25/04/2010

AMARGURAS, A BUSCA DO REENCONTRO

Na obra prima de Dostoievski, “Crime e Castigo”, há cenas impressionantes. Histórias curtas dentro do enredo principal.
Uma delas é o patético relato do personagem Marmieládov, um alcoólatra inveterado que anula a família, deixa-a na miséria absoluta por conta do vício. Ao chegar à sua pobre moradia, sua penitência eram as surras que a mulher desesperada lhe impunha:
“– Isso me consola! Não creia que isso seja para mim um sofrimento, mas sim um prazer, senhor! – exclamou ele, enquanto Ekatierina Ivánovena lhe sacudia com força a cabeça, chegando mesmo a bater com ela no assoalho”.



O relato que faço é de ouvir contar, mas posso assumir que tem algum fundo de verdade - baseado em fatos “reais”.
Conheço o local em São Caetano: a adega, que não sei se ainda existe, ficava numa avenida que ia do centro até o rio Tamanduateí, cruzando a linha de ferro. A igreja é conhecida como a matriz “velha” da cidade e fica no bairro da Fundação.

A velha senhora todo o domingo, vindo do armazém passava na frente da adega. Num dia desses de sol, olhando para dentro daquele local cheio de sombras, sempre obscurecido e sórdido, foi assaltada, segundo ela, por visões aterradoras.
Conforme relatou à filha:
- Eu vi umas sombras horríveis lá dentro daquela adega, monstruosas, rindo debochadas dos bêbados, se misturando com eles, encostadas nas suas narinas como se tirasse o oxigênio delas dali.
- Mamãe, a senhora não viu nada, a senhora tomou muito sol na cabeça. Está muito calor. Venha que lhe dou um copo de água geladinha e depois deite-se um pouco no sofá!
- Não adianta você duvidar. Eu vi, eu vi e jamais vou esquecer.


No relato de um sonho aterrador que assalta o personagem Raskólnikov,no “Crime e Castigo” no qual há a descrição pavorosa de bêbados massacrando até a morte uma frágil eguazinha, o grande autor russo descreve as imediações da taberna:
“Havia sempre ali uma turba que berrava, ria, se enfurecia e brigava, ou que cantava com voz rouca coisas de apavorar! Nos arredores da taberna sempre andavam bêbados de rostos horríveis!... (...) A passagem que conduz à taberna está sempre coberta de uma poeira negra”.


Mal sabia aquela velha senhora que, cerca de uma hora depois de ter visto aquelas sobras horríveis em volta dos embriagados, deu-se um fenômeno inexplicado.
Um desses alcoólatras de fim-de-semana e às vezes de meio de semana, completamente tonto por tudo o que bebera, ergueu o copo como se fosse um troféu, voltou-se para o sol lá fora e ergueu a cabeça para o último gole, a última gota.
Olhou para o fundo do copo, a luz do sol penetrou por ele, como um caleidoscópio. Como se levasse um violento soco no estômago, curvou-se, cambaleou para trás e caiu sentado violentamente, como se toda a gravidade lhe puxasse para baixo. O copo espatifou-se no chão. Encostou-se sentado no balcão, naquele chão imundo, sem que os demais companheiros de copo lhe dessem qualquer atenção ou ajuda. Porque aquele tipo de coisa não era incomum. Alguns até caiam pelas sarjetas.
Passaram-se os minutos, até que o dono da adega, já preocupado, deu a volta no balcão, varreu num canto os cacos do copo e ergueu o ébrio sem qualquer consideração:
- Vai embora, é hora de ir embora.
Com a ajuda, levantou, cambaleando, curvado com dores terríveis no estômago.
Aos trancos e barrancos chegou em casa. O portão estava aberto como se fosse esperado. A porta destrancada. Olhou para a mulher com os olhos vermelhos porque chorara, para os filhos envergonhados, o almoço já frio no fogão, desviou-se de todos e foi para o quarto.
Sentou-se na cama, cobriu o rosto com as duas mãos, chorou copiosamente e ali ficou por horas.
Envergonhado, nada comeu e no dia seguinte, servindo-se do café ralo com pão seco o possível naquela situação, sem erguer os olhos, a ressaca horrorosa afetando sua mente, dores horríveis no estômago foi para o trabalho que lhe restava. Ainda.

O que viu naquele caleidoscópio do fundo do copo? Nunca revelou. Nunca se soube.


Depois daquele domingo, muitas vezes foi visto, quando aberta, sentado num canto da velha matriz, com as duas mãos cobrindo o rosto e ali permanecia alguns minutos, creio que num processo de reencontro consigo mesmo, nem tanto de fé.




Aqueles momentos de solidão, ademais, eram cruciais, a fronteira entre o antes ou depois do almoço, quando o aperitivo apetece e, não resistindo à tentação, poderia fazê-lo voltar à adega, mesmo com a dor de estômago e tudo que despontava sempre que pensava nisso.

Não saberei informar o desfecho deste relato. Perdi o contato com quem poderia me informar. A única coisa que posso dizer é que torço muito para que tenha ele se reencontrado e nesse caso obtido verdadeira redenção. Torço.

Foto: Matriz "velha" de São Caetano (Google Imagens)

18/04/2010

SILÊNCIOS

Esclarecimentos


Tenho postado aqui crônicas que falam de animais, vegetarianismo, de sensações incomuns, de sensibilidades, de experiências pessoais gratificantes ou não e até de ternuras.
Gostaria de alertar que esse é o meu perfil ideal, aquela veia que tenta encobrir ou superar o meu perfil real: tenho fama de “pavio curto” (agora nem tanto), tenso e impaciente. Por força de minha profissão que exerço há décadas há casos em que me obrigo a ser implacável e “imperdoável”.
Não sou criminalista, mas acompanhei casos à distância. Alguns episódios são crônicas reais que revelam faces do submundo.
Eis que de repente publico uma delas. Espero que não afugente os que me acompanham.
Essa crônica abaixo, já foi postada, não faz muito no blog “Prosa e Verso de Boteco” (http://prosaeversodeboteco.zip.net/). Eu a republico, agora, aqui, como uma forma de reforçar aquele "perfil ideal” que, quem sabe, vá ajudando a superar o meu perfil “real”. Sabem, essas questões de “ternura”, “apreço” e quejandos?



PÁSSAROS COMILÕES

Manhã de domingo, horário novo, verdadeiro, volto mais cansado do que o normal de minhas andanças dominicais de uma hora e tanto. No parque da rua do Porto em Piracicaba.
É que, no Carnaval, principalmente na terça-feira, fui subjugado por uma gripe violenta. Há sequelas, ainda. Minha filha me diz ao fone que é coisa de velho. Reajo – velho não, jamais; antigo, sim! Ao fundo ouço aqueles ruidinhos enternecedores próprios de bebezinhos. Eram as gêmeas, agarradas, reclamando sua atenção.
Acomodo-me na minha poltrona favorita, ou única no meu pequeno escritório aqui de casa.
Antes, bem cedo, como que anunciado o fim do horário de verão, maritacas barulhentas empoleiradas no coqueiro ao lado do quarto, emitiam aquele som muito próprio delas, agudo, alto.
Baixa o silêncio total nas redondezas.
Da janela fixo-me nos movimentos dos passarinhos que avançam sobre cuias de mamão e bananas sobre o muro, que diariamente lhes são garantidas. Deliciam-se, afoitos, disputam, derrubam as frutas e quando me percebem espiando esvoaçam...fogem, mas voltam dali a pouco. Não que eu tenha feito qualquer movimento para espantá-los. Erguem a cabecinha, reviram-na a quase 180º e aqueles olhinhos tentam divisar algum inimigo, alguma ameaça. São as graças divinas. Por perto só eu que os amo, mas eles não acreditam nisso. Desconfiam, porque têm razões para desconfiar.

Uma tarde flagrei um papagaio também avançando sobre os restos de frutas que sobraram. Nunca vi ave tão colorida e brilhante. Infelizmente não voltou mais.


São nesses momentos que me volto para o que fui, para o que sou e o que deixei de ser, embora quisesse e, afinal, o que me resta?
Com todas as atribulações, meditando sobre os encantos e desencantos da profissão que exerço não por diletantismo, na fuga de um passarinho azulzinho, a resposta sutil me veio de não sei de onde:
- Te resta ser feliz, ô meu!

(“Ser feliz”, sem pessimismos e sob risco de cair no lugar comum, está muito difícil neste mundo de hoje, com tantas desgraças, tantas tragédias, tantas catástrofes e tantas ameaças diárias; essa relatividade já tentei demonstrar numa velha crônica, aqui postada há pouco, “Conceito de felicidade” em 17.01.2010)


Foto: “Papagaios empoleirados num fio elétrico”, de Eduardo Pimentel Martins extraída de filmagem em Extrema – Sul de Minas.

11/04/2010

TERNURA, essa palavra feminina...(?)

Explicação

Nesta crônica revelarei espécie de balanço de minha convivência profissional e pessoal. Por óbvias razões excluo os laços familiares até porque já escrevi sobre esses laços.
A palavra ternura, sempre a usei com muito cuidado. Me perdoem, mas me parece que ela tem mais um uso feminino. Não me sinto à vontade, por exemplo, em dizer que meu amigo tal é terno. Agora a mulher tem toda a autoridade para dizer que fulano exala ternura e que sua amiga tal é terna (a palavra é feminina!).
Nesse passo, em vez de ternura, usarei apreço que no Aurélio significa “consideração e estima dispensadas a alguém”. Desapreço, então, será a desconsideração e não estima dispensada a alguém.
Tudo que direi a seguir não tem qualquer sentido de vaidade ao enaltecer alguns acontecimentos que me marcaram. A minha (des) importância é conhecida dos meus amigos e circunstantes. É que, se eu não falar desses acontecimentos, se perde a crônica.
Fui agraciado por inumeráveis e até pequenos gestos carinhosos que me surpreenderam e ficarão comigo para sempre. Até devo já ter relatado alguns por aí ou por aqui.(pequenas ternuras?).
Mas há outros que extrapolam e me levam a fazer, em torno deles, um relato mais aprofundado.


Apreços, desapreços e...ternuras

Trabalhei por décadas na indústria na automobilística.
Já me referi a viagens profissionais que fiz ao exterior, que não foram tantas, mas significativas.
Não pensem que tudo nessa minha vida profissional foi fácil? Não, tudo foi conquistado com suor e lágrimas. Diria mesmo que se para sobreviver há que ser eficiente 50% e político outros 50%, saibam que fui eficiente num nível em torno de 90%. Por isso sobrevivi. Nunca soube fazer política dentro da empresa, não consigo bajular e não consigo me comunicar bem com aqueles que considero imbecis, soberbos.
Assim, se sobrevivi tantos anos nessa indústria se deu pelo meu desempenho.
Um dia saí da empresa Chrysler. Minha fábrica (Santo André) estava em processo de extinção.
Fui, sim, homenageado porque entre outros dera condições, no seu clube na Estrada do Mar, de fazer ali a festa de Natal. Se querem saber, o sindicalista Lula, já muito badalado mesmo pelos executivos empresariais, lá esteve.
Depois virei, num campeonato interno de futebol de salão, nome de taça.

A VW comprou as instalações da Chrysler. Anos depois, fui convidado, como homenageado, entre outros, por ocasião das comemorações do 40° aniversário do VW Clube (maio de 1998) pelo que eu havia feito no antigo Clube-Chrysler que fora por aquele herdado.
Claro que dois amigos leais puseram meu nome para ser lembrado. Apreços.

Ainda na minha atividade profissional dentro da empresa, pela primeira vez senti a sola da demissão, numa poderosa multinacional da região de Piracicaba.
Certo dia surgira novo presidente um americano bastante arrogante. Um sujeito alto, loiro, cabelos mais para o grisalho, rosto magro e avermelhado, nariz empinado, um perfeito capataz, tolo mesmo. Falava um português razoável.
Viera para proceder à reestruturação da empresa. Iria “cortar na carne”, anunciava a “rádio peão”.
Criou-se um clima de expectativa e terror.
Na reunião decisiva da reestruturação, a demissão sobrou para mim. Em meu lugar, assumiria um bajulador que vinha de área estranha àquela que viria a ocupar, exatamente porque era bajulador.
Pelo que soube mais tarde, todos aqueles gerentes a quem dera apoio, sempre, haviam também votado pela minha demissão.
Passado aquele momento amargo, inédito, porque nunca tivera tal experiência, refleti muito sobre o acontecido. No meu íntimo, me perguntava se, rigorosamente, não desejara em muitos momentos deixar a empresa que perdera aquele brilho de antes.
A verdade é que essa experiência virara um pesadelo. Muitos se sucederam. Via-me chegando à empresa pela manhã, rumava para minha sala, não a encontrava ou havia alguém estranho sem rosto no meu lugar. Caminhava, então, pela fábrica como um fantasma, via sem ser visto, renovando a angustia da demissão ao acordar.
Sabia agora, após administrar centenas de demissões nas várias multinacionais em que trabalhei os efeitos danosos que produziam nos demitidos:
- Recebera minha paga, pensava. Sentira o amargor do fel.
A despeito da demissão, fiquei mais uns meses treinando alguém para um determinado tipo de tarefas.
Todos os colegas cordiais de antes – difícil “amigos” nos muros da empresa -, subordinados se afastaram solenemente como se qualquer aproximação significasse o contagio de doença incurável. Esses desavisados se esqueceram que estavam numa fila esperando a vez. E ela foi chegando...
O desapreço se materializou, então, do modo mais amargo. Romperam-se os laços e o dever de gratidão.
Apenas três colegas mantiveram a mesma harmonia de antes. Sabia por eles que nem tudo estava perdido.


Voltava de São Paulo um pouco deprimido. O tráfego estivera intenso, congestionamentos nas Marginais, tudo fazendo subir os níveis de poluição e de cansaço.
Minha depressão, além dessas razões, devia-se mais pelo que assistira numa agência do INSS. Entre todos aqueles humildes que buscavam com resignação seus direitos no imenso salão, sentada num canto, chamou-me a atenção, uma senhora envelhecida, um pouco obesa, com o rosto sulcado por incontáveis riscos miúdos de rugas.
Suas mãos esbranquiçadas, como se seus dedos estivessem gastos e, no pulso, feridas mal curadas, notando-se que o tratamento seria precário.
Por acaso ouvi sua história: trabalhava havia mais de 30 anos, sempre em serviços modestos de doméstica e, nos últimos tempos, sem poder fazer muito esforço, achara que se daria bem como lavadeira de roupas.
À medida que o tempo foi passando, suas mãos começaram a ser afetadas pelo sabão, pelos detergentes, pelo cloro, resultando em dores, naquelas feridas nos pulsos, de tal ordem que não poderia mais trabalhar.
Bem atendida pela funcionária da instituição, foi-lhe explicado que pelo pouco tempo que contribuíra para a previdência, provavelmente nunca se aposentasse, porque havia uma "tabela de progressão" de contribuições que a levaria a contribuir ainda por muitos anos.
Em princípio, nada poderia ser feito para ela, salvo um afastamento por doença ou invalidez. Meio confusa, nada entendendo, encarou-me com aquele rosto enrugado, olhos cansados e apenas disse, quase em desespero:
- Ai meu Deus...
Saiu lentamente do local, em passos curtos, como se carregasse nas costas um pesado fardo.
Para essa mulher, não havia respostas que pudessem consolá-la. E de nada adiantaria a imensa ternura que sentira por ela, pela sua humildade, pelo seu rosto cansado, pelas suas rugas. A humildade transmite uma réstia de beleza, apesar de tudo. A vida do brasileiro que mora precariamente, nos morros, nas favelas, lutadores e esquecidos. Aqui senti mais que apreço, ternura e decepção diante da minha impotência em ajudá-la. Quem sabe a invalidez a tenha aposentado. Quem sabe.


Já relatei esta passagem (v. “Raízes Sancaetanenses - I de 21.06.2009) para mim muito mais do que manifestação de apreço.
Não conseguirei esquecer por ser eu quem era, um garotão meio inseguro perante o prefeito Anacleto Campanella de São Caetano do Sul e sua forte influência em todo o ABC.
Dei-me conta de Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do denominado viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da então “Santos a Jundiaí”, vindo do Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.
Anos depois, no segundo mandato, por programação de jornal semanal capenga me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou bem recebido pelo seu “eterno” secretário e aguardo na ante-sala.
Minutos depois, sou conduzido ao gabinete. Ele me encara com aquele seu jeito irreverente, olhando para os papeis, responde algumas perguntas, levanta-se impaciente daquela mesa arredondada de trabalho sai apressado do gabinete e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero Diário do Grande ABC e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para aquele jornal por algum tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança, modalidades do meu perfil.
Em 1969, como deputado federal, logo depois do AI-5 do regime militar fora ele cassado na "lista" de 12.01.1969. Encontrei-me com ele logo depois. Não demonstrara mas é certo que sentira o golpe.
Mais tarde, doente, vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo que fora um ponto político importante em São Caetano.
Sempre falei com ele porque havia aquele gesto de anos antes que até hoje me surpreende, porque desinteressado e de alto apreço.
Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Chamo, afinal, esse gesto de apreço ou de ternura?

O que incomoda é que tudo passou de repente, numa velocidade...da vida.


Ternuras desprendidas, incondicionais

Tenho falado muito de animais nestas crônicas. Espero não cansar os que me acompanham. Essas crônicas, creio, estejam insertas em “edições” passadas neste “Temas” ou por aí.
Resumo:
. Da vaca e do bezerro que servi água num dia de sol escaldante: o olhar manso e doce da vaca agradecida;
. Do quati domesticado: sua festa subindo pelos meus ombros e fazendo cafuné na minha cabeça com suas patas agudas;
. Das abelhas nervosas que rodeavam meu rosto sem nunca me atacar;
. Do leitãozinho esfaqueado mortalmente que me encarou decepcionado pelo que eu “deixara fazer”;
. Da corujinha perneta que diariamente, talvez agradecida por ter sido salva, que pousara no coqueiro do meu quintal por muito tempo;
. Dos gambazinhos frágeis que aparecem por aqui;
. Dos gatos vadios que também apareceram: um deles me olhava com aquele ar maroto após meus gritos pelas suas mordidas no meu pé. Sumiu como chegou; o mais inteligente quando deitado na grama parecia um trapo, foi atropelado. Uma perda;
. Do escorpião que não conseguiu me picar (Sorte? E se foi o que muda?)
. Dos múltiplos passarinhos comedores de bananas e pedaços de mamão, no muro, ao lado do meu escritório que me fiscalizam desconfiados de alguma traição – que nunca virá - voltarei com eles;

. Da minha cachorrinha preta, com 17 anos que me chama sem parar, latindo, da tarde às 8h00 da noite enquanto não for visitá-la e trocar sua água. Ela come até gomos de mexerica que colho do pé. Alguns minutos com ela, afagos, carinhos e ela sossega.

É isso ai


Fotos:
(i) Anacleto Campanella (from tribunadoabc.com.br - Google imagem)
(ii) Imagens parciais de minha despedida da Chrysler em 11/1981 e o "meu" time no mesmo dia.
(iii) Eu e a cachorrinha Preta, de novo, no seu habitat (foto: Milton P. Martins).

04/04/2010

PIRÂMIDES DE TEOTIHUACAN...e os arrepios da brisa (?)

Há anos, como uma forma de treinamento – especialmente no que se referia às estratégias de negociações sindicais - e adquirir no mais alguma visão internacional fui escalado para conhecer alguns países latino-americanos, incluindo o México.
Quando aportei no México, na capital, claro, já batia, então, forte, a saudade dos meus e do próprio Brasil. Já me cansara, efetivamente, de "hablar o portunhol". Já estava quase chegando ao “espanhol puro”.

O México não seria a última parada. Haveria, ainda, a Venezuela, então um país com forte moeda, pelo seu petróleo, que irrompia "aqui ou ali" na versão de um bem humorado venezuelano que lá conheci e ainda uma passada por Manaus.

Naqueles idos, as comunicações não tinham a desenvoltura e as facilidades de hoje

Num entardecer, depois de uma visita atribulada à fábrica de automóveis na cidade
de Toluca, meio deprimido, não tanto pelo "home sick", mas pela recepção impaciente que recebera nessa minha estada profissional, dentro de um carro magnífico, mal me dava conta dos recantos mexicanos.

Rumávamos para meu hotel e eu me perguntava do desequilíbrio daquele dia. “Afinal, pensava, não seria uma rara oportunidade que teriam os mexicanos que me recepcionaram de comparar os países e os modos de vida”? Naquele momento a oportunidade se perdera.

Não me dera vontade de começar qualquer conversa com o motorista, um sujeito afável e amistoso que não merecia minha indiferença. Era eu quem perdia aquela mesma oportunidade.

Diante do meu silêncio deselegante, ligou o rádio. A música que tocava, naquele instante, fora um alento: "Jesus Cristo" de Roberto Carlos. Naquele país distante, apertado pela saudade, nada mais reconfortante que ouvir Roberto Carlos com aquele seu apelo: "Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui..."

Fora como um chamamento, uma sacudida para me lembrar da religiosidade dos mexicanos. Nas fábricas que visitei, em vários locais, mesmo na linha de montagem, havia altares com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. A reverência permanente à santa.
















Visitando a magnífica Catedral Metropolitana da cidade, num dia de solenidade religiosa, mal pude me mexer dentro da igreja de tão lotada.
Num dos últimos dias no México, numa providencial manhã de folga, fui visitar as pirâmides de Teotihuacan, nas proximidades da cidade.
Essas pirâmides situam-se num local que chamaria de imenso largo escampado. São suntuosas e impressionantes construções de pedra, com degraus com cerca de 50 cm de altura.

O dia estava ensolarado e quente, o céu azul. Soprava uma leve brisa.
O conjunto das pirâmides transmitia, com o contraste do céu e do sol, um sentido enigmático. Ao me aproximar de seus domínios, fui acometido de leve mas perceptível arrepio que circulou pelos meus braços.
Escalei a pirâmide do Sol, entrei nalguns de seus compartimentos com a vontade de intuir quais motivações religiosas poderiam ter inspirado tal modelo de obra.

De volta ao Brasil, pouco tempo depois, descrevia a um médico amigo as impressões desse passeio nas pirâmides de Teotihuacan. Estudioso de temas esotéricos ele me perguntou, sem qualquer expectativa, se eu não sentira algo de anormal naqueles sítios.
Relatei-lhe o arrepio, chegando ambos à conclusão de que aquela reação poderia ser resultado de vibrações que permaneciam no éter, ecoando pelos séculos, sendo captadas, eventualmente, pelo profundo magnetismo religioso que marcara o local.
Anos se passaram.
Desde aquela viagem, por muito tempo o México ocupara minha mente e espírito com muito carinho. Porque naqueles dias, e creio que ainda agora, havia interesse efetivo dos mexicanos pelas coisas brasileiras, especialmente pelo futebol e pela música.
Em 1992, por ocasião das comemorações do 5° século do descobrimento da América, as diversificadas pesquisas e indagações que essas comemorações propiciaram, só vieram confirmar minha relativa ignorância sobre os astecas.
Se os espanhóis se comportaram como bárbaros para dominar o grande império asteca, como se comportavam estes em relação aos seus prisioneiros?
Os astecas praticavam sacrifícios, com requintes de crueldade e depois os devoravam. As pirâmides, então, asseguram os historiadores, cheiravam matadouros porque eram exatamente o que eram. Os prisioneiros, com os corações extirpados do peito, eram empurrados lá do alto.
A cidade do México foi construída sobre a destruída Tenochtitlán (capital do império asteca, fundada em 1325). De tão bonita e organizada essa cidade asteca, Cortês, o conquistador espanhol, chegara a escrever: "Não posso dizer outra coisa senão que na Espanha nada existe de comparável".
Houve, pois, naqueles terrenos, do alto das pirâmides e nas suas imediações, muito sofrimento, sacrifício e sangue derramado. As vibrações que ali se expandem podem conter gritos propagando forças revoltas e inconsoláveis do sofrimento e da morte.
O meu quase imperceptível arrepio, mas indelével, quando da minha visita às pirâmides, não terá sido uma tênue ligação com uma manifestação sutil do mistério da morte e do pavor dos sacrificados?
O arrepio é comum no frio, no susto e no medo. Não me parece que seja veículo para transmitir um instante de inspiração, de elevação.
Por essas contradições é que, até hoje, tenho essa como uma experiência valiosa e inesquecível. Não poderia ser indiferente a ela, imaginando que aquela sensação fosse apenas o efeito da brisa que soprava. Enfim, não posso ignorar, num mero dar de ombros essas passagens que, de certa forma, fortalecem o espírito e temperam a vida.

PS: Alguém insiste: “E se fosse mesmo apenas a brisa “encanada”? Pensei e não vacilei na resposta: “O que mudaria?”

Fotos:
Catedral Metropolitana do México: flicker.com (Google imagens)
www.planetware.com/picture/mexico-teotihuacan (Google imagens)