22/01/2023

UM TIPO NOTÁVEL (II)

TOCANDO A VIDA PRA FRENTE...

Numa das últimas vezes em que frequentara a pizzaria do S… – fenômeno -, no Ipiranga com a família, notei que no balcão de bebidas ou coisa assim, um sujeito de aparência cansada, cabelos grisalhos, barba alta também grisalha, me olhava meio de lado, de modo discreto.

Minutos depois, dirigi-me em sua direção, para pedir alguma coisa, não sei se água, se refrigerante. O sujeito me encarou por alguns segundos, olhar ansioso e perguntou:

- Você não é o advogado, que trabalhou na … (empresa)?

Eu naqueles tempos não era advogado, ainda. Era um "sofredor" na PUCSP.  Meio surpreso porque não o reconhecera, encarei-o, tentando me lembrar de onde teria havido algum contato com ele, que se apresentou:

- Eu sou F., que trabalhava na área de projetos. Lembro-me bem de você, pelas palestras que você ministrava no curso de formação de supervisores...

Esse ex-colega tivera atuação profissional destacada na multinacional a partir de suas sugestões, amealhando prêmios pelas alternativas e ideias que formulara em inúmeras oportunidades, reduzindo custos de operações e melhorando o próprio produto final. Trabalhara por mais de 30 anos para a empresa e para nenhuma outra.

Fidelíssimo.

Sua saída fora suave, conforme relatou.

Recebera homenagens por tudo o que fizera.

Relatou-me que o primeiro mês do desemprego, para quem se envolvera tanto com a empresa, parecera um período de férias meio longo.

Mas, os dias foram passando e, num certo momento, deu-se conta de que as férias seriam permanentes.

Alguns meses depois, angustiado, entrara num estágio de depressão braba, tendo que ter assistência médica por meses. Chegara a se esconder num quarto escuro por horas, rejeitava ver ou falar com alguém, quem fosse.

Relatara ele tal experiência, com muita emoção, ainda, concluindo:

- Tudo isso porque para mim a ... (empresa) fora uma extensão de minha vida e porque muitas das minhas ideias foram aplicadas diretamente nos produtos. Pela perda disso tudo sofri muito, nada tendo a reclamar dela. Para superar esse vazio, associei-me à pizzaria e estou “levando a vida pra frente”, conforme explicou.

Nessa empresa, eu me deparara com situação semelhante a essa.

Fora demitido havia um tempo, um executivo que chegara a diretor na empresa.

Falecera.

Fui designado para levar ou buscar alguns documentos falar com algum familiar se a empresa poderia ajudar nalguma coisa mais.

Falei com a viúva sobre isso. E ela me respondeu:

- Nada mais a fazer. Ele faleceu porque deixou a empresa...

                                                  ●●●

Deparei-me muito com situações dessas, ex-empregados que desempenharam funções gerenciais que se vincularam tanto à empresa que não tinham outro assunto para conversa que não os “bons tempos” nela. Reúnem-se para relaxar mas o relaxamento se concentra nesses tempos do emprego, do feito e do não feito. Do ruim e do bom. A empresa passa a fazer parte da vida, porque lá estavam os desafios, os elogios, as promoções, as férias…




Quanto a mim, depois das multinacionais automobilísticas “da vida” para as quais trabalhei, não adquiri esse “hábito” da "veneração" porque sempre houve a angústia e porque algo me provocava na minha interioridade me informava que poderia haver algo melhor. Mas, seria injusto se não reconhecesse tempos especiais numa delas (Chrysler - Santo André). (*)

Da última saí, sim, de modo meio melancólico, senti os efeitos da demissão – a mesma “dor”, a amargura de tantos com quem convivi e tiveram essa experiência depois de muitos anos de trabalho dedicado à empresa – mas não demorei muito em levar a vida pra frente.


Referência

Acessar: Chrysler - Greve de 1978


Foto de Milton Pimentel Martins: Noite enluarada a transição entre a noite e o dia lembrando que sempre há um alvorecer. 


UM TIPO NOTÁVEL (I)

 O RANCOR E A GRATIDÃO


Acho que já disse que estendi ao máximo minha “vida  estudantil”, o quanto deu até que um dia – eu já trabalhava nesse tempo – tive que buscar uma atividades mais segura na vida profissional. Afinal de contas, a despeito do interesse dos meus pais, quem haveria que bancar o curso superior seria eu mesmo.

Não demoraria muito, fui trabalhar na principal multinacional da cidade (automobilística).

Um choque tremendo porque eu não havia perdido os encantos de poucos anos antes da vida estudantil, da pequena imprensa... (*)

O supervisor tinha lá seus “grilos" a resolver, porque mal resolvidos - esses caras que um dia pensaram em ser padres -, tinha atitudes intempestivas, era ríspido.

Deixou a marca da ferradura.

Ah, sim, tenho até hoje uma marca dela no peito já cicatrizada.

Não posso dizer que tudo foram desenganos, rancores e vontade de fugir dali.

Foi nesse clima, porém, que por decisão dele, viajei de avião pela primeira vez, foi lá que conheci Brasília em “missão” profissional, foi lá que aprendi a dirigir para valer, foi lá que me desinibi ministrando palestras para supervisores em formação. Foi ela que comecei a entender a Justiça do Trabalho sendo o preposto da empresa ainda acadêmico. Houve também momentos de empolgação, o interesse que adquirira pelo sindicalismo, que me levaram a estudos e acompanhamento muito de perto do movimento sindical e grevista do final da década de 70 e até meados de 80 no ABC...

Mas, havia o outro lado da moeda: foi lá que ia encher o tanque do carro do chefe com alguma regularidade, ia obter assinaturas de documentos lá pelos fundos da fábrica em busca dos superintendentes que deveriam assiná-los.

Ora, direis, lições de humildade...

Não somente eu tinha essas “lições de humildade”. Colegas mais categorizados eram designados para tarefas incompatíveis com sua formação e função.

Mais não digo porque não é necessário dizer.

Algo que me marcou muito: com a perua Veraneio da empresa rumei muitas vezes pela periferia mais periférica de São Paulo (chegava nesses locais afastados por rumo com base no Guia de São Paulo que não mais existe) tentando achar empregados de linhas de produção desaparecidos. Muitos “desaparecidos” flagrei em pequenos botecos em bairros remotos jogando bilhar com garrafas de cervejas já consumidas.

Não somente isso: algumas vezes me obriguei a compulsar o livro dos horrores no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo aquelas fotos “no estado em que foram encontradas as vítimas”, para tentar identificar um empregado desaparecido que não deixara vestígios. O ar por ali era ruim, o odor da morte “in natura”.

Eu me convertera num operário de relações trabalhistas “faz tudo” (“labor relation does it all”). Com o tempo e por conta do salário, dos laços familiares, filhos nascidos, fui me adaptando e, de certo modo, me anulando, aquele sentido de perda por tudo que julgava havia feito, aqueles valores pessoais coisas que julgava importante ter realizado.

Às vezes, nas minhas angústias acusava a empresa de ser um cemitério de talentos.

Quando deixei a empresa, não fui muito educado com o supervisor quando me despedi. Disse-lhe coisas que pensava ter que dizer, tal a minha amargura, então. Posso dizer que depois me arrependi ao extravasar meu rancor por causa da ferradura indelével que mantinha moralmente no peito.

Muitos anos depois, já trabalhando em outra multinacional, vez por outra eu o encontrava em reuniões no sindicato patronal. Era, então, ele, gerente da mesma empresa e competente negociador empresarial.

Um dia, numa reunião burocrática dessas, ele começou a falar de uma doença que o vitimava e se pôs a chorar copiosamente. O coordenador da reunião cuidou de acalmá-lo.

Eu não tripudiei seu choro sincero. Não. Ele demonstrava para quem quisesse ouvir sua fraqueza humana. E eu lá estava ouvindo.

Tudo tem seu tempo e mesmo o tempo de vida.









Eu tenho quase apagada a marca da ferradura moral mas “do alto, aqui no meu canto”, olhando as flores lá fora, confesso sem vacilar que tenho o dever da gratidão. Com ele aprendi muito até a não ser como…


Referência

(*) Acessar: Memória - Anos 60 - SCSul