Memórias, fragmentos
Corriam aqueles tempos em que ter um Fusca 1300 era ser rei na paquera.
Em São Caetano, o cine Vitoria sob um prédio com alguns andares, tinha logo ao lado das bilheterias, um bar de bom padrão. Quantas vezes ali me servi de pizzas do tamanho de um prato ou arrisquei um licorzinho ameno nas madrugadas.
Numa das salas do prédio, instalara-se o Centro Acadêmico que, como se deduz, concentrava esses estudantes que já haviam ingressado no curso superior.
Muitos desses acadêmicos se reuniam ali ao lado do “bar vitória” ou na esquina. Nos contatos que tive com alguns deles constatei que exalavam cultura, bem informados, revelando todo o meu despreparo.
Um deles, acadêmico de direito do Largo de São Francisco, aprendera inglês em contato com o “éter” – enquanto eu fugia desesperado das aulas da língua ministradas por professora rigorosa. Foi naqueles dias que pela primeira vez devo ter ouvido a obra “Crime e castigo” de Dostoiévski e muito mais:
“Sartre disse...”, “Foi Bertrand Russell quem disse...”; “O livro”O Lobo da estepe” de Herman Hesse...” (1); “Herbert Marcuse no livro “Eros e a Civilização defende que...”
Para mim uma humilhação. Imaginem que poucos anos antes eu me ocupava em ler livros de Edgar Rice Burroughs sobre o personagem Tarzan! Lembro que já havia lido “Dom Casmurro” de Machado de Assis.
Alguns dos livros mais citados pelos acadêmicos da esquina do Cine Vitória procurei ler mas, por exemplo, “Lobo da Estepe” preciso reler porque não me lembro de absolutamente nada do seu “enredo”. (2)
Bem, passados tantos anos, me pergunto por onde andam esses intelectuais tão jovens. Sei que um deles já “mudou de lado”, outro se deu bem na vida profissional...mas, e os demais que me marcaram tanto? Perderam-se no tempo, nalgum lugar.
Porém, se havia assunto que me preocupava desde então, era a preservação das florestas. Essa pequena crônica abaixo se situa naqueles idos e a ideia, mais tarde, inspiraria um poema com o mesmo tema, já publicado neste Temas:
“Paisagem
Vez por outra busco uma estrada com vegetação cerrada que toma ambos os lados. Próximo a uma baixada onde a vista se perde, lá embaixo é qualquer coisa de magnífico, notar os raios solares beijando as frondosas árvores, seculares árvores, talvez.
Bem à minha frente, eis uma delas, várias delas nas redondezas. São rainhas, sem trono nem coroa.
Seu reino é a própria dignidade que externam, é a sombra também secular que propiciam.
Aqui me sinto bem! Esqueço os problemas mesquinhos, perco o egoísmo e o espírito anda por lá, por aqui.
Outro dia voltei ao local tão sereno. As árvores seculares foram destronadas: o progresso ultrajou-as. “Aqui a natureza dará lugar ao progresso”, dizia uma placa.”
Isso escrevi na década de 60. Nem pensar no hoje, “natureza dando lugar ao progresso”...e à cobiça desenfreada!
Legendas:
(1) De Hermann Hesse (“Siddharta”), v. “A Sabedoria dos rios” crônica de 22.11.2009
(2) Resenha de livros:
“Dos livros que não consegui ler ainda...e os já lidos” de 17.10.2010
“Madame Bovary e Anna Karenina – duas personagens” de 28.03.2010
Fotos:
1. Rua Xavier de Toledo à noite, foto de Fernando Martins (Google)
2. Entrada do Cine Vitória (SCSul), hoje desativado. À direita é possível divisar a entrada do também extinto “bar vitória”. Foto obtida em www.panoramio.com (Google)
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