e imagens estranhas, misteriosas e mesmo premonitórias. Viagens.
Certa madrugada, bom tempo depois do seu passamento, sonhei com ele.
Com muita nitidez eu o vi ansioso (ou talvez mais que isso, esperançoso) em meio à subida de uma escada, ansioso, parecendo esperar por alguma ajuda, tentando galgá-la, ao lado de outras pessoas e rostos.
Muitas vezes pensei sobre isso. A existência estabelece um processo de experiências, de causa e efeito que nos une, inclusive, a pessoas. Encontros e desencontros. Experiências de vencer e perder.
A ansiedade, a emoção que pressenti em meu amigo no sonho, todos aqueloutros rostos, lembraram-me que, ao lado dos degraus da vida cotidiana, material, a serem galgados, uma outra ascensão nos chama sem que, necessariamente, demos ouvido. E nessa, talvez, num dado momento, sabe lá onde, necessitemos de algum humilde mestre que nos ensine os passos para cima. Porque, creio, uma tênue linha separa os dois mundos. Pois,
"Não te maravilhes por eu te dizer: Vós tendes de nascer de novo. O vento sopra para onde quer, e ouves o som dele, mas não sabes donde vem e para onde vai. Assim é todo aquele que tem nascido do espírito". (Ev. João 3-7,8).
Imagens
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Velas: tapetedepenelope.wordpress.com/2009/09/21/
3 comentários:
Milton,
já conhecia, foi um prazer reler. "A existência estabelece um processo de experiências, de causa e efeito que nos une, inclusive, a pessoas. Encontros e desencontros."
Vinicius nos diz, no "Samba da Bênção", que "a vida é a arte do encontro/ embora haja tantos desencontros pela vida".
Abraços, meu irmão.
Ah, dr. Milton, esse conceito de felicidade!... Para mim, a felicidade reside nas coisas simples da vida. Na paz da consciência e do dever cumprido. Mas, sobretudo, que belo é nascer de novo, nascer do espírito, conforme a Palavra .Parabéns pelo texto! Marisa Bueloni
Milton,
Complementando a escritura de João:
"E disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida.." (Joao 14:6).
Sdçs,
Silvio
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