03/03/2012

VALORES E PENSAMENTOS QUE DESAFIAM (e até “incomodam”)

Esta crônica, escrita em dezembro de 1998, que contém “valores ideais”, em cada instante se chocam eles com o dia-a-dia do próprio cronista atônito. Ela antecedeu à crônica, “Dos sem religião – Aqueles que acreditam mas não professam” de 27.02.2009. Foi nessa crônica que me proclamei "agnóstico moderado". Contradições que assumo porque nada sei.

Um brocardo popular consagrado, que insere certo chamamento para as coisas da vida diz: "deste mundo nada se leva".
De tal simplicidade, constitui-se num verdadeiro axioma. Da matéria nada se leva: deixam-se aqui somente lembranças, intensas ou não, segundo a forma de viver imprimida pelo desaparecido. (1)
E são exatamente esses aspectos que chamam a atenção para uma maior reflexão. Ao longo dos séculos o homem, à medida que vai adquirindo conhecimento dos fenômenos exteriores, acaba se questionando sobre algumas perguntas que, para muitos, tornam-se angustiantes: "Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?" (2)
Essas indagações que se manifestam na interioridade do ser humano, encontram-se nos escritos sagrados de diferentes correntes religiosas e filosóficas e de filósofos do calibre de Confúcio, Platão, Aristóteles... (3).
E acima de tudo, mais que uma recomendação, quem sabe um apelo, a inscrição "conhece-te a ti mesmo", esculpida no arco superior (dintel) do templo de Delfos. (4)
Essas questões maiores, porém, parecem estar reprimidas na intimidade de cada um. Demais, essas reflexões quando assomam tendem a elevar a mente perplexa para uma indagação ainda superior que se perde no silêncio: quem é Deus?
Mas, neste mundo em que os interesses maiores são as proposições econômicas e a sobrevivência, o dia-a-dia, o que já não é pouco, tais valores e mesmo Deus, têm ficado em segundo plano.
Daí decorrem duas situações que podem ser comparadas a episódios bíblicos: a adoração do "bezerro de ouro" pelos judeus, enquanto Moisés conversava com Deus no Monte Sinai e a "confusão das línguas" em Babel.
Embora se reconheça que haja uma intensa procura pela espiritualidade no mundo pelas religiões que nascem, vem predominando, ainda e há muito, agora com maior ênfase, a linguagem do dinheiro, dos índices das bolsas de valores, o "bezerro de ouro" e, claro, resultando na confusão, no desentendimento, na angustia entre os países. Confusão das línguas...
Nestes tempos, esses valores superiores têm sido invocados tão somente naqueles minutos que duram um ato religioso, um sermão, uma meditação. A partir daí, porque não há tempo para questionamentos em profundidade, ao dar-se de ombros para o "conhece-te a ti mesmo", volta-se para o mundo do chão batido, dos juros e dos rendimentos.
Mas, a 'língua universal' que traz a compreensão, é a da espiritualidade, do amor e da solidariedade. Com certeza aquele que se esforça para cultivar esses valores sabe que seus compromissos não se encerram num momento de oração. Ele agirá com esse sentimento não só perante seus semelhantes, mas também amando a natureza, que alguns chamam de "mãe".
Os desvios de valores, o cavoucar no garimpo da riqueza vazia, tem trazido também imensos prejuízos ecológicos à fauna, à flora, à atmosfera, aos rios e oceanos que recebem cada vez mais imensas cargas de detritos e poluentes, em quantidade tal que impede a química natural da recuperação: "Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele". (5)
Esses todos que superam as agruras do cotidiano, precisam falar abertamente em amor, solidariedade, na falta que Deus vem fazendo nas relações entre os homens e na preservação da natureza, no respeito que merecem todos os seres que ela protege galhardamente, a despeito da ação destruidora do homem.
Será neste mundo, que nos conheceremos a nós mesmos se assim desejarmos ou nos esforçarmos. Por isso, deveremos cuidar que haja um sentimento equilibrado para que as gerações futuras o herdem. Há tempo ainda.
Porque à nossa volta há ainda resquícios do paraíso - imerecido - que foi este chão que estão sendo gradativamente destruídos por nós, agressores inconsequentes, mal-agradecidos, decaídos.
Mas, o "conhece-te a si mesmo" é um apelo à reflexão sobre esses valores que assaltam a alma com menor ou maior intensidade, porque aqueles outros do mundo ao alcance da mão nada levaras. “Tenho dito”.

Legendas:


(1) V. “Da vaidade ao pó (Reflexões sobre a “terra prometida”) de 24.04.2011.
(2) V. “Enigmas, penitências, I Ching” de 05.02.2012.
(3) Encíclica “Fé e Razão” do papa João Paulo II
(4) Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o funcionamento do oráculo (de Delfos). Descreveu as relações entre o deus, a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu instrumento e o pneuma (gás, vapor, respiração, daí as nossas palavras “pneumático” e “pneumonia”) ao plectro (varinha para vibrar a lira) com o qual ele a tocava para fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um elemento que desencadeava o processo. De fato, era o treinamento prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.
Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma. Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido, “como se viesse de uma fonte”, no ádito (no caso, câmara sagrada) em que a pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma na antecâmara onde aguardavam as respostas.
A ÚNICA REPRESENTAÇÃO (acima) da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.
A peça foi feita por um oleiro ateniense em torno de 440 a.C.

Fonte: http://www.philosophy.pro.br/oraculo_de_delfos.htm.
V. “Minha entrevista com Sócrates” de 16.10.2011
(5) Papa João Paulo II, Carta Encíclica "Centésimo Ano" de maio de 1991.

Foto:
"O Pensador" (francês: Le Penseur) é uma das mais famosas esculturas de bronze do escultor francês Auguste Rodin de 1902 (Paris). "Retrata um homem em meditação soberba, lutando com uma poderosa força interna." (Fonte: Wikipédia)

Um comentário:

Marisa Bueloni disse...

"Conhece-te a ti mesmo"... Continuamos nos perguntando: quem sou, de onde venho e para onde vou? É a eterna pergunta do coração humano... O homem nunca me pareceu tão perdido como hoje, dr. Milton. E ainda acredito que DEUS é a resposta para tudo. Parabéns pelo texto. Abraços da Marisa Bueloni