12/06/2021

EU E MEU INGLÊS RUIM NOS ESTADOS UNIDOS

Memória (*)


Todo profissional que trabalha em empresas do ramo automotivo (mas não só) – americanas – “corre o risco” de passar uns dias nos Estados Unidos. Isso aconteceu comigo em 1989. Fiquei por lá por uns 35 dias.

Espero não ser maçante com este relato uma mera experiência profissional e gastronômica.

Em 1988 o Brasil tivera inflação de quase 1000%. Em 1989 a moeda passou a se chamar “cruzado novo” dando-se em janeiro o corte de três zeros. Mas, nada adiantou. As utilidades tinham preço em milhões de cruzados. Em 1989 a inflação chegaria a quase 2000%.

Chega-se nos Estados Unidos com uma situação dessas no Brasil. Visita à multinacional do ramo automotivo, em Peória (Illinois).

Embora tivesse comigo um colega que falava bem o inglês, coube a mim, com meu inglês ruim explicar pros americanos a loucura da inflação brasileira.

- Bem, nós resolvemos a inflação com a “monetary corretion” e é possível controlá-la com a equiparação ao dólar.

Reage o americano perplexo:

- Mas, vocês cortaram três zeros do dinheiro! Para quê a inflação se tem a correção monetária?

Responder o quê?

Essa explicação fora dada várias vezes porque a perplexidade era justificável.

Um dia qualquer, porém, numa visita a uma fábrica na cidade de Aurora, um dos funcionários que nos acompanhava fez deboche dos 90% (?) de inflação mensal.

Perdi a paciência e com inglês ruim e tudo parti para o sermão. Mais ou menos isto:

- Você conhece o Brasil? Você não quer saber do poderio de São Paulo? Você sabe que a VW emprega milhares de trabalhadores numa fábrica imensa? Você certamente sabe dos lucros que “nossa” empresa obtém no Brasil, com inflação e tudo, não sabe? Na verdade bem ou mal conseguimos conviver com a inflação e o país não vai parar por causa disso.

Depois dessa intervenção “estranhamente” ninguém mais tocou no tema “inflation”. (**)

O último compromisso da viagem fora uma visita na fábrica da Chrysler em Detroit. Eu havia trabalhado na filial no ABC um motivo para a facilitação da visita.

Escolhemos conhecer a linha de montagem.

Quero dizer, antes, que em 1983 escrevera um artigo numa revista jurídico-trabalhista, sobre “relações trabalhistas” explanando também sobre a automação a partir de um robô que num acidente provocara a morte de um trabalhador japonês. No debate que suscitou, então, a previsão era de que os robôs tomariam as funções dos trabalhadores, obrigando todos a renunciar de um modo ou outro. E disse eu, então, naqueles escritos como decorrência da modernidade anunciada e da “renúncia”: “atingiremos, então, a civilização e filosofaremos”. 

Bobagem deslumbrada: quase 40 anos depois milhares de trabalhos não existem mais e nada de filosofia, muitos os conflitos que eclodem. E o que pensar da modernidade eletrônica que a cada dia nos surpreende? Tudo digital? [Em 2009 nos EUA fui “apresentado” ao GPS!]

Pois bem, a linha de montagem da Chrysler me impressionou muito: entravam as latarias (“esqueletos”) no começo da linha e na outra extremidade os carros saiam praticamente prontos, com intensa atividade dos robôs com pouca intervenção dos profissionais na linha. Não digo que automação já não começara aqui, mas não com essa eficiência.

Pensei nas consequências aos trabalhadores não especializada que nos meus tempos de Chrysler eram caçados intensamente no mercado. A VW naqueles tempos empregava 35 mil empregados. A informação atual no Google é que agora só emprega 15 mil trabalhadores.

Hoje, o que fazem aqueles trabalhadores com baixa especialização ou nenhuma que chamávamos “práticos”?

Pensado nisso tudo, um certo encanto com o próprio país, então o desfecho comemorando o êxito da viagem, o aproveitamento e a melhora do meu inglês que hoje se perdeu...

Na volta ao hotel, que transpirava luxo por todos os lados subíramos ao restaurante situado no terraço giratório, envidraçado, sofisticado, que permitia ver a cidade por todos os ângulos enquanto se movia lentamente.

Com amigos de última hora fizemos nossos pedidos e enquanto aguardávamos a comida, num copo imenso, foram servidos camarões temperados, brinde da casa.

Já meio cismado com “frutos do mar” porque havia anos assumira não comer carne de qualquer espécie (o peixe de vez em quando, apenas), mas eram eles ainda uma forma de compor algum cardápio em situações especiais, como se dava ali, comecei a comer camarões.

Num dado momento pergunto, apontando para alguns exemplares no copo:

O que são estas linhas pretas aqui, em cima dos camarões?

Um dos que ocupavam a mesa, me respondeu com ironia:

São os intestininhos do bicho. Eles são os temperinhos...

Dizem sempre que os camarões são espécie de urubus minúsculos dos mares que se alimentavam de tudo o que apodrece.

Nada de delicadezas e afetações, mas meu estômago revirou, um assombroso sopro em forma de arroto exalou silencioso. A minha repulsão tornara-se impossível disfarçar.

Mal jantei, um macarrão temperado razoavelmente ou algo assim, apimentado. Seria a salvação, depois de comer por longo tempo pizzas adocicadas, fritas, catfish frito… sem generalizações, há bons restaurantes lá.

Por isso acho que o arroz e feijão constituem uma mistura alquímica.

Tive outras experiências ruins mais tarde com o camarão, alergias e “revoltas” digestivas.

E assim, hoje, todo camarão à minha frente me faz ver aquelas linhas pretas às quais degustei em Detroit com um vinho branco da melhor qualidade.

Não será preciso dizer que os “frutos do mar” foram também abolidos do meu cardápio. Para sempre.

"Culpa" dos americanos.

De todas essas experiências só posso me referir a uma frase comum: “tudo tem seu tempo”, mas as memórias ficam.


(*) Parte desta crônica já foi divulgada em outras publicações neste blog

(**) O "Plano Real" eclodiria com sucesso em 1994




Detroit vista de Windsor, no Canadá.


O GINASIANO