24/04/2011

DA VAIDADE AO PÓ (Reflexões sobre a "terra prometida")


"E disse-lhe o Senhor. Esta é a terra de que jurei a Abraão, Isaque e Jacó, dizendo: A tua semente a darei: mostro-ta para a veres com os teus olhos, porém para lá não passarás.
Assim, morreu ali Moisés, servo do Senhor, na terra de Moabe, conforme ao dito do Senhor,
E o sepultou num vale, na terra de Moabe, defronte de Bete-Peor, e ninguém tem sabido até hoje a sua sepultura" (Deut. 34, 4,6)


Efetivamente, no que concerne a mim, não sou alguém religioso no sentido tradicional. Mas, por vezes, me assaltam algumas indagações.
Eis que, rodando ao acaso o controle remoto da televisão, assisti às cenas finais de um filme em que era encenada a morte de Moisés que, diante do comando de Deus, teria mesmo se irritado com Ele –“cruel” -, atitude que parece ser fantasiosa à luz do relato bíblico. A abertura destas reflexões narram o fim de Moisés, assim decidido por Deus porque ele "prevaricara", segundo a Bíblia.
Ocorreu-me, então, melhor refletir sobre essa passagem bíblica.
Com efeito, ao longo de nossa vida, deparamo-nos com pessoas especiais que fazem diferença no mundo, com tarefas exemplares realizadas em prol dos semelhantes, outras com idéias beneficamente influentes e que, por uma contingência qualquer ou naturalmente, morrem abruptamente.
Deixam inacabadas as grandes obras começadas ou permanecem indeléveis na memória de todos, por tudo o que fizeram ou que pensaram e transmitiram. Seu passamento gera, às vezes, grandes comoções coletivas. As pessoas de um modo geral, têm a sensação de perda, decorrendo daí aqueles comentários chavões, mas nem por isso insinceros: "o mundo ficou mais pobre com a morte de fulano"; "foi-se fulano, ficaram as obras". E assim por diante.
Cada um que, neste instante, se puser a pensar, encontrara alguém com esse qualificativo cujo passamento gerou alguma ou muita emoção.
E essas perdas de valores humanos, a obra inacabada que deixam, tornam "injusta" a morte, dolorosa, pranteada.
Mas, certamente, toda obra, por menor que seja, deixa alguma lição: o pai transmite ao filho lições de solidariedade, o filantropo por seus atos desprendidos de caridade, de resignação que um modesto servidor dá a cada dia na execução de seu trabalho mais humilde, pelas palavras de encorajamento que alguém proferiu para amenizar a angustia do amigo...
E apesar de tudo, muitas dessas pessoas que fazem diferença, acabam por não ver a "terra prometida" e desaparecem da vida como que por encanto e, a maioria delas, no pó, acaba sendo mesmo esquecida e "ninguém mais saberá de sua sepultura".
Que é conscientemente difícil aceitar esse "jogo da vida", não tenho a menor dúvida.
Mas, não teria a passagem bíblica relatando a morte de Moisés antes que pudesse adentrar à "terra prometida" também esse significado ? De que de nossas obras, grande ou pequenas, ficam as sementes para serem plantadas ou usufruídas num processo permanente de renovação, pelos nossos descendentes ou pelos nossos semelhantes para continuá-la ?
Moisés, que tanto fizera pelo seu povo, fora privado de adentrar à terra prometida, embora lhe fosse dado vê-la, "apenas" porque prevaricara perante Deus.
E isso com Moisés. Quanto a nós, qual o grau de prevaricação que temos perante Ele?
Eis porque, mesmo para as figuras humanas luminares de nossos dias e de todos os tempos, muitas não ficam para ver o resultado final de sua obra, isto é, não chegam até à "terra prometida", sequer a vêem, a virtual recompensa que poderia advir pelo esforço empreendido.
Talvez porque tudo por aqui seja "vaidade de vaidade".
Até para Moisés isso fora demonstrado, aparentemente por um capricho de Deus. Porque os exemplos e as obras ficam para a posteridade, tal qual sementes plantadas. E ao germinarem, não necessariamente será identificado ou lembrado o semeador.

Uma contradição que constatei? Sintetizada nestas linhas extraídas de poema:

"Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...”



Foto: A “mão de Deus” sobre a cidade minúscula, “ameaçada” (ou protegida?) pela tormenta que chega (Foto de Milton Pimentel Martins – v. Galeria Mirtão no Flickr)

Um comentário:

Camilo Irineu Quartarollo disse...

Milton, venho com todo o respeito comentar em seu blog - saúde! Gostei desta postagem e Moisés era gago e tinha temperamento forte. Bateu duas vezes na pedra para sair água no deserto e Deus disse para bater uma vez só. Estava cansado do povo, de Deus e de ser líder. Também não devia ser muito fácil. O irmão, Arão, foi denominado AArão pela gaguez dele que era mal orador e mesmo assim trouxe o decálogo, abriu o mar vermelho, "mas não sabia nadar, rsrsrs". Para Deus nada é impossível e detrás destas limitações sabia que existia um homem fora do comum. Mas me vi na frase sua: de resignação que um modesto servidor dá a cada dia na execução de seu trabalho mais humilde.
Abç
Camilo