22/11/2009

A SABEDORIA DOS RIOS















“A mata, templo sob azul e a límpida nascente
Permitiam-lhe saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.”


Para a resenha (parcial) do livro "Mistério das catedrais" de Fulcanelli, acessar:


Texto ampliado

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 Esse trabalho de atravessar viajantes como balseiro também com resultado revelador, se conhece no livro “Sidarta”, de Herman Hesse, autor alemão que, na década de 60 influenciou jovens e não tão jovens com suas idéias de desapego a qualquer doutrina. Hesse recebeu o Prêmio Nobel em 1946 e, para muitos, fora um sábio.

Sidarta era um jovem que certo dia resolveu deixar a casa de seu orgulhoso pai, um brâmane, para ele próprio, buscar a sabedoria.

Saindo pelo mundo com seu amigo Govinda, viveu todas as experiências mundanas até que, envelhecido, procurara a companhia de um “simpático” balseiro que certa vez o transportara. Com ele passa Sidarta a conviver e trabalhar.

E Sidarta, incentivado pelo amigo balseiro (Vasudeva) passa a ouvir a voz do rio (“O rio sabe tudo e tudo podemos aprender dele”). E pergunta um dia ao velho amigo:
“O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes, não é meu amigo? Não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?”

E assim, vivendo humildemente, substituindo seu amigo balseiro que encontrara, à beira do rio, a sabedoria e se retirara para a floresta, foi paulatinamente encontrando ele próprio sua interioridade e sua paz.

Mas, faria uma revelação importante para seu amigo Govinda que o reencontrara, sobre a sabedoria: “Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la, podemos vivê-la, podemos consentir ela nos norteie, podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la.”

Tal se dá, certamente, porque a sabedoria é uma experiência pessoal, interior, intransmissível. O mesmo não se dá com o conhecimento.

Assim, ousei colocar lado a lado esses dois personagens tão semelhantes que, verdadeiramente, destacam o vigor místico dos rios, fonte de batismos, com sua cadência harmoniosa, sua voz, seu ir sem volta mais sempre presente até o fim de seu curso, culminando no seu trajeto majestoso em alimentar canais maiores num processo inexorável de transformações.

Por isso, sobre a água, encerro com São Francisco, valendo-me de um trecho do “Cântico do Irmão Sol”:
“Louvado sejas tu Senhor pela irmã água / que é tão útil e tão sábia / preciosa e casta”.



Foto 1: Parque Nacional Canaima - Bolivar - Venezuela. Foto de Alberto Corona (corona.blogia.com)

Foto 2: Imagem de São Cristóvão - azulejo - Igreja Matriz de Rio Tinto - Concelho de Gondomar - Porto / Portugal


15/11/2009

ÉVORA E SEUS ENCANTOS


Tenho Portugal comigo com muito carinho. Não sei se pela língua ou por gestos educados que recebi nas duas vezes que lá estive.
Quando se faz uma viagem ao exterior e se escreve impressões sobre determinada cidade ou país, são como retratos instantâneos. Tudo pode mudar no dia seguinte. Évora me marcou muito e explico nestas linhas

Évora, olhando-se o mapa de Portugal, fica a direita de Lisboa, um pouco mais ao sul. Não dá, de ônibus, duas horas de viagem. O país é pequeno significando que lugar algum é muito longe.









Cidade pitoresca de “terras lusitanas”, cheia de monumentos históricos, bastando citar que ali remanesce, construído no século II, pelos romanos, ruínas dum templo à deusa Diana.

É a cidade cercada por muralhas, estas construídas entre os séculos XI e XII.
A visitação aos inumeráveis monumentos é até fácil pela proximidade entre eles.
Limito-me, porém, a dois: a igreja de São Francisco e a “Capela dos Ossos” (sob outro enfoque, já me vali das informações ali colhidas em outra crônica – “Dos sem religião” de 27.02.2009):
Tenho certa admiração pelo santo que dá nome à igreja. Na sua entrada, numa pequena placa, lê-se a seguinte mensagem escrita por Santa Tereza de Jesus:

“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta.”

Não sei se, motivado por essa “recepção”, o caso é que, chegando à sacristia – não havia ninguém – tive aquela sensação muito comum quando damos um vexame, enrubescendo o rosto. Essa eclosão fora inspiradora, algo parecido com o que sentira quando, havia poucos anos, visitara o túmulo do santo em Assis, na Itália.
Saí da igreja ainda com aquela sensação e, ao lado, entro na “Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes internas, estão incrustados cinco mil crânios humanos e, nos pilares, por ossos dos membros inferiores. Todos esses ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado de diversas igrejas.

E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

Claro que tal capela constitui-se numa evocação anti-vaidade, em linha com o que praticara e pregara até exacerbadamente São Francisco já que, no final, tudo se reduz ao pó para não dizer, ossos. Tal pode ser meio macabro, mas é, sem dúvida, uma sacudida pró humildade. Os ossos lá estão...
Évora, pela sua “idade” tem, também, suas vielas estreitas e desertas.
Numa delas, arriscamos um restaurante simples, descoberto ao acaso, numa quebrada, uma placa indicativa mal escrita. No seu interior, baixa iluminação, muito própria de filmes “noir”, mesas de madeira escurecidas. Serviço aceitável. De entrada um vegetal temperado com puríssimo azeite de oliva. Pareciam grandes feijões verdes. Eram favas. Fui...
Daí, seguindo por aquelas ruelas, chega-se à praça do Giraldo, a principal da cidade, movimentada, turistas usufruindo das mesas no centro dela. Idosos, muitos, relaxavam e falavam nas velhas edificações do outro lado.

Relata o escritor Laurentino Gomes, no seu best seller “1808” que em Évora, as forças de Napoleão praticaram “duríssima repressão”, diante da resistência inútil dos seus moradores aos avanços das tropas comandadas pelo general Loison: “Homens, mulheres, crianças e velhos foram caçados sem dó nem piedade pelas ruas, que ficaram banhadas com o sangue de mais de 2000 mortos numa única tarde.”

Bastara descer uma ladeira qualquer e voltamos à rodoviária. Não me lembro no caminho de ter encontrado qualquer transeunte em toda sua extensão.
Na rodoviária, modesta, os banheiros eram vergonhosos. Bacias turcas imundas afastavam inapelavelmente homens e mulheres de seu uso. Aliás, na Europa, na média, não são os sanitários muito promissores até mesmo nos pontos turísticos bastante visitados.
O que ficou de Évora, porém, foi aquela sensação de paz, algo das vibrações que talvez a história, os seus mortos e o clima evoquem de modo imperceptível, mas que de alguma maneira são captadas pela mente desarmada. Sutilmente.

(Na crônica de 14.06.2009 escrevi sobre Coimbra, a Universidade e D. Diniz)

GIRALDO EM ÉVORA
(Grafia original)

"Foi esta Cidade conquistada aos Mouros...e no ano de 1166 a recuperou um nobre Cavaleiro…chamado Giraldo sem Pavor…e alguns deliquentes, com os quais vivia na serra de Montemuro, exercendo latrocínios, que por serem em forma de guerra, ficavão menos indecorosos.
…e estando perto da Torre da Atalaya se adiantou mais dos seus companheiros… Foy subindo Giraldo pela parede…chegou ao alto , e lançou a Moura abaixo, e entrando na torre degolou o Mouro…e trouxe a sua cabeça com a da filha a seus companheiros, que foi bom prognostico da vitoria, que depois alcançarão.
…um homem a cavallo…armado todo com uma espada nua em uma mão, e na outra duas cabeças de homem, e mulher, aludindo a esta façanha de Giraldo, donde teve principio sua restauração, e liberdade."

P. António Carvalho da Costa
COROGRAFIA PORTUGUEZA
Tomo Segundo 1708

Fotos pessoais:

1. Praça do Giraldo - Évora
2. Capela dos Ossos - Visão interna: as paredes porosas são constituídas de crânios e ossos

03/11/2009

ENCONTROS E DESENCONTROS





















A pequena empresa onde trabalhava passava por sérias dificuldades. Havia a necessidade urgente de um vendedor dinâmico que enfrentasse o mercado reticente para o produto ofertado (venda de anúncios).

Um dia, inesperadamente, esse vendedor apareceu. No começo, como quem pouco quisesse, com postura humilde, propôs-se a desenvolver novos clientes.

Com o passar dos dias, seu trabalho começou a dar resultados e, a cada êxito, sua personalidade ia se modificando na mesma proporção.

Passou a pedir pequenos adiantamentos por conta de comissões. 

Esses adiantamentos foram subindo de valor, chegando o momento em que a situação tornara-se insuportável.

Todos na empresa passaram a "dormir e acordar" com ele. Era envolvente, convincente, com fortes marcas de mau caráter. Era tênue a linha que o separava da gatunagem pura e simples. Talvez fosse contido pela religião que afirmava professar. Ele conseguira ser a preocupação número um de todos. Eram comuns comentários como:

- Ontem "fui dormir" com o M.., sonhei com ele e "acordei" com ele!

Essa opressão psicológica que ele exercia, por um fenômeno qualquer de sua personalidade, tirava algo de todos. Sua presença tornara-se insuportável, ‘vampiresca’.

Alguns meses, quando o clima se tornara de tal ordem negativo, num daqueles estouros inevitáveis, um murro na mesa, de vez em quando necessário, foi posto a correr.

Muitos anos se passaram. Um dia, no centro de São Paulo dei de cara com ele. Tentei evitá-lo, mas ele fez questão em se aproximar. 

Disse apenas:

- Olha, criei juízo...

Balbuciei qualquer coisa, perplexo com a afirmação, logo ele a quem expulsara do ambiente para bem de todos, de mim principalmente. Que tipo de juízo criara? Como poderia ter extraído de si aquela sua marca opressiva? Que reflexão fizera? Sem mais uma palavra, desviou-se e se foi. Quem sabe, realmente "criara juízo". Jamais o esquecerei, porque ele significou na vida de algumas pessoas e na minha própria, por certo tempo, um desencontro. Aquele que finge dar, mas que só tira.

Há pessoas que, efetivamente, num dado momento, entram na vida de outras, provocando grandes provações e dissabores Às vezes de forma inexplicável. E depois desaparecem, se vão, da mesma forma como vieram, deixando, porém, o gosto amargo da lembrança.

São os desencontros. São as pedras que rolam, se chocam e se batem. Mas, não são somente pedras que rolam e se batem.

Há momentos que elas se aproximam, aquelas pessoas que nos momentos mais difíceis também de forma inexplicável, se apresentam e fazem um bem imenso a outras, um simples gesto, falando qualquer coisa oportuna que enleva, que recupera.

Uma palavra pouco machista nos dias de hoje: a ternura. Isso mesmo! É o que algumas pessoas transmitem, sem afetações, com sinceridade e de tal ordem que muitas vezes somente a gratidão não é suficiente para compensar as benesses recebidas. E o mais curioso é que não se dão conta do que fizeram.

São os encontros. Os reencontros. O retorno a algum passado que parece vivido mas perdido, quem sabe, nos séculos, no éter.

Quando faço uma reflexão dos desencontros e encontros, chego à conclusão que nesta vida atribulada, até agora, conto mais encontros, reencontros. Que permanecem em minha mente como momentos preciosos, de amizade. Quanto de amor há na amizade?

Se os desencontros foram maiores, tento não me convencer disso até porque tenho consciência de minha obrigação de perdoar e relevar. Difícil, mas ver o lado bom do atrito das pedras.

Foto: abracadabra.weblog.com.pt