30/09/2013

ADVOGADOS e ADVOCACIA. Impressões de “antigo” advogado




Da cachaça ruim aos néctares

Não raro, quando lhe caia nas mãos um caso difícil, alguma doença que não sabia diagnosticar ou curar, seu amor-próprio recebia golpes terríveis que o deixavam por algumas horas, às vezes durante dias inteiros, mal-humorado e já quase decidido a abandonar a profissão.” (1)

Este trecho foi extraído de obra de Erico Veríssimo como forma de abrir esta crônica porque o personagem ali situado era médico (Rodrigo Cambará) e se referia àqueles casos em que a solução escapava totalmente de seu controle ou de seu conhecimento. 

Mas, ele se recuperava quando outro caso se lhe apresentava e obtinha êxito no diagnóstico e tratamento.

Pode haver um risinho de desfeita no que direi, mas num dado instante de ambas as profissões, a advocacia e a medicina, elas se tocam, ora no diagnóstico, ora no desgosto do resultado, ora na angústia do que foi feito porque não há como voltar ao ontem, especialmente quando tudo fora feito para sequer se pensar no mal resultado embora possível.

Quanto a mim, com mais de quatro décadas de profissão, ou mais ainda, ingressando nela ainda não diplomado, há desses dias amargos, dias em que costumo dizer para meus próximos:

- Estão vendo aquele canto ali do meu escritório? Pois é ali que bato a cabeça para curar os meus desgostos e, depois disso, aguardo o dia seguinte para tentar consertar tudo o que não deu certo hoje. Pensar no que fazer, um recurso ou o que mais houver.

Não trato com a própria vida numa mesa de cirurgia, mas com quanto de emoções, de esperanças pelo justo, com lágrimas pelo injusto primitivo que prevaleceu e, nesses casos, quão difícil explicar tecnicamente as causas: um tribunal que muda a maneira de julgar uma mesma tese, um juiz “técnico” e não jurista que julga mal, uma tese honesta que não foi acolhida até nas últimas instâncias.

Pergunta difícil:

- Por que ele ganhou e eu não? Não era a mesma causa?


Mas, não são somente amarguras que para mim são menos. Há aqueles tempos em que tudo dá certo, temas complicados que são acolhidos, às vezes no último minuto do último recurso.

Quantas vezes me deparei com esses êxitos? E, ao final, no fio último de esperança, na vitória que se materializa a tal ponto que nem me animara a comemorar: o desgaste todo até esse êxito fora imenso. Às vezes penso em mãos de divindades intercedendo. 
Como naqueles casos em que se desenha desastre iminente que algum empurrão que não se sabe de quem o desvia do ponto do grave atrito.

E, assim, me resigno a erguer um olhar para o alto.

É por isso que os êxitos médicos e da advocacia podem dar um mesmo sentido incomum de perda e ganho, de derrota e vitória.

Como não sou médico, o que posso dizer é que, por causa dessas variáveis da profissão do advogado quando exercida no seu rigor ético-profissional, ela se torna empolgante, até mesmo pelas possibilidades que concede em mudanças sociais na participação política e de construção jurisprudencial.

Mas, eu sei também que, no êxito, quanto ouve o advogado que “não fizera mais do que sua obrigação”, afinal fora “bem pago para isso”- embora haja, sim, reconhecimentos - mas se na derrota ela tivera como causa a “atuação falha do advogado.”

A culpa nunca será atribuída às reais vacilações de juízes e tribunais, mudanças de entendimento e quanto pode demorar um julgamento. A culpa tende sempre a ser atribuída ao advogado.
Apesar disso, como disse linhas acima a profissão tem sua empolgação máxime quando a demanda fora complexa e vitoriosa.

Por causa dessas alternativas, não consigo dela me separar.

Uma espécie de cachaça ruim da qual estou irremediavelmente viciado, mas há, também, aqueles momentos em que a alquimia jurídica a transforma em néctares. E eu os aproveito no silêncio da reflexão.


Em 27.06.2010, neste Temas, publiquei este relato e, sendo relato, verdadeiro:

“Minha idade de vida? 92 anos”

Desço tranquilo do 5° andar do Fórum João Mendes, em São Paulo. As coisas tinham caminhando bem nos meus (poucos) processos por lá e por isso havia baixado meu estágio “normal” de tensão quando da subida.

Alojo-me bem na frente da porta do elevador e ouço um velhote, mas bem idoso mesmo, debatendo com outro idoso algumas questões jurídicas.


Volto-me e me surpreendo com ele, magrinho, baixo, cabelo ralos dividido no meio. No térreo não resisti:

- O senhor é advogado militante? Posso perguntar sua idade?

O velhote me olhou de alto a baixo, segurou firme a gravata verde, vacilou um pouco, e respondeu:

- Sou advogado e minha idade são 92 anos.

- Mas o senhor ainda exerce a profissão?

Diante da resposta afirmativa, aquele que parecia ser seu cliente, também idoso, arrematou:

- E ele viaja para outras cidades para audiências e o que mais necessário.

Revelei minha admiração pela sua disposição para o trabalho e me envergonhei um pouco pela minha preguiça, mesmo depois de estar me aproximando das quatro décadas advogando ou indiretamente me valendo da advocacia para outros tipos de trabalho.

A advocacia é uma espécie de cachaça embora de má qualidade que vicia.

Sai para a rua de São Bento nos rumos de um velho bar para um lanche reforçado. Na frente da estação do Metrô, a uns dois passos do Largo de São Bento.

- Bom demais tudo isto! (2)

 Referencias:

(1) Erico Veríssimo, “O Retrato 2” (“O Tempo e o vento”);
(2) “Eu amo tudo isto?” (2° Cena) de 27.10.2010