22/01/2023

UM TIPO NOTÁVEL (I)

 O RANCOR E A GRATIDÃO


Acho que já disse que estendi ao máximo minha “vida  estudantil”, o quanto deu até que um dia – eu já trabalhava nesse tempo – tive que buscar uma atividades mais segura na vida profissional. Afinal de contas, a despeito do interesse dos meus pais, quem haveria que bancar o curso superior seria eu mesmo.

Não demoraria muito, fui trabalhar na principal multinacional da cidade (automobilística).

Um choque tremendo porque eu não havia perdido os encantos de poucos anos antes da vida estudantil, da pequena imprensa... (*)

O supervisor tinha lá seus “grilos" a resolver, porque mal resolvidos - esses caras que um dia pensaram em ser padres -, tinha atitudes intempestivas, era ríspido.

Deixou a marca da ferradura.

Ah, sim, tenho até hoje uma marca dela no peito já cicatrizada.

Não posso dizer que tudo foram desenganos, rancores e vontade de fugir dali.

Foi nesse clima, porém, que por decisão dele, viajei de avião pela primeira vez, foi lá que conheci Brasília em “missão” profissional, foi lá que aprendi a dirigir para valer, foi lá que me desinibi ministrando palestras para supervisores em formação. Foi ela que comecei a entender a Justiça do Trabalho sendo o preposto da empresa ainda acadêmico. Houve também momentos de empolgação, o interesse que adquirira pelo sindicalismo, que me levaram a estudos e acompanhamento muito de perto do movimento sindical e grevista do final da década de 70 e até meados de 80 no ABC...

Mas, havia o outro lado da moeda: foi lá que ia encher o tanque do carro do chefe com alguma regularidade, ia obter assinaturas de documentos lá pelos fundos da fábrica em busca dos superintendentes que deveriam assiná-los.

Ora, direis, lições de humildade...

Não somente eu tinha essas “lições de humildade”. Colegas mais categorizados eram designados para tarefas incompatíveis com sua formação e função.

Mais não digo porque não é necessário dizer.

Algo que me marcou muito: com a perua Veraneio da empresa rumei muitas vezes pela periferia mais periférica de São Paulo (chegava nesses locais afastados por rumo com base no Guia de São Paulo que não mais existe) tentando achar empregados de linhas de produção desaparecidos. Muitos “desaparecidos” flagrei em pequenos botecos em bairros remotos jogando bilhar com garrafas de cervejas já consumidas.

Não somente isso: algumas vezes me obriguei a compulsar o livro dos horrores no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo aquelas fotos “no estado em que foram encontradas as vítimas”, para tentar identificar um empregado desaparecido que não deixara vestígios. O ar por ali era ruim, o odor da morte “in natura”.

Eu me convertera num operário de relações trabalhistas “faz tudo” (“labor relation does it all”). Com o tempo e por conta do salário, dos laços familiares, filhos nascidos, fui me adaptando e, de certo modo, me anulando, aquele sentido de perda por tudo que julgava havia feito, aqueles valores pessoais coisas que julgava importante ter realizado.

Às vezes, nas minhas angústias acusava a empresa de ser um cemitério de talentos.

Quando deixei a empresa, não fui muito educado com o supervisor quando me despedi. Disse-lhe coisas que pensava ter que dizer, tal a minha amargura, então. Posso dizer que depois me arrependi ao extravasar meu rancor por causa da ferradura indelével que mantinha moralmente no peito.

Muitos anos depois, já trabalhando em outra multinacional, vez por outra eu o encontrava em reuniões no sindicato patronal. Era, então, ele, gerente da mesma empresa e competente negociador empresarial.

Um dia, numa reunião burocrática dessas, ele começou a falar de uma doença que o vitimava e se pôs a chorar copiosamente. O coordenador da reunião cuidou de acalmá-lo.

Eu não tripudiei seu choro sincero. Não. Ele demonstrava para quem quisesse ouvir sua fraqueza humana. E eu lá estava ouvindo.

Tudo tem seu tempo e mesmo o tempo de vida.









Eu tenho quase apagada a marca da ferradura moral mas “do alto, aqui no meu canto”, olhando as flores lá fora, confesso sem vacilar que tenho o dever da gratidão. Com ele aprendi muito até a não ser como…


Referência

(*) Acessar: Memória - Anos 60 - SCSul

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