30/05/2010

COMO OUSAS? TUDO O QUE FICOU...

Explicação

Estaria hoje “publicando” crônica sobre a final da Copa de 1958, tudo o que houve em volta dela naqueles meus dias. Resolvi adiar.
Mas, há dias nestes dias difíceis de viver em que as coisas enroscam na indiferença e naquela pergunta perigosa:
- Para que tudo isto? Jogue tudo para cima, ora!
Refletindo um pouco, resolvi republicar a crônica completa, me referindo sobre dois espelhos. Faço, porque de um jeito ou outro há um sentido de profundidade naqueles amores impossíveis porque assim decidiram os “futuros ex-amantes” diante das circunstâncias refletidas em seu tempo.
A crônica “Como Ousas” já foi publicada em alguns blogs. Ela completa, incluindo a parte “Tudo que ficou” somente no blog “Prosa e Verso de Boteco”, que pode ser acessado por aqui. Esse blog contém poesias e crônicas inspiradas, merecendo visitas permanentemente.


Como ousas?!

Mas, como chegara aos 70 anos?

Pois, não foi ontem de manhã que assistiu o surgimento da bossa nova, mais tarde a Jovem Guarda com o ainda hoje "rei" Roberto Carlos, já meio monótono.

E os namoros, os bailes, essas coisas?
Tudo passou de repente, embora ainda sentisse o perfume da noite, da alegria dos tempos, alguns acordes ainda chegavam aos seus ouvidos, sabe lá de onde. Do éter? Ora!

- Como é bonita a Deyse, diziam seus admiradores no colégio, muitos.

O tempo foi passando e ela se casou. O marido seria guindado tempos depois a um elevado cargo executivo numa multinacional. Sua vida foi muito fácil, muitas viagens ao exterior. Sabia que os executivos da empresa a admiravam. Não poucas vezes flagrou alguns meio boquiabertos a examinando. Aquela morena, de cabelos soltos e olhos verdes...

Teve três filhos: um professor, de vida simples, mas o mais culto, um engenheiro executivo de multinacional que enriqueceu e um médico que clinicava na Itália. Tinha orgulho de dizer de seu filho médico na Itália. Tinha facilidade de ir para lá. Sempre que ia, chegava até Assis e visitava o túmulo de São Francisco. Ficava ali, naquela meia luz, absorvendo as boas vibrações e se emocionando com as pessoas piedosas que ali oravam. Como ela. Saia dali sempre renovada.

Já pelos seus 40 anos resolveu trabalhar num núcleo de saúde infantil como voluntária, ajudando um médico, pouco mais jovem parecia, com sua barba espessa, bem contornada no rosto. Bonito? Era, reconhecia Deyse.

Teve muita convivência com ele, pelo menos duas vezes por semana. Por meses. Um dia, enquanto separava ela remédios entregues, o médico entrou, postou-se ao seu lado e, baixando a cabeça encabulado, disse quase sussurrando:

- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!

Paixão é difícil de não confidenciar. Atônita, conseguiu responder:

- Eu também, doutor.

O médico se aproximou e trocaram um leve beijo, próximo dos lábios. Deyse caiu em si, seu rosto explodiu vermelho, saiu apressada e disse, já no jardim:

- Como ousas? Como ousas?

Nunca mais voltou ao núcleo assistencial. Pior para as crianças de tão dedicada que era.

Hoje, viúva, mirando-se no espelho, pouco ligando para as poucas rugas, estava conservada, lembrando-se de sua vida serena, realizada. Num dado momento, acariciou seu próprio rosto, bem ali onde o médico lhe beijara. Sentira o perfume de sua loção, de novo. Enrubesceu e emocionada, disse alto:

- Como ousas?


Fugiu do espelho que a encarava com rigor...



Tudo o que ficou...

Mira-se no espelho e vê a realidade nua de seu rosto, já enrugado, cabelos grisalhos, ajeitados.
Há muito tirara a barba trabalhada que lhe dava um ar elegante e, sabia, chamava a atenção das mulheres à sua volta.
Ali, na imagem do espelho, havia um médico envelhecido que não enriqueceu. Afinal, trabalhara para os mais pobres, e por muitos anos num núcleo de assistência infantil.
Clínico geral, não saía de sua cabeça uma frase de uma humilde paciente. O tratamento que dispensara, culminando com uma cirurgia complicada, tivera êxito. Ela agradecia a todos os santos, especialmente São Francisco, de quem era devota exaltada.
Semanas depois da alta, ela voltou ao seu consultório e ao sair disse uma frase que talvez tivesse ouvido alhures:
- Doutor, o senhor é de uma raça em extinção.
E o espelho apenas confirmava isso, do ponto de vista físico...
Tinha hoje 72 anos. Viúvo havia quatro anos. Sua esposa morrera em seus braços de infarto fulminante. Nada pôde ser feito.
Essa experiência fora dolorosa, porque salvara tanta gente em momentos semelhantes e não obtivera êxito com sua própria esposa. Essa contradição mexera com sua cabeça, meditara sobre sua espiritualidade, mas as respostas não vinham. Com a profundidade que desejava.
Seus dois filhos avançaram na vida. Um era médico como ele, cirurgião exímio. O outro advogado também bem sucedido.
Este último tivera sérios problemas havia alguns anos o que o fez abandonar a advocacia criminal depois que um bandido o procurou para defendê-lo. Ao ter à sua frente aquela celebridade com ficha criminal medida a metros, decidiu rejeitar o trabalho. O bandido o ameaçara violentamente, obrigando-o a se afastar do trabalho e se esconder por algum tempo.

O que restara de sua vida aos 72 anos? Como não poderia deixar de ser, também para ele que sempre vivera no limiar da vida e da morte, o tempo também passara.


Recordara de sua infância, de sua juventude sacrificada fazendo trabalhos avulsos e ministrando aulas para ajudar nas despesas da faculdade. Lembrava-se de seu pai, que trabalhava como operário cerca de 12 horas por dia para ajudá-lo e sua mãe que tanto o incentivara, vendendo em sua casa, roupas feitas. E de sua esposa que o encorajara ao trabalho dedicado aos mais carentes com pouco retorno econômico.
Um drama que efetivamente vivera, parecendo enredo de romance de escritor pouco inspirado.
Mas, não havia somente essas lembranças atribuladas.
Sem qualquer peso na consciência nunca esquecera a curta paixão que vivenciara havia anos após a sua formatura, trabalhando num centro de assistência infantil.
Ali, uma senhora dos seus 40 anos, lindíssima, morena de olhos verdes, prestava trabalho voluntário. Com ela convivera, por meses, duas vezes por semana.
Um dia, não se conteve e confessou:
- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!
Para sua surpresa, ela respondeu:
- Eu também, doutor.
Aproximou-se então e deu-lhe um leve beijo, próximo dos lábios.
A mulher enrubesceu e se retirou apressada.
Nunca mais a viu e nem poderia procurá-la por saber de sua conduta e de sua vida social
Aquela lembrança, na frente do espelho fora de emoção. Um alento aos seus sacrifícios. Revivera o perfume do rosto daquela mulher que lhe inspirara tanto e que se foi.
Como o tempo...

23/05/2010

INVASÃO ALIENÍGENA: UM PERIGO PARA A HUMANIDADE?

Nunca fui muito ligado ao “fenômeno” dos discos voadores, embora não despreze o assunto.
Basta olhar para esse universo infinito e meditar um pouco. Seremos, mesmo, os únicos inteligentes – embora meio irresponsáveis como somos – nessa imensidão toda?
Confesso que, nos meus tempos de ABC, muitas vezes íamos, eu e minha esposa Ana Rosa, numa espécie de beco – rua sem saída - que era interrompida pela via Anchieta lá embaixo. A penumbra era total. A noite revelava com mais nitidez aquele céu estrelado sem fim. Ficávamos por ali algum tempo apreciando aquilo tudo – hoje seria impossível porque os tempos são de perigo - e, quem sabe, ver algum objeto não identificado vagando no espaço. Nada.
Os que dizem ter tido contato de terceiro grau descrevem as criaturas alienígenas sempre com a mesma complexão: cabeça desproporcional e oval, olhos grandes e meio puxados, baixa estatura. Será que todas essas descrições coincidem por espécie de autossugestão?

Meu conceito, a despeito do trauma que poderá causar a visita aberta de “alliens”, é de que seriam seres evoluídos porque, ao chegarem num nível de tecnologia espacial a ponto de viajarem pelo espaço infinito não podem ser destrutivos, dominadores.
Eis que ninguém menos que o cientista Stephen Hawking sobre a eventual visita dos alienígenas afirmou o seguinte:

“Se os estraterrestres nos visitarem, os resultados seriam como quando Colombo chegou à América, o não acabou nada bem para os nativos”. E argumenta mais o cientista: “...em vez de tentar achar vida no cosmos e se comunicar com esses seres extraterrestres, seria melhor que os humanos fizessem tudo o que pudessem para evitar esse contato”. (1)
É que há várias sondas da NASA que buscam planetas fora do sistema solar que poderiam conter vida inteligente. A mesma NASA enviou em 2008 a música “Across the Universe”, dos Beatles para “viajar” pelo universo tentando que seja captada e respondida por alguma inteligência nesses confins do universo.
Essa música tem estas estrofes entre outras:

“Imagens de luzes quebradas que dançam na minha frente como milhões de olhos
Eles me chamam para ir pelo universo
Pensamentos se movem como um vento incansável dentro de uma caixa de correio
Eles tropeçam cegamente enquanto fazem seu caminho pelo universo”
(...)
Sons de risos, sombras de amor estão tocando meus ouvidos abertos
Incitando e me convidando.
Ilimitado amor eterno, que brilha em minha volta como milhões de sóis,
E me chamam para ir pelo universo.”


O ponto de vista de Hawking me leva inevitavelmente para a abra de ficção do inglês Herbert G. Wells, “A Guerra do Mundos”, lançado em 1898.
A origem dessa obra memorável nascera de um comentário do irmão do autor mais ou menos assim:
“Imagine se descessem alguns marcianos e nos tratassem como nós (Inglaterra) tratamos nossas colônias”.

Na obra de Wells realmente os marcianos são dominadores e cruéis. Dois filmes se inspiraram no livro, mantendo o mesmo título: de 1953, o melhor e mais recentemente (2005) o de Steven Spielberg, neste os alienígenas são, além de assassinos, espécie de vampiros.

Todas sabem o final, não há surpresa: os invasores foram abatidos por bactérias (“as menores criaturas de Deus”) que consumiram suas resistências havendo, então, um sentido de gratidão religiosa. A humanidade fora salva.

Num conto de minha autoria mal recebido tratei da possibilidade da abdução do personagem, dando-se o trauma à alma de modo até amargo com a revelação de que pouco valem as conquistas materiais que obtemos e usufruímos. Algo utópico, uma renúncia que poucos se atrevem a encarar. Deixo uma interrogação sobre o que realmente se passou com o personagem embora fosse afetado psicologicamente.
Aquele trauma que acima imagino que se daria se aparecessem formalmente os ETs por aqui para o mundo inteiro ver. (2 e 3)

Bem, para estabelecer espécie de contraposição à seriedade do tema, deixo algumas linhas de uma música carnavalesca que não consigo esquecer, da década de 50, creio – não encontrei nada dela na internet, nem autor nem a época precisa – que proclama também, num sentido otimista mas jocoso a visita dos marcianos, mais ou menos assim:

Desceu um disco voador
Na praia do Arpoador,
O marciano foi pescar uma serei na areia
Essa turma e muito forte,
A turma lá de marte é de morte
Passou pra trás a marciana
Por um broto de Copacabana
Bebeu cachaça com vermute
Pois a pinga lá de Marte é um chute...”


Não me interpretem mal, hem!

Referências no texto:

(1) “O Estado de São Paulo” de 10.05.2010, transcrevendo artigo de Alok Jha do “The Guardian”. As afirmações de Stephen Hawking foram feitas em documentário para o Discovery Channel. Hawking é doutor em Cosmologia, autor do livro “Uma breve história do tempo”.

Sofre de doença degenerativa se comunicando por um computador acoplado à sua cadeira de rodas, no qual “um software permite que ele escolha palavras de uma lista e as reproduza através de um sintetizador de voz.” (V. meu artigo “Dos sem religião” de 25.04.2010)

(2) O livro de H. G. Wells foi utilizado por Orson Welles na radio CBS - Columbia Broadcasting, programa “Radioteatro Mercury” numa transmissão para Dia das Bruxas, 30 de outubro de 1938. Essa memorável dramatização da invasão marciana levou pânico a milhares americanos com intensa repercussão, produzindo manchetes pelo mundo afora. Todos sabem que Orson Wells depois se tornaria diretor e ator famoso de cinema.

(3) “O Solitário - Delírios e Altruísmos”, neste blog, publicação de 02.03.2009)


Foto (1): Cena do filme de 1953 "Guerra dos Mundos". (Fonte: Google Imagens)
Foto (2): Stephen Hawking (Fontes diversas via Google Imagens)

16/05/2010

SOLIDÃO

O sujeito era culto, lia muito e falava pelo menos quatro idiomas fluentemente. Fora executivo de multinacional.

Sua vida fora sempre muito confusa. Quando mais jovem frequentara a noite e as denominadas "bocas" de São Paulo.
Nesse ambiente conheceu aquela que seria mais tarde sua esposa de papel passado, uma mulher que embora frequentasse aqueles pontos, preservava a sua dignidade com discrição. Sua vida privada era pouco conhecida.
Mas, a forma como e local onde começou o relacionamento acabaria por provocar sérios atritos mais tarde entre o casal até porque mantinha ela amizades antigas e estranhas que permaneceram no tempo e atrapalhavam o relacionamento incomum de ambos.
No limite do insuportável, o casal se separou de modo traumático. Por fim um acordo judicial proveitoso. Superadas todas essas batalhas, diria ele aliviado:
- Depois de tudo isso que passei, vou voltar a "curtir" a noite de São Paulo.
Muito tempo depois eu o encontro num restaurante italiano, sozinho, magro como sempre fora, a espera da comida, tendo a frente uma garrafa pequena de vinho. Deixara de fumar, ele que era inveterado. Depois dos cumprimentos, cada um dizendo o que fazia, pergunto:
- Como vai a noite de São Paulo?
- Não há mais essa de noite em São Paulo. Fico a maior parte do tempo em casa lendo. As mulheres da noite são incapazes de soletrar sequer o abecedário, seu próprio nome, respondeu ele contrariado.
Na verdade, dera-se conta de que os tempos mudaram e que ele mudara.
Havia algo mais, uma ponta de decepção. Não encontrara Maria Benedita, uma mulata vistosa, dentada, que soube estar presa injustamente como traficante, num pequeno presídio feminino numa cidade que sequer gravara o nome, a uns 200 quilômetros dali, com quem tivera (ou pensara ter) algo além do simples prazer sensual naqueles tempos.
Soubera por acaso, ao cortar caminho por aqueles fundos da avenida São João e pelo bairro Santa Cecília. Dera de cara com uma antiga conhecida que morava por ali, escondida num apartamento sombrio:
- Ela vivia bem com um sujeito decente que era traficante. Ela nunca desconfiou. Um dia a polícia bateu na sua porta e encontrou um pacote de droga escondido sobre a caixa d’ água do banheiro. Foi injustamente acusada de cúmplice...
Voltou para os livros e para a solidão.
- As mulheres de seu tempo, mesmo frequentando os inferninhos eram diferentes? Eram?
Não respondeu.
- Solidão com livros é solidão? insisti como forma de apoio. - E afinal, você conseguiu ler inteiro o Ulisses de James Joyce? emendei, as mil páginas do livro que da última vez que falei com ele, há tempos, reclamava que a obra era chata mas que a leria até o fim de qualquer jeito.
Olhou-me fixamente, um sorriso amarelo como resposta.
Começara a se dar conta que aqueles tempos haviam morrido - e ele próprio.
Fui para outra mesa.
Ele saiu em silêncio sem um sinal de despedida.
Nunca mais o vi.

Figura: Artista João Werner
Foto da avenida São João - cdcc.usp.br (Google imagens)

09/05/2010

VEGETARIANO ENRUSTIDO: AS RECEITAS

Você torce pelo touro todo ferido com aqueles espadins, odiando o toureiro com aquela roupinha ridícula? Ai, o touro acerta o toureiro e você grita como se fosse um gol do seu time num momento de decisão? Espera ai. E a violência que você rejeita filosoficamente?
- Bem a violência gera a violência, especialmente quando há atos brutais de covardia, como se dá com o touro acuado - esses toureiros efeminados só merecem chifradas mesmo.
Mau sinal.
Ai você considera um negócio até desonesto os rodeios, pela brutalização dos animais e um bando de idiotas aqueles montadores? Que podem se arrebentar no chão com os saltos do touro sofrendo pelas amarras na sua genitália? E você pensa alto:
- Tomara que se arrebentem, sabe.
Sinal de “perigo”. Você é um forte candidato ao vegetarianismo. Mas, saiba, você pode pensar ou tentar sem chegar a tanto. Porque o caminho é árduo. Mais fácil deixar de fumar mesmo que você nunca tenha fumado.

Começa assim:
Rejeita um bife de vez em quando, pensando no sofrimento da vaca, fala para o garçom passar reto com os espetos, se enche de salada, no queijinho assado e guarnições e disfarça.
Pergunta que ainda não vai calar:
- Você não está comendo carne? Esta picanha sangrenta está uma delícia.
Você mente:
- Sabe, hoje não estou me sentindo bem. Meu médico me recomendou não comer nada gorduroso.
Com o tempo você abole a carne vermelha e seguramente terá que explicar porque você assim decidiu e deverá estar preparado para responder os motivos:
Religioso? Filosófico? Regime especial? O quê, o quê, hem?
Você já começa a ser o diferente nos almoços de trabalho e sociais.
Nem uns hambúrgueres no McDonalds? Ah, tentação, com aquelas fritas sequinhas e um copo imenso de guaraná. Difícil, hem.
No churrasco com os amigos você fará “churrasco” de pão e molhinho. Conseguirá (mesmo) rejeitar a linguicinha e o coraçãozinho de frango no espeto?
Epa, mas o coraçãozinho é de frango, carne branca. Acho que vou avançar...
- Será que não vai mais comer nem frango, nem nada, você se questiona?
E responde:
- Sei não, acho que não vou, até porque a “produção” é também de imensa crueldade.
E a partir daí não tem jeito. Você se assume, quase vegetariano, não radical, porque não rejeita um peixe (já pensou o “filhote” assado, tentação!), uns nacos de bacalhau, uns frutos do mar, uns camarões...
Até que um dia no mercado você encara os olhos de peixe morto te assediando. Ah, não o peixe não!
E devagar você começa a se questionar. Afinal, o peixe não é de carne? Mas tão saborosa, tão cheia de vitaminas!
E vagarosamente começa a rejeitar o peixe:
- Será possível? Com vou explicar isso em casa? E nas minhas viagens, vou comer o quê?
A resposta vem espontânea:
- Avance nas saladas, no grão-de-bico, na soja temperada. Massa, meu amigo, mas cuidado com a barriga! As pizzas estão por aí, em qualquer canto tentando de dia e de noite.

Pronto, agora você é consumidor de brócolis, couves, abobrinhas refogadas e a milanesa, pimentões, quiabos e jilós, quibes e estrogonofe de composto (carne) de soja...e por aí vai! E frutas em profusão.

Que mudança, hem?
Ai, nos coquetéis você se obriga a perguntar ao garçom qual o recheio da empadinha com jeito apetitoso:
- É de palmito?
- Palmito e frango, responde exultante o garçom ávido por presenciar a gula coletiva.
Você rejeita a empadinha porque botou na cabeça que frango desfiado cheira pena molhada. Você pode degustar uns canapés de conteúdo não identificado. Feche os olhos e arrisque. Ou fique só no guaraná e na coca-cola...
Renúncias são renúncias.
E se prepare. Você faz uma visita a um velho amigo e em sua homenagem ele prepara língua ao molho pardo. Você faz tudo para não jogar o estômago no prato e dá uma desculpa a mais esfarrapada possível e só fica no arroz branco e no tomate da salada.
A esposa do seu amigo, constrangida, sugere fritar uns ovos, uma omelete.
Não, no ovo você ainda não chegou e não quer nem pensar! Você aceita, toma uns goles de vinho e tudo acaba bem. Todos alegres, contando causos e piadas. Exageros e gafes com os efeitos do vinho avançando.
Ainda bem, ainda bem. Eta dificuldade!
Com o tempo esses percalços deixarão de ocorrer. Não estranhe se você deixar de ser convidado para aqueles grandes encontros e reuniões regados a churrasco e linguicinhas. E chope, é claro.
Todos os seus amigos, seus familiares, descobrem que você é um chato.
Mas um chato feliz que torce pelo touro, sempre, sem crises de consciência.
Talvez você até entre em estudos filosóficos sobre o enigma da existência dos animais, o amor e o respeito que merecem. Aí você atingiu o clímax.





Fotos:
(i)Secretaria do Abastecimento de São Paulo (via Google imagens)
(ii)foradomanual.blogspot.com (via Google imagens)

02/05/2010

PESSIMISTA, MAS ESPERANÇOSO

Não há jeito. Qualquer autor, numa regra bem cerrada, escreve por experiência vivida, por conhecer episódios que o inspiram a escrever, mas sempre relatando passagens do passado. Ainda que escrita no presente, isto é, o relato se dando “hoje”. O cronista mais ainda. Ele também se vale de imagens do cotidiano ou de sua própria vida. No mais, se “viajar” para o futuro, entra no campo do prognóstico ou de ficção.


O ano de 1965 foi para mim, “de ouro”, de realizações que ficarão comigo para sempre. Lá eclodiam as músicas orquestradas por Ray Coniff, da jovem guarda com Roberto Carlos e a bossa nova com músicas lindíssimas todas ainda por aí. A adolescência estendida ou a maturidade postergada um pouco, as oportunidades que obtive ou que criei no meio estudantil de São Caetano do Sul ou na imprensa local deram-me naquele ano, quando deixava o colegial, um sentido de realização, de superação convivendo com amigos dedicados e verdadeiros. Nesse âmbito, sentira que “conquistara” a cidade.
Já naqueles idos deixara apenas um pouco de lado aqueles meus princípios e estudos esotéricos que tanto me haviam influenciado anos antes.
O rosacrucianismo, muito em voga então, foi para mim, pelos exercícios mentais que propunha, espécie de autoajuda. Todo esse conjunto e, depois o aprofundamento desses estudos, deram-me uma visão que hoje não poderei mais esquecer. Não poderei apagar de minha mente. Essas experiência ficaram comigo e me influenciam.
Lembro-me - e relato novamente se já o fiz -, quando no clássico, de um professor de filosofia, sujeito humilde, de pequena complexão, competente e culto, muito tolerante comigo porque suportava as minhas intervenções expondo esses princípios, em contraposição às suas valiosas lições em classe. Entoava, então, um samba sem ritmo e absolutamente desconexo que resultava, porém, em excelentes notas, eu que era péssimo aluno.
Foi desse tempo, não sei bem em que momento, embora reconheça alguma influência de minha falecida irmã, em que comecei a rejeitar com muita lentidão a carne vermelha e depois todas as outras. Essa renúncia é dificílima. Voltarei a esse assunto.
Em que momento comecei a me apegar aos animais? Talvez desde minha infância mas não me dera conta disso, então.

Alerto que durante minha vida profissional depois daqueles anos, fui obrigado a esquecer idealismos. Ora, idealismo sim, mas para servir a empresa, para garantia do seu lucro. Quantos vezes me vi naquelas quatro paredes, abatido, sentindo que as obrigações impostas pela empresa significavam não só para mim mas para muitos, verdadeiro “cemitério de talentos”.

Hoje, me situo nesse mundo louco. Deparo-me sim com jovens muito inteligentes e realizadores, mas não sou otimista.
O raciocínio “objetivo” predomina. Explico: esse raciocínio converte uma árvore centenária num valor econômico; uma mata sem qualquer valor desde que vire pasto, a extração da madeira a preço da devastação irresponsável, a predominância da proposição econômica em tudo. A violência política cuja marca indelével é o 11 de setembro – o ataque às torres gêmeas de Nova York. E hoje, precisamente hoje, a imensa mancha de óleo que cresce de modo assustador no golfo do México após a explosão e afundamento da plataforma de extração de petróleo sem que esses indivíduos que a controlavam tivessem sequer pensado numa alternativa em caso de desastre grave ou não. Lucro era e é palavra. Estamos condenados a assistir de novo aquelas cenas dolorosas de aves e animais marinhos em agonia, encharcados daquele óleo negro e bruto, inapelável.
O raciocínio “subjetivo” dá à mata seu valor como fonte de vida, não aceita sua destruição para converter sua área sagrada em pasto, que se emociona com um riacho ainda preservado e limpo longe da ação humana nefasta, não se envergonha em fazer poesia sobre suas belezas, sobre seus pássaros e borboletas, que não faz da vida uma proposição econômica como fim, mas como meio de sobrevivência digna. Que olha nos olhos dos animais e se pergunta como aquela vida se movimenta, como ela se dá, como é dirigida, quem a dirige? E a respeita.

A violência se propaga. Há uma disputa ferrenha pela conquista da tecnologia nuclear para fins não pacíficos. Afinal a violência humana cotidiana ceifa vidas por uma carteira sem dinheiro e quaisquer outros motivos fúteis. Ou uma bomba que ceifa dezenas de uma só vez. Há focos crescentes de desrespeito às crianças por toda sorte de violências. Há notória vinculação entre esses atos criminosos todos, espécie de encorajamento e inspiração maléfica.
Afinal, para onde vamos?
Há previsões apocalípticas do calendário maia que prevê o final dos tempos nos últimos dias de 2012, que coincidem com as profecias de Nostradamus. Não sei e nem me animo a ir além dessa citação. Se assim não for, estarei ingressando nos prognósticos ou na ficção, válidos, mas não aqui e agora.
Mas, merecemos um começar de novo. E como merecemos.
Sou pessimista, sim, mas esperançoso. Assumo a contradição entre os dois conceitos.

Por tudo isso, mesmo com os dois pés em 2010, sem reservas, me olho no espelho de 1965
Comparo e me emociono. Não por saudosismos imaturos, mas por comparar as realidades, hoje tão duras, amargas.


Foto: 1964 - minha participação num concurso de oratória no colégio.