Da cachaça ruim aos néctares
“Não
raro, quando lhe caia nas mãos um caso difícil, alguma doença que não sabia
diagnosticar ou curar, seu amor-próprio recebia golpes terríveis que o deixavam
por algumas horas, às vezes durante dias inteiros, mal-humorado e já quase
decidido a abandonar a profissão.” (1)
Este trecho
foi extraído de obra de Erico Veríssimo como forma de abrir esta crônica porque
o personagem ali situado era médico (Rodrigo Cambará) e se referia àqueles
casos em que a solução escapava totalmente de seu controle ou de seu conhecimento.
Mas, ele se recuperava quando outro caso se lhe apresentava e obtinha êxito no
diagnóstico e tratamento.
Pode haver
um risinho de desfeita no que direi, mas num dado instante de ambas as
profissões, a advocacia e a medicina, elas se tocam, ora no diagnóstico, ora no
desgosto do resultado, ora na angústia do que foi feito porque não há como
voltar ao ontem, especialmente quando tudo fora feito para sequer se pensar no
mal resultado embora possível.
Quanto a
mim, com mais de quatro décadas de profissão, ou mais ainda, ingressando nela
ainda não diplomado, há desses dias amargos, dias em que costumo dizer para
meus próximos:
- Estão
vendo aquele canto ali do meu escritório? Pois é ali que bato a cabeça para
curar os meus desgostos e, depois disso, aguardo o dia seguinte para tentar
consertar tudo o que não deu certo hoje. Pensar no que fazer, um recurso ou o
que mais houver.
Não trato
com a própria vida numa mesa de cirurgia, mas com quanto de emoções, de
esperanças pelo justo, com lágrimas pelo injusto primitivo que prevaleceu e,
nesses casos, quão difícil explicar tecnicamente as causas: um tribunal que
muda a maneira de julgar uma mesma tese, um juiz “técnico” e não jurista que
julga mal, uma tese honesta que não foi acolhida até nas últimas instâncias.
Pergunta
difícil:
- Por que
ele ganhou e eu não? Não era a mesma causa?
Mas, não são
somente amarguras que para mim são menos. Há aqueles tempos em que tudo dá certo, temas complicados
que são acolhidos, às vezes no último minuto do último recurso.
Quantas
vezes me deparei com esses êxitos? E, ao final, no fio último de esperança, na
vitória que se materializa a tal ponto que nem me animara a comemorar: o
desgaste todo até esse êxito fora imenso. Às vezes penso em mãos de divindades
intercedendo.
Como naqueles casos em que se desenha desastre iminente que algum
empurrão que não se sabe de quem o desvia do ponto do grave atrito.
E, assim, me
resigno a erguer um olhar para o alto.
É por isso
que os êxitos médicos e da advocacia podem dar um mesmo sentido incomum de
perda e ganho, de derrota e vitória.
Como não sou
médico, o que posso dizer é que, por causa dessas variáveis da profissão do
advogado quando exercida no seu rigor ético-profissional, ela se torna
empolgante, até mesmo pelas possibilidades que concede em mudanças sociais na
participação política e de construção jurisprudencial.
Mas, eu sei
também que, no êxito, quanto ouve o advogado que “não fizera mais do que sua obrigação”, afinal
fora “bem pago para isso”- embora haja, sim, reconhecimentos - mas se na derrota ela tivera como causa a “atuação
falha do advogado.”
A culpa
nunca será atribuída às reais vacilações de juízes e tribunais, mudanças de entendimento e quanto pode demorar um julgamento. A culpa tende sempre a ser atribuída ao advogado.
Apesar disso,
como disse linhas acima a profissão tem sua empolgação máxime quando a demanda fora
complexa e vitoriosa.
Por causa
dessas alternativas, não consigo dela me separar.
Uma espécie
de cachaça ruim da qual estou irremediavelmente viciado, mas há, também, aqueles
momentos em que a alquimia jurídica a transforma em néctares. E eu os aproveito
no silêncio da reflexão.
Em 27.06.2010, neste
Temas, publiquei este relato e, sendo relato, verdadeiro:
“Minha
idade de vida? 92 anos”
Desço tranquilo do 5°
andar do Fórum João Mendes, em São Paulo. As coisas tinham caminhando bem nos
meus (poucos) processos por lá e por isso havia baixado meu estágio “normal” de
tensão quando da subida.
Alojo-me bem na
frente da porta do elevador e ouço um velhote, mas bem idoso mesmo, debatendo
com outro idoso algumas questões jurídicas.
Volto-me e me
surpreendo com ele, magrinho, baixo, cabelo ralos dividido no meio. No térreo
não resisti:
- O senhor é advogado
militante? Posso perguntar sua idade?
O velhote me olhou de
alto a baixo, segurou firme a gravata verde, vacilou um pouco, e respondeu:
- Sou advogado e
minha idade são 92 anos.
- Mas o senhor ainda
exerce a profissão?
Diante da resposta
afirmativa, aquele que parecia ser seu cliente, também idoso, arrematou:
- E ele viaja para
outras cidades para audiências e o que mais necessário.
Revelei minha
admiração pela sua disposição para o trabalho e me envergonhei um pouco pela
minha preguiça, mesmo depois de estar me aproximando das quatro décadas
advogando ou indiretamente me valendo da advocacia para outros tipos de
trabalho.
A advocacia é uma
espécie de cachaça embora de má qualidade que vicia.
Sai para a rua de São
Bento nos rumos de um velho bar para um lanche reforçado. Na frente da estação
do Metrô, a uns dois passos do Largo de São Bento.
- Bom demais tudo isto!
(2)
Referencias:
(1) Erico
Veríssimo, “O Retrato 2” (“O Tempo e o vento”);
(2) “Eu amo tudo isto?” (2° Cena) de 27.10.2010
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