16/05/2010

SOLIDÃO

O sujeito era culto, lia muito e falava pelo menos quatro idiomas fluentemente. Fora executivo de multinacional.

Sua vida fora sempre muito confusa. Quando mais jovem frequentara a noite e as denominadas "bocas" de São Paulo.
Nesse ambiente conheceu aquela que seria mais tarde sua esposa de papel passado, uma mulher que embora frequentasse aqueles pontos, preservava a sua dignidade com discrição. Sua vida privada era pouco conhecida.
Mas, a forma como e local onde começou o relacionamento acabaria por provocar sérios atritos mais tarde entre o casal até porque mantinha ela amizades antigas e estranhas que permaneceram no tempo e atrapalhavam o relacionamento incomum de ambos.
No limite do insuportável, o casal se separou de modo traumático. Por fim um acordo judicial proveitoso. Superadas todas essas batalhas, diria ele aliviado:
- Depois de tudo isso que passei, vou voltar a "curtir" a noite de São Paulo.
Muito tempo depois eu o encontro num restaurante italiano, sozinho, magro como sempre fora, a espera da comida, tendo a frente uma garrafa pequena de vinho. Deixara de fumar, ele que era inveterado. Depois dos cumprimentos, cada um dizendo o que fazia, pergunto:
- Como vai a noite de São Paulo?
- Não há mais essa de noite em São Paulo. Fico a maior parte do tempo em casa lendo. As mulheres da noite são incapazes de soletrar sequer o abecedário, seu próprio nome, respondeu ele contrariado.
Na verdade, dera-se conta de que os tempos mudaram e que ele mudara.
Havia algo mais, uma ponta de decepção. Não encontrara Maria Benedita, uma mulata vistosa, dentada, que soube estar presa injustamente como traficante, num pequeno presídio feminino numa cidade que sequer gravara o nome, a uns 200 quilômetros dali, com quem tivera (ou pensara ter) algo além do simples prazer sensual naqueles tempos.
Soubera por acaso, ao cortar caminho por aqueles fundos da avenida São João e pelo bairro Santa Cecília. Dera de cara com uma antiga conhecida que morava por ali, escondida num apartamento sombrio:
- Ela vivia bem com um sujeito decente que era traficante. Ela nunca desconfiou. Um dia a polícia bateu na sua porta e encontrou um pacote de droga escondido sobre a caixa d’ água do banheiro. Foi injustamente acusada de cúmplice...
Voltou para os livros e para a solidão.
- As mulheres de seu tempo, mesmo frequentando os inferninhos eram diferentes? Eram?
Não respondeu.
- Solidão com livros é solidão? insisti como forma de apoio. - E afinal, você conseguiu ler inteiro o Ulisses de James Joyce? emendei, as mil páginas do livro que da última vez que falei com ele, há tempos, reclamava que a obra era chata mas que a leria até o fim de qualquer jeito.
Olhou-me fixamente, um sorriso amarelo como resposta.
Começara a se dar conta que aqueles tempos haviam morrido - e ele próprio.
Fui para outra mesa.
Ele saiu em silêncio sem um sinal de despedida.
Nunca mais o vi.

Figura: Artista João Werner
Foto da avenida São João - cdcc.usp.br (Google imagens)

Um comentário:

Marisa Bueloni disse...

Parabéns pelo texto. É!... Os tempos mudam. Como diria um amigo querido, "o tempo é o roedor silencioso de todas as coisas"...
Contudo, que algumas épocas passem e morram... mas que nós continuemos vivos, pessoas do nosso tempo, cheios de fé esperança! Um forte abraço da Marisa Bueloni