De um modo geral todos na sua caminhada nesta estrada que não se divisa o fim, têm algo que contar. Muitos são os que não contam o que implica na perda de uma experiência, de um fragmento histórico, de uma inspiração poética.
O tema desta crônica é real e se afasta daquele sentido tépido, ameno de outras que damos às nossas experiências e as experiências tidas com tipos humanos diversos com que cruzamos ao longo da vida.
Não! Não foi nada ameno e vivido num período de muita tensão e incerteza. Esta passagem já contei muitas vezes, mas tenho aproveitado este Temas - nem sempre sustentado com o ânimo que pareço demonstrar -, para reunir todas essas experiências. São os meus fragmentos históricos.
Para mim o relato abaixo foi emocionante e, como tal, inesquecível, até porque nessa quadra da vida política brasileira, desenhavam-se novos rumos.
Foi assim...
...na greve de 1980 no ABC. Aquela que durou 41 dias e que para sua deflagração, não houve a ação de piquetes.
Trabalhava numa multinacional, em Santo André. Lá pelo 15° dia de paralisação, o ócio do dia-a-dia sem trabalho, sem solução, incentivou que as empresas tomassem algumas medidas para tentar, o quanto possível, esvaziar a greve e trazer os empregados de volta à linha de produção. (1)
Foi decidido, então, "chamar os empregados à responsabilidade", através de uma circular redigida por mim a mando da diretoria, remetida a todos eles, nos respectivos endereços residenciais. Essa circular foi redigida até com termos ríspidos, lembrando, no final que, para continuar garantindo o emprego e o sustento dos empregados e famílias, era necessário que voltassem imediatamente ao trabalho.
Devo acentuar que era chamado para reuniões em São Bernardo do Campo, onde se situava a matriz da empresa (Chrysler) de regra sempre que havia necessidade de redigir alguma circular aos empregados. Isolava-me numa sala e de lá saía o que interessava à empresa dizer.
A reação à carta fora praticamente nula. Até o 25° dia, a greve manteve-se com altos índices de paralisação.
Numa tarde monótona, porém, quente, sufocante e sonolenta, poluída pela atividade de fábricas vizinhas, indústrias químicas, de pneus e a Refinaria de Capuava, dois veteranos empregados da fábrica, pertencentes ao setor de fundição, exatamente o mais sacrificado de todos, pela emanação de poeiras, gases e calor intenso, entraram cautelosos pelo portão principal da fábrica. No pátio, próximo da entrada para a área administrativa, fui chamado. Ambos portavam a carta que, com firmeza, nervosos, repudiaram:
- Não podemos aceitar os dizeres desta carta. Nós estamos aqui trabalhando há mais de 15 anos e eu (o interlocutor mais velho, negro alto e magro, envelhecido pelo trabalho pesado naquele ambiente insalubre) fundi os primeiros blocos do motor de exportação para o México. O que é que o senhor espera que façamos ? Que nós "fiquemos heróis" com tantos colegas lá fora esperando, torcendo para que essa greve acabe logo? Que "nós seja" desrespeitados por eles como traidores, fura greve ?
Que nossas famílias sejam ameaçadas pelos outros grevistas dos barracos vizinhos? O senhor pensa que estamos calmos em casa?
Perplexo, nada pude responder, tal o peso moral das palavras, do sermão que acabara de ouvir.
Enquanto se retiravam dignos e corretos, não pude externar, um pouco por vergonha, outro pouco para não deixar interpretar que a atitude fosse demagógica, minha emoção, meu respeito pelos profissionais simples que, com poucas palavras, pronunciadas corretamente, me passaram, para o momento, um verdadeiro "sermão da montanha", sem saberem que a carta fora redigida por mim. E lá foram eles cheios de dignidade.
"Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mateus 5.3)".
Referências
(1) Sobre a greve de 1978 ("Greve de 1978: início de tudo" de 11.05.2010), tenho um artigo indigesto que pode ser lido no portal www.votebrasil.com e no blog martins.milton2.blogspot.com
Foto da fábrica da Pirelli, em Santo André, então vizinha da fábrica da Chrysler, cuja área foi convertida há anos numa loja Carrefour. A empresa de pneus tem politica de preservação ambiental.
2 comentários:
No fim deste sermão Jesus multiplica pães e peixes, não é? Com o "dai vós mesmos de comer" e quando se assustam os balaios se enchem de pão e peixes - o milagre. Fato é que não se faz nada sózinho e greve é uma demonstração da maioria em cima do capital ou da finalidade que se lhe dá, lucro sem distribuição ou evasão para alguns priviligiados. Participei de várias e não é fácil ficar sem trabalhar, ir a frente do prédio, ser xingado ou cobrado no trabalho, pelos colegas, em casa e pela consciência. A gente reza, canta, se organiza, tenta reuniões, discussões, cede, avança e acaba, de forma ou de outra, massa de manobra para quem consegue mais em cima de uns caraminguás de auxílio disso e daquilo.
No fim deste sermão Jesus multiplica pães e peixes, não é? Com o "dai vós mesmos de comer" e quando se assustam os balaios se enchem de pão e peixes - o milagre. Fato é que não se faz nada sózinho e greve é uma demonstração da maioria em cima do capital ou da finalidade que se lhe dá, lucro sem distribuição ou evasão para alguns priviligiados. Participei de várias e não é fácil ficar sem trabalhar, ir a frente do prédio, ser xingado ou cobrado no trabalho, pelos colegas, em casa e pela consciência. A gente reza, canta, se organiza, tenta reuniões, discussões, cede, avança e acaba, de forma ou de outra, massa de manobra para quem consegue mais em cima de uns caraminguás de auxílio disso e daquilo.
1 de maio de 2011 08:07
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