03/09/2019

DESFECHO DE UMA VIDA SIMPLES



Os tempos de infância, lembrava-se saudosos. Afinal, chegara aos 80 anos e surpreendia a todos por sua incrível lucidez e disposição.

Quando lhe perguntavam qual o secredo, não respondia muito naqueles padrões normalmente atribuídos a outros idosos: "muito vinho e alegria", "comi tudo que tinha direito..."

Sua resposta era:

- Não fumei jamais, bebi pouco e ando bastante, dando preferência em visitar áreas verdes. De há muito minha dieta de carne é quase nula. Se isso for realmente uma receita de longevidade, não sei. Mas, eis-me aqui.

- Como assim:

- Bem, o cigarro encurta a vida, o vinho faz, ainda, parte dos meus dias solenes, o verde cuidado tem algo de divindade e quanto à carne tenho muito dó dos animais. Nem quero pensar no terror dos matadouros.

Nas suas meditações sobre a longa existência, retornava à juventude e mesmo à infância, sem qualquer rigor cronológico. Algumas cenas lhe martelavam a mente e o coração.

Nesses momentos, entrava num processo nostálgico, saudoso, até um pouco confuso. Sua infância relativamente feliz, o retrato mental de sua mãe que falecera quando ele tinha apenas 9 anos eram imagens preciosas. Pareciam um sonho. Será que não eram mesmo? Momentos de felicidade, geralmente fugazes,  não ficam na mente como um sonho?

Coisa estranha envelhecer :

- Sermos sempre nós mesmos e, no entanto, não sabermos explicar, ou entender esse evento irreversível da velhice e mesmo da morte.

Meus ídolos estão indo embora antes de mim.

Completados 80 anos – a mesma idade de seu pai -, tomara uma decisão: de trem, meio em segredo para não despertar os cuidados dos filhos e netos - era viúvo - voltaria à cidade natal e, no casebre onde tivera uma inesquecível experiência em sua infância, faria uma reflexão. Seria como que uma despedida daqueles velhos tempos de ternura que ainda o emocionavam tantos anos depois.

Sim, seria bom fazer uma oração no casebre, velho casebre se ainda preservado, sombreado por três gigantescas árvores.

Lembrava-se bem. Num dia de chuva pesada, refugiara-se no casebre invocando emocionado a imagem de sua mãe. Num dado momento, porém, em vez de estar encostado na rústica parede da pequena habitação, ouvindo a chuva descendo pelo telhado mal conservado, viu-se recostado no colo de sua mãe, recebendo dela, carinho, beijos na têmpora e frases de que onde se encontrava, não estava morta e, de lá, zelava por ele.

Não se assustou com a presença de sua mãe. Somente as crianças, naqueles tempos em que crianças eram crianças, podiam compreender momentos como esse. E não chorou mais, porque sua mãe, serena, sem as marcas da insidiosa doença que a consumira, assim pedira.

Com tudo isso em mente, tentaria retornar àquele local de árvores agora centenárias e seus passarinhos soltos, pipilando alto a liberdade sem a entender. Certamente a última visita àquelas paragens onde fora feliz ao lado dos seus pais e irmãos.

No dia seguinte, bem cedo, com sua velha Bíblia na mão, livro que começara a conhecer, conforme planejara, tomou o trem, rumando para sua cidade. Deixara um breve bilhete para sua filha. Viagem longa, cansativa, facilmente suportada, porém, pela sua disposição conseguida por caminhadas regulares.

Chegou no fim da manhã. Apressadamente, para aproveitar o sol, tomou o ônibus que o levaria àqueles sítios de sua infância.

Depois, pensaria no pernoite, provavelmente na casa de um sobrinho, se houvesse tempo para localizá-lo. Caso contrário, o hotelzinho da cidade seria a solução.

Mais meia uma hora e pouco de viagem, eis que chegou ao ponto de desembarque. Desceu ansioso do veículo, notando que havia, ainda, muitas paisagens de sua época. O riacho que agora abastecia a cidade, embora mais poluído, a igrejinha da comunidade num ponto mais alto, branca e todos aqueles sítios.

Caminhou a pé até a propriedade que fora um dia de sua família. Quando venceu a pequena subida, algum sentimento de perda antecipadamente lhe apertava o coração. A decepção fora terrível. Não encontrou mais suas árvores centenárias, mal reconhecendo o local do casebre. Uma estrada de ligação de sua cidade, com a rodovia principal passaria por ali: 
“a natureza dera lugar ao progresso”, pensou, inspirando-se numa placa que lera nalgum lugar algum dia.

Com profunda mágoa, aproximou-se do local onde certa vez fora consolado por sua mãe sem dar atenção às máquinas ruidosas que se movimentavam arrancando árvores ainda, emocionado, ajoelhou-se no chão de terra batida.


Olhou em sua volta, viu a violência, via as máquinas embaçadas pela fumaça ou por seus olhos úmidos como um pesadelo. Como não previra ou compreendera que o progresso poderia chegar um dia àquelas plagas?

Sob os olhares atônitos dos operários simples que ali estavam, naquele chão batido, sem grama ou eras, sem a sombra das árvores, fez sua reflexão.

Abriu ao acaso sua Bíblia - como aprendera em aulas de filosofia; a professora assim fazia e num tipo de jogo incentivava os alunos a encontrarem sentidos mais profundos aos versículos assim abertos - e em Isaías 60:18, leu em silêncio a mensagem que não entendera bem mas que a relendo, a entendera plenamente:

"Nunca mais haverá violência na tua terra; de desolação ou destruição nos teus termos; mas aos teus muros chamarás salvação; e às tuas portas louvor".

- Eu sei qual será minha terra, meu Deus. E as portas que louvarei.





                       

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