26/07/2009

CRÔNICA PAULISTANA




















Foto: www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/sao-paulo/catedral-da-se.php


CATEDRAL DA SÉ - SP

Já faz algum tempo, obriguei-me a excursionar pelos principais pontos turísticos de São Paulo, porque me desatualizei dela.
Haveria que encontrar na velha São Paulo algumas relíquias dignas que amenizassem esses tempos amargos. Encontrei sim, mas é inevitável reviver os antigos encantos.
Não faz muito nos rumos de São Caetano, perdi-me entre aqueles viadutos no final da avenida Nazareth, no Sacomã e tomei o sentido da Estrada das Lágrimas.
Via feia e sem cor, sem verde. Já cedo, havia lá na frente uma batida de carros, fazendo o trânsito mais lento na estrada tão estreita. Acordei dessa letargia do monóxido de carbono já com os pulmões desabituados de tanto peso, bem defronte à Igreja de Santa Edwiges, a padroeira dos pobres e dos endividados.
Essas impressões me marcaram tanto que saiu o seguinte poema:

Orquídeas e beija-flores

Eis-me aqui amargurado e pensante
Mal respirando nesse clima insano,
Tudo que exala desse meio paulista urbano
Envolto na fuligem dessas chaminés rasantes.

Que mundo é este de dura resistência!
Que mundo é este de intensa incerteza
Que mesmo à reação da pródiga natureza,
Ampliam-se os desertos por abusada inconsequência?

Que mundo é este de ganância e escuridão,
Que princípios postos pouco ou nada valem?
Se de tudo que inspira sucumbe, porém,
Nessa sanha caótica de destruição?

Reajo impotente qual um conformado perdedor
Sonhando acordado, no tráfego, quietamente,
Vendo desabrochar orquídeas no fundo da mente,
Visitadas por beija-flores em doce torpor.

E assim, no interior de minh’alma triste
Revela-se que tais doces criaturas, parece,
De Deus, são o preferido passatempo, uma prece,
E somente por essa dúvida a esperança persiste.

Esses instantes de valor e Paz perdem-se na poluição,
Sobressaltado não pela água límpida irradiando o sol,
Mas pela barulhenta abertura do farol,
Cujo verde não é o das matas que clamam proteção.


Arrependi-me de nunca ter conhecido o interior da igreja, porque em frente, do outro lado da Estrada das Lágrimas, havia um barranco onde era possível se abastecer de água potável de uma nascente.
Geralmente ao anoitecer, enquanto os recipientes enchiam lentamente, ficávamos mirando o céu estrelado, quem sabe flagrando o risco brilhante duma estrela cadente. Muitas vezes elas deram o ar da graça. E no instante, o augúrio forte de um desejo profundo lançado no éter. Naqueles tempos não tão distantes. Ah, as nostalgias!
Hoje, por aquele lado onde havia a bica, se ingressa na Favela do Heliópolis, uma das maiores de São Paulo. Haverá a santa Edwiges que se desdobrar muito em ouvir os pedidos de seus moradores vizinhos...
Uma outra lembrança forte era visualizar a Praça da Sé da esquina da rua Tabatinguera (em Tupi, "local de muito barro e abandonado"), quando havia uma franca separação com a Praça Clóvis. Era uma espécie de porta pela qual se descobria a leveza da grande cidade. Hoje a Praça da Sé reúne todos os tipos humanos, entre camelôs, desocupados e até turistas.
Pelos mesmos motivos – ou talvez porque passei pelo tempo – não tenho mais o encanto em caminhar lentamente pela Barão de Itapetininga, observando rostos que passavam por mim, dando-me consciência de minha individualidade esse sentimento de aparente separação entre os semelhantes. Aparente, apenas. Mas, o tempo passou. Sinto um ar de indiferença, de angústia, um obstáculo à solidariedade silenciosa que eu pressentia naquelas andanças despreocupadas. Uma cidade circunspeta!
Não perco a esperança, porém. Volto-me, como sempre faço, à serenidade da Catedral da Sé.
Num desses dias de fuga descobri que no seu pórtico, há imagens de animais da fauna brasileira, do tatu, do tucano, da garça e do lagarto. Há figuras em relevo da uva, do cacau, do milho, do café, do maracujá. Um sentido de brasilidade naqueles idos, transcrito nas reentrâncias do igreja que começou a ser construído em 1912 e somente inaugurado em 1954, nas comemorações do 4° centenário de fundação da cidade. E, pelo que se vê da devastação, um alerta à preservação.
Na cripta estão os túmulos de (quase) todos os bispos e cardeais que comandaram a Catedral. Mas, esse local sob o altar-mor não assusta. Ao contrário, acalma. O mistério da vida e da morte que nos desafia lá está. O tempo que nos leva continuamente à grande interrogação: o sentido da existência...
Há dois túmulos que chamam a atenção:
O do cacique Tibiriçá que lá está porque muito ajudou na colonização paulista, aliado dos jesuítas, defensor das terras de Piratininga (aldeia indígena guaianá existente na região de São Paulo, chefiada por ele) contra os ataques de outros indígenas hostis. É proclamado como o primeiro cidadão de São Paulo de Piratininga.
O outro é o de Bartolomeu de Gusmão religioso jesuíta que viveu de 1685 a 1724. Nascido em Santos e falecido em Toledo na Espanha, esquecido, fora um inventor talentoso, tendo construído o primeiro balão (aeróstato) que subiu na atmosfera, impulsionado pela leveza do ar quente. Sua pioneira “máquina de voar” surpreendeu a corte de Dom João V, em Portugal.
Estaria esse túmulo deslocado daquele ambiente?
Pois não é na Catedral de Florença que se instala o túmulo de Guglielmo Marconi, cientista italiano, não religioso, bastante ligado ao fascismo? Estarei enganado? Só que Marconi, para resumir, é o descobridor da transmissão sem fio – do rádio. E os agentes de turismo exaltam os seus feitos na visita a essa Catedral.
Mantinha um certo peso na consciência por me deslumbrar pelas cidades européias. Daí a volta à minha cidade maltratada
Essas relíquias, pouco valorizadas ou desconhecidas são seus elementos extrínsecos. Intrinsecamente há uma leveza naquele ambiente, contrastando com a agitação da cidade lá fora, porque, sobretudo, na sua estrutura tão cheia de entrâncias e ornamentos, de belos vitrais e altares é uma casa de oração. Democrática. Pessoas preocupadas e contritas lá se ajoelham humildes na oração.
Isto tudo me anima a sempre pensar em novos recantos disponíveis, belos, agradáveis, dessa cidade tão sofrida, assustada quanto trabalhadora.
E os há. Basta procurar.

3 comentários:

Caio Martins disse...

Belo retrato, cheio de emoções e o vínculo com o passado. Quem não tem memória não tem história, nem bases para o futuro. Mais uma vez, parabéns, Milton.

Jorge Sader Filho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jorge Sader Filho disse...

Obrigado pelo passeio, Milton. A fonte dágua... Estrelas, a Catedral da Sé. Fiquei mais curioso ainda! Como vc insinua bem, São Paulo guarda seus mistérios.
Aquele abraço.