11/07/2009

RAIZES SANCAETANENSES (ii)





A foto, antiga, traz a imagem de um festa no Colégio Bonifácio de Carvaho em 1965









Já disse em outras crônicas que o meu saudosismo não é exacerbado. Como muitos outros, vivi a juventude nos anos 60. E quem viveu é que sabe como é difícil não retornar algumas vezes àqueles dias excepcionais.
Comparo a juventude de então com os dias de hoje. Está claro que a de ontem era mais realizadora, mais ingênua nos objetivos e disso falarei na crônica a seguir. A de hoje está assentada, de regra, na frente de um computador e as batalhas que trava, são os jogos programados, alguns com extrema violência.
Por falar nela, violência, as coisas estão muito difíceis hoje. Nunca aquela frase do personagem Riobaldo de “Grande Sertão – Veredas”, obra prima de Guimarães Rosa, esteve tão oportuna de pronunciar: “viver é muito perigoso”. E, ao viver “a cada dia a gente aprende uma qualidade nova de medo.” (v. publicação neste blog de 23.02.09, GRANDE SER-TÃO.
Daí porque, nesses momentos de angústias, prestam os viventes dos anos 60, por mais que tenham amealhado materialmente, um tributo àqueles idos.
A crônica “Estudantada”, abaixo, foi publicada em julho de 1983 num semanário de São Caetano do Sul, logo em seguida extinto por razões menores que não valem pensar.
Eu a transcrevo parcialmente. Claro que o que ali escrevi refletiu um desses momentos de regresso aos anos 60, com certa nostalgia, porque já então vinha naquele ano de 1983 num processo de exigências pelo forte interesse profissional a que me obrigara e, claro, aliado a compromissos familiares a cumprir.

ESTUDANTADAS (Julho de 1983)

(Quando em itálico texto entre parêntesis, significa atualizações e esclarecimentos)

Como pesa a maturidade!
Com ela o pior dos fardos, tenho para mim, é a consciência da mortalidade.
Muitas vezes me vejo questionando o porquê dessa ou daquela experiência e as dificuldades que a cada dia se colocam, obstáculos que se sucedem infindáveis.
Em muitas ocasiões acordo daquele sonho em que, por alguns momentos, estive com o pé (o pé?) do “outro lado” (viajando por lugares estranhos, levitando sem peso).
Tudo muito estranho, surpreendente.


Ao longo dos anos tenho visto diversos tipos de personalidades. A que mais me chama a atenção – às vezes com uma ponta de inveja – é aquela de velhos colegas, bem situados na vida profissional que apenas raciocinam em cima de números e que conseguem transformar, por exemplo, uma simples fábrica num organismo vivo, num parente muito próximo, numa “pessoa física”.
Um desses, um engenheiro, hoje fazendeiro tranqüilo, quando lhe informei que adquirira um disco de sucessos, comentou apenas: “Você o rodará umas oito ou dez vezes, depois ficará esquecido nalgum canto. Isso é supérfluo.”
Incrível, ele tinha razão (de regra, porque tenho hoje no carro, CDs que vão de Chopin a Ravel, de Beethoven a Rossini, de Elis à melosa Connie Francis e de Maisa a Strauss – tudo dependendo da hora que inspiram uma revisitada).
Serão alienados? Não sei.
Alguns desses, nos tempos da juventude, revelavam um marcante talento poético, sensibilidade. Hoje realizam-se em suplantar a terrível concorrência que nos rodeia. Suas potencialidades promissoras desviaram-se irremediavelmente para o nosso mundo competitivo que não facilita, na média, a reflexão sobre a própria individualidade, a grandeza da condição humana.
Só receio para esses meus amigos, num belo dia, surpresos pelo ócio compulsório, apanhados por esses gritos interiores, certamente que num momento mais difícil desse nosso mundo, terem que assumir a mente vazia, já que de resto, “mente vazia é a habitação do demônio”.
É apenas um risco. Mas, por vezes, olhando ao longe de uma janela qualquer o horizonte poluído, me questiono, incontroladamente, e me vejo nesse mundo enraivecido, nervoso. Que lugar é este?
Eis porque invejo (um pouco) essa categoria de personalidade voltada para fora, prática, ambiciosa, material.
No fundo, lá no fundo, tenho lampejos de encontrar num local isolado qualquer – que graças a Deus ainda existe – com muito sol, mais perto do céu, muitas flores, beija-flores (quem teve preso às mãos esse chumaço chamado beija-flor?) e alentar a opção de uma ociosidade extemporânea, assumida, consciente?
Não sei se conseguirei respostas num tal lugar às minhas indagações frequentes(toda vez que arrisquei assumir um local desses, nas minhas ausências, foi ele depredado pelos inimigos da paz – aqueles que fazem este mundo enraivecido, nervoso!).
Na dúvida, aqui permaneço, aqui sofro, aqui luto, aqui me iludo, aqui me desiludo, aqui exulto, aqui me entristeço.
Porque não há como parar o tempo. E ele passa célere.

Esse meu estado meditativo (de nível colegial, não importa) se sedimentou no passado, nos acertos e erros da juventude.

Muitos não sabem, outros poucos se lembram e alguns insistem em esquecer, mas nossa cidade foi, há 20, 25 anos, na região, quiçá na Grande São Paulo, onde os movimentos estudantis mais se intensificaram.
Nesses movimentos havia acima de tudo, a inocência – não a inocência imbecil como poderão alguns já estar imaginando. Toda atitude idealista é inocente pois que (e quando) desprovida de interesses egoístas.
Por que realizavam os estudantes promoções dificílimas de serem organizadas? Por que os estudantes se uniam numa permanente noite de festas e pebolim? (Os movimentos estudantis não se limitavam a promoções de natureza social e esportivas mas também políticas, combatendo os abusos que os políticos locais praticavam já então com os seus subsídios).
Por que, apesar dessa atividade intensa e interessante, a maior parte desses estudantes conseguiu, em seus estudos, vitórias memoráveis ingressando nas melhores faculdades?
E notem que eram poucas: não existiam essas tantas e tantas escolinhas de direito (minúsculas mesmo!), de engenharia, de medicina. Era a Poli, a São Francisco, a USP, a PUC.
Tudo era conquistado palmo a palmo. Que tempos aqueles!
Quanto olho em minha volta hoje, vejo uma cidade quieta, aposentada, sonolenta.
Não é gratuita a afirmação de que “não se fazem mais estudantes como antigamente”.
Eis porque, meus amigos, quem viveu os primeiros anos da década de 60, na idade estudantil, em São Caetano, deverá ter guardado momentos preciosos e deliciosos. Depois, nunca mais!
Tudo fora um sonho – cujos fragmentos ainda permanecem desenhados na minha mente. Sinto-me feliz por um dia, precisamente naqueles dias, ter vivido em nossa cidade.
Como um sonho colorido, tudo engrenava, tudo fazia sentido e o amor encontrado na face de todos era o perfume, o buquê do dia-a-dia daqueles dias.
Nada há o que lamentar daqueles tempos. O que hoje lamento são os atos, a insensatez após cruzada a linha da maturidade.


Onde estará ou como estará o velho “Bonifácio de Carvalho” de tantas glórias? Onde os memoráveis concursos de oratória, sempre um acontecimento na cidade? Onde as competições (esportivas) entre acadêmicos e colegiais? Onde os “intelectuais” e suas noitadas no Centro Acadêmico? (O Colégio “Bonifácio de Carvalho”, público, um dos melhores da região concentrou a vanguarda dos estudantes de São Caetano / ABC com promoções inesquecíveis, como foram também os “shows de Bossa e Poesia” – tenho certeza que hoje as escolas de um modo geral incentivam o esporte e as promoções culturais, mas tenho a impressão que falta aquele espírito “do tempo”, daquele tempo).

Tudo levado de roldão pelas ondas do passado. Na verdade, o passado, para mim, é algo absolutamente novo (novidade que se renova a cada dia).
Serenamente, da mesma janela, curto um pouco de saudade de todo aquele espaço que os estudantes souberam tão bem criar e cultivar.
Não me perguntem se aqueles “jovens” de antes conservam as mesmas qualidades das décadas passadas. A maturidade, como já fiz ver, provoca transformações.

01/07/2009

TEMPOS




















Uma flor rara que já tive no meu jardim e que se perdeu há décadas. A foto original já perde a nitidez. É ela que revela a passagem do tempo. A mesma foto restaurada pode significar a renovação cotidiana que fazemos nessa nossa vida atribulada e cheia de desafios. Por isso tem a flor das fotos muito a ver com a crônica abaixo e...comigo.



Não é novidade para ninguém que a geração que viveu a juventude nos anos 60 tem saudades de tudo. Circularam há pouco pela internet “reclames” daqueles tempos, produtos famosos que fizeram parte da vida das pessoas e desapareceram, lambretas e músicas que alguns mais saudosistas repõem na “rede” exaltando aqueles tempos únicos. Para uns mais para outros menos, o caso é que tais “recuerdos” mexem com a cabeça ou com o coração.
Eu sou daqueles tempos e acho que vivi, dentro de minhas possibilidades, intensamente. Tudo aquilo era bom demais sem ter consciência disso. E o pior é que ninguém me avisou da beleza daqueles dias de tal modo que me expusesse mais.
Numa crônica que escrevi, publicada em 1983, direi um pouco mais sobre isso tudo.
Não sei, mas parece que a década de 60 esquecendo os episódios políticos – que já analisei em muitas oportunidades, mas não aqui, que não é o veículo apropriado para isso – fora uma espécie de conceito de felicidade, que muitos experimentaram sem serem advertidos ou se darem conta de que tudo aquilo passaria, era provisório, porque o mundo estaria fadado a mudanças partir de um instante, com velocidade máxima.
Vez por outra, por força de minha profissão me afastei ou me afasto desses tempos, enfrentando o chão duro da vida.
Mas, de repente, um som qualquer, um pardal, uma rosa, me levam de volta e eu não posso negar que reflito sobre aquele jovem que fui e que está ainda aqui comigo.
As construções poéticas a seguir, por isso, reconheço meio melancólicas. Foram formuladas nesses momentos de reflexão em que revolvo todas essas experiências vividas com o mistério da vida
.


Passado, presente e futuro

A tarde é cinzenta e fria.
É outono.
Bate forte o vento na janela entreaberta.
Estas tardes melancólicas de sábado
me fazem viajar no tempo.
E anoto quão ele é inexorável
de estação em estação.

Ligo o passado jovem com o presente
Sou eu mesmo, pena que sem mais
projetos mirabolantes, belezas utópicas.
Ilusões de mudar com discursos o mundo.
Nem parece verdade todo esse trajeto!

Que posso dizer disso tudo, afinal?
Que tenho saudade do feito e do não feito?
Contabilizando os trens que passaram
sem que embarcasse?
Pelas oportunidades e o tempo desperdiçados?

Não sei bem o que sinto, na verdade.
Só sei que tal ligação passado-presente
está aqui comigo, n’alma,
e me desperta a cada dia
Quem fui, quem sou e quem serei?

Quem sabe um idealista que queria
com discursos mudar o mundo,
lamentando os trens perdidos
que me levariam...para onde?
Olho do alto da maturidade
serena de hoje e...mais além...
Lá serei uma lembrança remota
cuja presença se perderá no pó...

Inexorável


Melhor tempo

Qual, pois, o melhor tempo...
Estes de hoje
Tecnológicos, metálicos,
Úteis, soberbos
Televisivos...aborrecidos
Poluídos
Suínos gripados
Dos terrores e humores
Estremecidos?

Ou aqueloutros, de antes
Criativos
Ritmos (de vida)
(Mais) confiáveis,
Serenos,
Rimas e poesias
Amáveis?

Respondo: é de cada um
Para mim, de coração,
não há saudades do hoje
Só do ontem até longínquo:
dos meus amores
enternecidos
alegrias, tristezas
levezas...

De tudo
Da vida indo
Até chegar ao agora
Com uma dose de angústia
Do que vi, vivi e vai indo
embora.

Inexorável

21/06/2009

RAIZES SANCAETANENSES (i)














Cenas que retornam: eu bem cabeludo espremido ao lado do professor Tonini




ESCLAREÇO

Todo cronista escreve para ser lido. Assim com o escritor e o poeta. De nada adianta manter poesias e contos na gaveta. Essas criações engavetadas não são obras, são apenas promessas tímidas que permanecem no esquecimento, no pó.
Quanto a mim, muita coisa escrevi entre a inspiração e a transpiração. A transpiração sem a inspiração, digam o que disserem, pode não traduzir a boa obra. Mas, ela tem um mérito: insistindo muito ela pode trazer à tona a inspiração que eclode dum processo mais fundo na mente ou...na alma.
Não haveria muita proximidade entre a intuição e a inspiração?
Nestes últimos anos, por força de minha profissão, a advocacia, que rigorosamente, na maioria das vezes tem por objeto a discussão do vil metal, deixara de lado a crônica, a poesia que sei que não tenho talento – precisaria de muita transpiração para, quem sabe alcançar a inspiração, mas já não tenho mais esse apego - e até porque há uma escassez de veículos de divulgação.
Estava nessa quadra das minhas meditações, fixando-me em leituras, empolgado com “Guerra e Paz” e “Ana Karenina” de Tolstoi, a maioria das obras de Dostoievski, “O Corcunda de Notre Dame” e a sua Esmeralda “deslumbrante”, de Victor Hugo, quando o amigo Caio Martins, a quem conheço há mais de quatro décadas se saiu com essa proposta de blogs.
Pensando em tudo que tinha que recuperar de bom e ruim que já escrevi, acabei me assentando neste, “Temas Livres” – livre, o blog, porque não tem ele um ordenamento preciso na sua temática. É livre, mesmo.
Estava assim posto em sossego, recuperando o já escrito quando, por acaso, na internet encontrei meu nome numa matéria extraída da publicação “Raízes”, editada pela Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, órgão da Municipalidade daquela cidade. Nessa revista, de dezembro de 2008 há uma homenagem ao professor Paulo Tonini que na década de 50 fora meu professor do 1° ano do primário e, nessa turma, estava um outro amigo, Domingos Glenir Santarnecchi, com quem mantive raros contatos nesses anos todos, eventualmente pela internet. Glenir é Presidente da Fundação citada. (Para a matéria completa acessar: www.fpm.org.br/raizes ou no Google buscar “Homenagem ao professor Paulo Tonini”)
Não me encorajara até aqui em relatar qualquer coisa daqueles idos mas eis que Glenir, otimista como sou, creio eu, me instigara a tanto, na sua gentileza remetendo de novo essa matéria, afirmando: “Você já faz parte da história de São Caetano, foto e artigo homenageando o nosso primeiro professor do Grupo Senador Flaquer.”
Não, nem por isso faço parte da história de São Caetano do Sul – a cidade que, a despeito de todos os percalços que enfrentei, me fez viver anos maravilhosos, na década de 60.
A foto da turma de 1952 a que se refere o Glenir, é essa que ilustra a presente crônica. Do lado esquerdo, lá estou eu encolhido bem ao lado do professor Tonini. Glenir está mais à esquerda, ao lado do representante nipônico da turma.
E daí vêm as

Lembranças

Saio de minha casa humilde. Chovera muito. Naquele manhã, até a hora da escola, formara meu escritório numa pequena mesinha com prateleira embaixo. Catei todos os papeis do armário da sala e me fiz escriturário, sonhando em me ver num escritório.
Tempos de humildade, vida modesta e de felicidade, aquela sentimento de paz que se dá nas crianças quando em sua volta predomina a normalidade, o dia seguinte sem sobressaltos. Pois não fora uma surpresa inesquecível conviver com um quati? O assassinato doloroso do leitãozinho que morreu com os olhos fixados nos meus? (v. crônica “Animais (zinhos) e Bichos” de abril de 2009). E com o “pinguim”, o cachorro que só faltava falar e que morreria lentamente, agonizante, sem que desconfiássemos que poderia ter sido envenenado? (naqueles tempos precários de conhecimento e alternativas!). De comprar aquelas balas com figurinhas enroladas, torcendo para que viesse alguma carimbada para ir preenchendo o álbum ou trocar por alguma outra valiosa com algum colecionador? E o aprender a andar de bicicleta num terreno do outro lado do rio Tamanduateí, na pequena “gazzele”, aquela marca italiana única? E o ato da primeira comunhão, assíduo no catecismo, ameaçado havia poucos dias antes, pela beata que, categórica afirmara com dedo em riste que se eu não soubesse recitar o “ato de contrição”, o “credo” eu seria excluído do grupo? Um terror, impensável: “mea culpa, mea maxima culpa.”
No treino com a hóstia, ela grudou entre o céu da boca e os dentes. Ao ser informado, o padre beócio fez graça perante o grupo. Envergonhado, tive vontade de ir embora, mas minha timidez não permitia um tal ato extremo e justo.
Na confissão o padre perguntou a mim e a todos se tínhamos praticado “coisas más”. Só muito depois entenderia o que quisera o beócio sob a sombra do confessionário obscurecido significar.
Na volta da Matriz velha de São Caetano do Sul, o dia de comunhão fora uma festa. Bolos e guaraná para os vizinhos e para a molecada
À tarde choveu e lá estava eu tacando o pé na lama e na água que corria nas guias havia pouco colocadas.

No primeiro dia de aula, como muitas vezes, meu sapato atolara no barro. Ando alguns quilômetros até o Grupo “Senador Flaquer”, o primeiro de São Caetano, entro numa sala arejada, pintada na cor creme, cortinas da mesma cor e me assento numa carteira do lado direito, me angustio com o que advirá e me surpreendo com a chegada de um professor jovem acompanhado do diretor da escola para nos dar as boas vindas. O professor Paulo Tonini já apresentava sinais de calvície aguçando seu ar austero.
Era um daqueles sujeitos heroicos que se depara com um bando de moleques de seis ou sete anos e se propõem a alfabetizá-los.

Primeira lição, mostra a figura de um tatu no livrinho fino, de capa azul: “Eu vejo um tatu, tatu, ta ta”:
- Veja, esta é a letra “t”. Vocês colocam o “a” e vira “ta”. Façam o mesmo colocando o “u” e vira “tu”. E ai “ta” e “tu” formam “tatu”.

Ele tinha um jeito muito próprio de conter a algazarra. Dava tabefes leves na nuca dos mais afoitos. Eu mesmo levei um porque ele me confundiu com um outro moleque que fizera qualquer coisa que o desagradou. Fiquei vermelho até quase explodir, porque eu era silencioso e aplicado.
No dia da fotografia da classe, alguns meses depois, me aperto ao seu lado, com aquele meu cabelão farto que até hoje sobrevive intacto, um contraste com sua careca que vinha prosperando.

- Meu Deus, por onde anda essa turma toda?

Esses tempos remotos que se perdem e só revivem por provocação, como se deu, e o esforço em se unirem resíduos encontrados nos recantos insondáveis da memória.

No segundo ano, a professora era linda, dona Denir, talvez por não usar qualquer pintura facial. Ela faltava muito. E quando faltava vinham aquelas substitutas que julgava insuportáveis. Injustiçadas. Era, na verdade, a contrariedade da ausência da titular que omitia sua beleza naquele dia. Já no pátio, ao saber da falta da professora, me sentia mal (ou fingia) para tentar fugir da aula. Mas, não havia jeito e lá ia eu para o sacrifício com a alegada dor de barriga ou não.

Não posso deixar em branco o dia do suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. O diretor da escola, professor Edson adentrou às salas de aula informando emocionado que o presidente Getúlio Vargas havia morrido. Não havia ainda detalhes do acontecido. Na sua emoção, vertendo lágrimas, por ato próprio, liberou os alunos. Ele era de uma geração que certamente se habituara com Getúlio no poder desde a década de 30.
A arruaça que se seguiu ao anúncio da dispensa fora incompatível com a solenidade do momento. Mas, quem era mesmo Getúlio?

Nas séries seguintes fui excelente aluno. Recebi livros das professoras (Carmem e Olga Faria) por não ter dado nenhuma falta durante todo o ano ou por aplicação.
No dia do diploma, na festa, um vexame. Minha mãe, tão querida, não quis que eu usasse a velha calça comprida e lá fui eu de calça curta. Não havia como me esconder naquela confusão toda da festa.

Quando me lembro desses dias, com tantas coisas mais para contar, caio em emoção por essas figuras maravilhosas que encontrei na minha infância e que neste instante revolvem com tanta doçura minha memória.

Mais à frente, do ginasial em diante, tornara-me péssimo aluno.
Mesmo assim, comecei a escrever para pequeno jornal de São Caetano, “A Tribuna”. Aquela vontade de expor ideias mesmo sem talento e no mau português.

Dei-me conta do prefeito Anacleto Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, vindo Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.

Anos depois, no segundo mandato, por programação do referido jornal que capengava me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou recebido no gabinete. Com aquele seu jeito impaciente, irreverente me encara, levanta-se da mesa de trabalho sai apressado e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero News Seller ("Diário do Grande ABC") e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para o jornal por pouco tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança.

Aqui há que se fazer uma ligação com a crônica que escrevi sob o título “Amarguras e ternuras contidas” em maio passado.

Campanella mais tarde ficaria muito doente e pereceria. Vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo. Mas, jamais poderei esquecer esse gesto que até hoje me surpreende e me faz dele lembrar com carinho. Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Aquele gesto ficou.

A partir daquí há um lapso de tempo que talvez um dia eu conte.

14/06/2009

A UNIVERSIDADE DE COIMBRA - PORTUGAL







Eu e D. Diniz (Roupa larga e vento frio)









Esta crônica tem ligação estreita com aquela inserida em 30.05.2009, "Largo de São Francisco: A Academia de São Paulo".


Claro que, pela minha formação jurídica, a presença em Portugal exige uma visita à cidade de Coimbra. Lá está desde 1537 a Universidade de Coimbra, fundada em 1290 (nela incluída a Faculdade de Direito) uma instituição pouco conhecida para quem vive deste lado do Atlântico, a despeito de seu conceito, tradições, incluindo o uso da capa preta pelos seus alunos. Símbolos.
Duas horas e pouco de ônibus ao norte da bela e próspera Lisboa e se chega à rodoviária de Coimbra, meio bagunçada, não muito bonita. Paro no botequim e arrisco um café a peso de euro: sofrível!
A impressão inicial de Coimbra não é muito satisfatória, talvez porque o tempo estivesse fechado, um pouco frio, realçando o cinza escurecido e a antiguidade dos prédios. Ruas movimentadas e não muito asseadas.
Um quilômetro na avenida e se alcança o ponto do auto-car (ônibus) que nas suas voltas leva até o cume da colina, onde se situa a Universidade.
Durante a espera, uma senhora portuguesa espontaneamente puxa conversa ao perceber o sotaque brasileiro. Tinha um filho trabalhando em São Paulo e me surpreende com a pergunta: “o que fazem nesta terra caquética?” Percebendo surpresa ela explica que tudo por ali era velho, estagnado e que pouco havia a fazer. Eu procurei entender sua angústia. Estariam no Brasil os grandes desafios e o muito a realizar?
Chega-se no alto, na Universidade. Dou de cara com uma frase típica de grafiteiro bem desenhada num muro próximo: “Isto aqui já não é mais aquilo que nunca foi. Imbecis.” Não excluo esse desabafo de algum brasileiro gaiato, entre os que lá estudam. Naquele dia frio, os que estavam no campus, todos trajavam as tais capas pretas.
A Universidade de Coimbra é composta de prédios realmente muito antigos. Suas instalações internas como não poderia ser diferente, refletem esse estágio de antiguidade, mas com seus encantos, aquelas vibrações meio sacras que provém dos séculos de ensino e cultura.
Bem na frente da Universidade, a estátua de dom Dinis de quem sou fã. Rei de Portugal de 1279 a 1325, foi o fundador da instituição, de modo a evitar que seus súditos fossem estudar em outros países (a instituição das faculdades de Direito no Brasil, tivera motivação semelhante: evitar que os estudantes se formassem em Coimbra). Visionário, dom Dinis incentivou a exploração de pinhais em Leiria que seriam usados na construção das embarcações que explorariam os mares, mais tarde.
Para descer do cume da cidade, bastara valer-se de uma ruela ladeira abaixo e observar nos detalhes quão velha a cidade.
Lá embaixo, no meio do caminho, foi agradável uma olhada nas ruas comerciais. Lembrancinhas cuidadosamente selecionadas porque a moeda é o euro.
Já chegando a hora de voltar para a rodoviária, vêm-me à mente uns acordes muito conhecidos entre nós, de linda música portuguesa que fala de Coimbra, cujos autores são Raul Ferrão e José Galhardo:

Coimbra do Choupal
Ainda és capital
Do amor em Portugal
Ainda.
Coimbra onde uma vez
Com lágrimas se fez
A história desta Inês
Tão linda
.


Choupal é a denominação de um bosque da cidade de Coimbra / Choupo = Álamo)

E “a história desta Inês tão linda?” Dos amores impossíveis e trágicos...
Em meados dos anos 1300, dom Pedro, herdeiro do trono português, apaixona-se por uma prima distante, Inês de Castro, encantado pela sua beleza. Nasce um romance adúltero. Dessa relação, Inês dá a luz a três filhos de dom Pedro. Os irmãos de Inês passam a influenciar dom Pedro. Dom Afonso IV, pai de dom Pedro, decide autorizar o assassinato de Inês de Castro, de modo a cortar a influência que exercia sobre ele, além de evitar que algum dos seus filhos aspirasse a futura sucessão de dom Pedro.
Naqueles tempos, Inês passara a ser sinônimo de prostituta.
Foi ela degolada na frente dos filhos. A revolta de dom Pedro fora imensa contra o pai.
Ao assumir o trono, executou os assassinos de Inês e determinou que o corpo da amada, com grande pompa, fosse sepultado em local (Mosteiro de Alcobaça) que asseguraria ficar ao seu lado quando ele mesmo morresse. Tal se deu em 1367.
Eis como se refere Luis de Camões em “Os Lusíadas” sobre Inês de Castro:

Estavas, linda Inês, posta em sossego.
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego.
Que a fortuna não deixa durar muito (...)


E eu encerro estas impressões, com alguma emoção, valendo-me de mais um trecho da música “Coimbra”:

“O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
SAUDADE”.