01/04/2012

“PAIXÃO MAL RESOLVIDA”

Não me chame de Leocádio. Não escolhi e não gosto do meu nome. Me chame de Leo, por favor. Leo lembra leão. Signo, de virgem, fazer o quê? De setembro. Gosto de astrologia, mas não esses astrólogos que fazem horóscopos diários, sabem?
Caras, há uns bons anos trabalhei numa grande empresa, num serviço chatíssimo. Não dava para aguentar. Tinha que cadastrar fichas guardadas nuns caixotes dos quais saiam até tesourinhas. Dava para aguentar?
Sem computador, faz tempo!
Mas, diariamente, de manhã e a tarde era servido o sempre esperado cafezinho e lá vinha uma humilde copeira, despejando a bebida quentinha para todo o salão.
Depois, com uma jarra de inox alvíssima enchia os copos com água dos gerentes, uns três nas salas em frente.
Tinha a impressão que sempre que chegava até à minha mesa, ela fazia algum gesto simpático. Servia o meu café e quase segurava minha mão. Roçava nos meus dedos.
- Bom dia senhor; boa tarde senhor.
Nesses meses todos entrei num processo de incontrolável paixão.

Saibam que naquela minha mesa acinzentada e gasta havia momentos de folga.
E esperando todas as manhãs e tardes a copeira, a minha Deise – um nome americano para margarida -, numa dessas folgas, rabisquei uns versos que irradiavam a minha paixão:




Menina, sua humildade é que me inflama
Sua voz de poucas notas doces e suaves inspira
Menina, olha por um instante a este que a ama
Sorri tão lindamente para este que mal respira.


Esta Deise, sua imagem, ficou comigo até há pouco. Ou talvez esteja até hoje. Achei que fosse uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, porque não era possível que eu não a esquecesse.
Ai, soube de uma astróloga conceituada que respondia consultas feitas por carta.
Escondido, escrevi uma carta informando meus dados pessoais, nome, signo, essas coisas. Perguntei se nesse caso seria uma paixão mal resolvida num passado remoto da minha vida. Numa encarnação passada.
Passou um tempo, esqueci completamente da consulta. Não da Deise.
Uns dois meses depois, a resposta da astróloga veio lacônica:
“Senhor Leocádio, pode até ser uma paixão mal resolvida numa encarnação passada, mas está me parecendo que estou diante de um Leão virgem mal resolvido. Hoje!”

Fiquei surpreso e ofendido com a resposta. Tentei esquecê-la mas não havia jeito. Ela martelava na minha cabeça:
- Ora, pode ser que a astróloga tenha razão. Onde estará Deise. Envelhecida?

Seguramente sequer sabe quem eu sou ou fui. Vai se lembrar de modesto empregado e sua mesa gasta? Que esperava ela aparecer com o bule? Ora...
Comecei a lutar contra o “vazio”. Na hora do almoço, o perfume do feijão recém-cozido delicioso aguça a minha fome. Minha esposa cantarola na cozinha.
Mas, continuo não gostando do meu nome. Tenho que conviver com ele...
Prefiro Leo. Leão.

18/03/2012

MEUS TEMPOS DA CALÇA CURTA



Meus caros, sinto aqui no peito que sou tudo aquilo que vivi – e quem não é? indaga minha vã filosofia -, todas as influências, a minha morada em bairros pobres, meus pais, irmãos, amigos e aqueles nem tanto e, principalmente, a influência de minha mãe.
Não há jeito. Agora recostado no meu banco na varanda, naquele silêncio de Águas interrompido pelos latidos dos cachorros vez ou outra – um cachorro late tal qual a minha cadelinha Preta que perdi -, viajando entre as estrelas um tanto ofuscadas pela iluminação pública nas ruas, me pergunto sobre tudo, especialmente essa passagem pelas várias estações da vida parando numas, perdendo outras e, por fim, rememorando nesse silêncio as experiências que amealhei em todas aquelas nas quais desembarquei. Bate o vento já de outono.
Nesta noite retornei aos tempos da escola primária, na qual convivi com professoras excepcionais, aquelas mulheres dedicadas e suas aulas inesquecíveis. E naqueles tempos machistas demais. Por onde andará a dona Olga, professora substituta que no meu último ano do primário nos ensinou o ano todo. Terá já viajado?
Como prêmio pela minha dedicação aos estudos fui presenteado por ela com um livro, “Os Três Mosqueteiros” com dedicatória enaltecendo meus esforços. Infelizmente, tantos anos depois, não consegui mais encontrá-lo.
Eu tinha apenas uma calça comprida. De todos os jeitos, naqueles últimos meses da escola, evitava ir às aulas vestindo calça curta. Afinal, estava me formando.
Chegou a data da formatura e haveria festa na escola.
Poucos dias antes tento convencer minha mãe de que iria receber o diploma vestindo calça comprida:
- Mas, você não tem calça comprida. A que você usa está muito feia. Você irá com aquela calça curta azul marinho que fica muito bem em você.
Protestei o quanto pude, não chorei é claro. Afinal, já me sentia apto a exibir calça comprida bem ajeitada...como chorar?


Não sei bem, mas acho que era o mesmo “uniforme” de gala de minha primeira comunhão, dois anos antes. Já imaginaram calça curta e paletó? (1)
Talvez não fosse. Não sei. Em dois anos deveria ter crescido alguns centímetros.
Na véspera insisti com minha mãe, mas ela respondeu a mesma coisa:
- A calça curta azul marinho fica bem em você.


No dia, manhã meio nublada, não teve jeito. Contrariado, lá fui eu de calça curta, envergonhado, olhando para todos os colegas que usavam calça comprida, não escondendo o meu despeito.
Parecia que todos me olhavam para se certificar da minha roupa de menino. (2)
Tive a impressão que até a professora Olga tivera essa curiosidade. Rosto enrubescido. Pego de calça curta.
Sobrevivi à calça curta naquele dia de festa e, como já escrevi nalgum lugar, do excelente aluno que fui – no 3° ano do primário ganhei um livro da professora por não ter dado nenhuma falta no ano todo – tornei-me a partir do ginasial mau aluno.
Penso nisso, nessas imagens, com leveza e volto a viajar pelas estrelas. Há os instantes das graças. Há que aproveitá-los.


Legendas:


(1) V. minha crônica “Regressão II: Primeira comunhão” de 24.10.2010
(2) Hoje as “bermudas”, calças curtas ou “shortões” com bolsos, dominam o meio informal e esportivo. “Bermudas”, porque popularizadas nas Ilhas de quem emprestaram o nome. As Ilhas Bermudas são também famosas porque compõem um dos vértices do misterioso “Triangulo das Bermudas”.

03/03/2012

VALORES E PENSAMENTOS QUE DESAFIAM (e até “incomodam”)

Esta crônica, escrita em dezembro de 1998, que contém “valores ideais”, em cada instante se chocam eles com o dia-a-dia do próprio cronista atônito. Ela antecedeu à crônica, “Dos sem religião – Aqueles que acreditam mas não professam” de 27.02.2009. Foi nessa crônica que me proclamei "agnóstico moderado". Contradições que assumo porque nada sei.

Um brocardo popular consagrado, que insere certo chamamento para as coisas da vida diz: "deste mundo nada se leva".
De tal simplicidade, constitui-se num verdadeiro axioma. Da matéria nada se leva: deixam-se aqui somente lembranças, intensas ou não, segundo a forma de viver imprimida pelo desaparecido. (1)
E são exatamente esses aspectos que chamam a atenção para uma maior reflexão. Ao longo dos séculos o homem, à medida que vai adquirindo conhecimento dos fenômenos exteriores, acaba se questionando sobre algumas perguntas que, para muitos, tornam-se angustiantes: "Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?" (2)
Essas indagações que se manifestam na interioridade do ser humano, encontram-se nos escritos sagrados de diferentes correntes religiosas e filosóficas e de filósofos do calibre de Confúcio, Platão, Aristóteles... (3).
E acima de tudo, mais que uma recomendação, quem sabe um apelo, a inscrição "conhece-te a ti mesmo", esculpida no arco superior (dintel) do templo de Delfos. (4)
Essas questões maiores, porém, parecem estar reprimidas na intimidade de cada um. Demais, essas reflexões quando assomam tendem a elevar a mente perplexa para uma indagação ainda superior que se perde no silêncio: quem é Deus?
Mas, neste mundo em que os interesses maiores são as proposições econômicas e a sobrevivência, o dia-a-dia, o que já não é pouco, tais valores e mesmo Deus, têm ficado em segundo plano.
Daí decorrem duas situações que podem ser comparadas a episódios bíblicos: a adoração do "bezerro de ouro" pelos judeus, enquanto Moisés conversava com Deus no Monte Sinai e a "confusão das línguas" em Babel.
Embora se reconheça que haja uma intensa procura pela espiritualidade no mundo pelas religiões que nascem, vem predominando, ainda e há muito, agora com maior ênfase, a linguagem do dinheiro, dos índices das bolsas de valores, o "bezerro de ouro" e, claro, resultando na confusão, no desentendimento, na angustia entre os países. Confusão das línguas...
Nestes tempos, esses valores superiores têm sido invocados tão somente naqueles minutos que duram um ato religioso, um sermão, uma meditação. A partir daí, porque não há tempo para questionamentos em profundidade, ao dar-se de ombros para o "conhece-te a ti mesmo", volta-se para o mundo do chão batido, dos juros e dos rendimentos.
Mas, a 'língua universal' que traz a compreensão, é a da espiritualidade, do amor e da solidariedade. Com certeza aquele que se esforça para cultivar esses valores sabe que seus compromissos não se encerram num momento de oração. Ele agirá com esse sentimento não só perante seus semelhantes, mas também amando a natureza, que alguns chamam de "mãe".
Os desvios de valores, o cavoucar no garimpo da riqueza vazia, tem trazido também imensos prejuízos ecológicos à fauna, à flora, à atmosfera, aos rios e oceanos que recebem cada vez mais imensas cargas de detritos e poluentes, em quantidade tal que impede a química natural da recuperação: "Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele". (5)
Esses todos que superam as agruras do cotidiano, precisam falar abertamente em amor, solidariedade, na falta que Deus vem fazendo nas relações entre os homens e na preservação da natureza, no respeito que merecem todos os seres que ela protege galhardamente, a despeito da ação destruidora do homem.
Será neste mundo, que nos conheceremos a nós mesmos se assim desejarmos ou nos esforçarmos. Por isso, deveremos cuidar que haja um sentimento equilibrado para que as gerações futuras o herdem. Há tempo ainda.
Porque à nossa volta há ainda resquícios do paraíso - imerecido - que foi este chão que estão sendo gradativamente destruídos por nós, agressores inconsequentes, mal-agradecidos, decaídos.
Mas, o "conhece-te a si mesmo" é um apelo à reflexão sobre esses valores que assaltam a alma com menor ou maior intensidade, porque aqueles outros do mundo ao alcance da mão nada levaras. “Tenho dito”.

Legendas:


(1) V. “Da vaidade ao pó (Reflexões sobre a “terra prometida”) de 24.04.2011.
(2) V. “Enigmas, penitências, I Ching” de 05.02.2012.
(3) Encíclica “Fé e Razão” do papa João Paulo II
(4) Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o funcionamento do oráculo (de Delfos). Descreveu as relações entre o deus, a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu instrumento e o pneuma (gás, vapor, respiração, daí as nossas palavras “pneumático” e “pneumonia”) ao plectro (varinha para vibrar a lira) com o qual ele a tocava para fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um elemento que desencadeava o processo. De fato, era o treinamento prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.
Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma. Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido, “como se viesse de uma fonte”, no ádito (no caso, câmara sagrada) em que a pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma na antecâmara onde aguardavam as respostas.
A ÚNICA REPRESENTAÇÃO (acima) da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.
A peça foi feita por um oleiro ateniense em torno de 440 a.C.

Fonte: http://www.philosophy.pro.br/oraculo_de_delfos.htm.
V. “Minha entrevista com Sócrates” de 16.10.2011
(5) Papa João Paulo II, Carta Encíclica "Centésimo Ano" de maio de 1991.

Foto:
"O Pensador" (francês: Le Penseur) é uma das mais famosas esculturas de bronze do escultor francês Auguste Rodin de 1902 (Paris). "Retrata um homem em meditação soberba, lutando com uma poderosa força interna." (Fonte: Wikipédia)

21/01/2012

SANTOS DUMONT vs IRMÃOS WRIGHT. Pioneirismos

Lembro-me que a primeira vez que entrei num avião, trabalhava numa multinacional e, principiante, havia que cumprir uma audiência em Belo Horizonte.
Ficava imaginando como me comportar no avião. Entrei naquele “pássaro”, trêmulo e cheio de dúvidas.
Minha ansiedade foi ao extremo no momento em que ele se pôs em movimento e em minutos cortava as nuvens.
O avião tremia um pouco. Eu olhava para baixo angustiado com minha acrofobia (medo de altura) não conseguindo entender como um mostrengo daqueles permanecia apoiado no nada, no éter.
Demorei em me acostumar com essa ideia, com a ideia desses aviões cada vez maiores transitarem pelo ar com absoluto equilíbrio, carregando toneladas e toneladas não só pelo seu próprio tamanho, como centenas de passageiros e respectivas bagagens. E cargueiros enormes.
Assim, me empolgo com aviões, preferentemente quando fora deles. Mas, já levitei dezenas de vezes da poeira onde se assentam os pés.
Acho até hoje avião “impossível” mas quantas vezes já singrei os ares com essa impossibilidade!
Pois bem, outro dia, um canal a cabo exibiu as 100 invenções que mudaram o mundo.
Uma delas era o relógio de pulso, “oficializado”, por Louis Cartier, porque um aviador, “informava” o documentário, havia pedido ao joalheiro que fizesse um novo modelo porque na condução de seus balões as mãos ocupadas não podiam manejar relógio de maior padrão.
Não foi mencionado no documentário o nome do aviador, que no caso era ninguém menos do que Santos Dumont. O brasileiro é mui frequentemente, sempre que possível, ignorado em tudo que enalteça os seus méritos.
E a Wikipédia assim conclui a história do relógio de pulso:
“Cartier colocou então uma pulseira de couro num dos maiores modelos de relógio de pulso femininos da sua coleção, e em março de 1904 ofereceu-o a Santos-Dumont. Este episódio leva a que se considere Santos Dumont como o responsável pela popularização do relógio de pulso entre os homens.”
Tenho comigo velha edição da “Encyclopedia pela Imagem”, um trabalho publicado em fascículos pela Editora Lello, de Portugal, que circulou pouco tempo antes da década de 40 do século passado. Há que destacar que os fatos documentados sobre aviões estavam bem mais próximos dessas edições – pouco mais de 30 anos e menos quando naquela atualidade.
E ademais o texto é uma tradução de autor francês, o que garantiu alguns créditos aos seus patrícios, mas no que concerne ao aparelho dos irmãos Wright, o relato é o seguinte:
“Estes (os irmãos Wright) realizaram aparelho que era preciso lançar artificialmente, mas que podia voar e até levar um passageiro.”
Aparelho lançado...por catapulta...
Deu-se imensa publicidade, diz a velha enciclopédia, pelo que abafou todos os outros inventores e pesquisadores, inclusive os franceses. “Passava-se isto em 1908.”
Mas, diz o capítulo:
“Já em 1906, dois anos antes dos irmãos Wright, o ilustre brasileiro Santos Dumont efetuara em voo de cem metros.” (pelo sempre lembrado 14 – Bis).
Essas informações são imparciais e colocam as coisas nos seus devidos níveis. O avião dos americanos precisava ser lançado...

Mas, acompanhando o esforço americano e aliados em atribuir aos Irmãos Wright a invenção do primeiro avião que se alçara acima do solo em 1903 há comprovado o seguinte: até 1906, quando se deu o voo precário do 14-Bis, os irmãos Wright haviam aperfeiçoado tecnicamente seus aparelhos de modo superior ao 14-Bis. Por isso, só raramente o nome do brasileiro é lembrado como inventor do avíão e quando ocorre, é tratado como inventor coadjuvante.

E a enciclopédia, daqueles idos observava sobre o futuro:
“Assim, por progressos sucessivos, o homem chegou a realizar a conquista definitiva da atmosfera, deste elemento gasoso que lhe parecia vedado para sempre. E, finalmente, por um último esforço do seu gênio, elevou-se na atmosfera num aparelho mais pesado que o ar.
E este sucesso aumenta ainda mais as suas ambições. Já sonha ultrapassar o limite da atmosfera, que lhe parece agora uma prisão, ainda que outrora encarnasse a sua liberdade. Sonha em transpor as camadas aéreas, lançar-se no espaço à conquista de outros mundos, ir por pé nas “terras do céu”! Serão realizadas essas ambições? Sonhos, dizem uns. Esperanças, exclamam outros”.

E isso aí.

Imagem: Abertura da "Enciclopédia pela Imagem" no capítulo "A Aviação"

Estampa do 14-Bis (Wikipédia)

Talento brasileiro para a aviação. Avião Embraer 195