[Esta crônica tem pontos políticos, que situo entre realidade e
ficção: a crise dos mísseis há 50 anos, autores influentes, contracultura e,
sobretudo, saudades. A música "São Francisco", cantada por Scott Mackenzie. A crônica faz parte de um texto maior engavetado por causa da preguiça.]
Voltava com
frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo na rua Silva Bueno, numa
pizzaria famosa. Era muito frequentada.
Ela marcara
um pouco a minha vida porque a frequentara desde a adolescência, naquelas
noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma
grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer
cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas
discussões se prolongavam até a madrugada, transferidas na volta para os baixos
do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor
qualquer, os mais radicais ingerindo um destilado, conhaque de preferência, bebido ali mesmo no bar anexo.
Vivia-se num
certo clima de ingenuidade. Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis
esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus
problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se
propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram
a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade, de Deus. Eram
os Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo
isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual
e, com ela a promiscuidade, o V de “paz e amor”... contracultura, anti-guerra do Vietnã, hippies, anti-status quo.
Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60 para mim e para quem deles usufruíram,
que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma
imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com
incrível nitidez.
De tudo
aconteceu naquela década
Ao lado dessas experiências maravilhosas numa
época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos
tecnológicos nos rumos do espaço, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando
um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os
Estados Unidos...
Tinha em
mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O
presidente soviético, Nikita Khruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas,
com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima. Eram imagens!
A séria crise dos mísseis em 1962, no embate
havido entre Kennedy e Khruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas
potências, para aqueles meus idos de adolescência, fora a coragem de Kennedy
que vencera os soviéticos.
O que se deu
nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na
imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse
materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de
aula, um velho professor de francês, o D., com seus gestos delicados que
provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa
numa noite começara a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou
ele:
Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union
Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les
revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west,
mais où tout le monde meurt. Vous avez
déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit? (*)
Silêncio.
- Alguém
entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns
levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre
os Estados Unidos e a União Soviética.
O professor riu muito o que raramente fazia.
Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do
perigo, o conflito prestes a eclodir e, na sua cristandade, assegurou que tudo
se resolveria com a intervenção divina.
Kennedy fizera concessões aos soviéticos (não
invadir Cuba e desinstalar mísseis na Turquia).
Fora sua prudência que evitaria qualquer
retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática.
A ameaça nuclear foi afastada.
Aliás,
segundo Kennedy, “a humanidade deve acabar com a guerra ou a guerra acabará com
a humanidade”. Hiroshima e Nagasaki (Japão, agosto de 1948) que o digam!
Mas, até hoje continua uma ameça. Este símbolo trazia mensagem de paz e contra a guerra e o uso de armas nucleares.
Quando do atentado em Dallas, acompanhara com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. Emocionei-me às lágrimas.
Quando do atentado em Dallas, acompanhara com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. Emocionei-me às lágrimas.
A guerra fria
depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça
comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se
alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no governo, mas não ainda no poder.
Tinha, quando
ainda acadêmico, um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu
fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o I.:
- Esse
comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói
do nada. Um desastre. Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de
ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis,
propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe nessa insanidade os
argumentos dos ditadores para implantarem a ditadura.
Mas, os
eventos políticos nos idos de 64, com a ameaça comunista se precipitaram,
resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve festa e
alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe. A propriedade estava salva.
Nestes tempos
de agora, de incertezas me vem à mente com uma dose de saudade aquilo tudo que
vivido nos anos 60.
Referências:
(*) Esse
texto em francês foi reconstituído por quem tem domínio do idioma. Com minhas
reticências no caso de alguma impropriedade.
Por aqui, contemporâneo (1968), Geraldo Vandré com sua música
“Caminhando (“Para não dizer que não falei das flores”) cuja letra era de
contestação aos tempos cinzentos do regime militar. Tudo fazia parte do todo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário