07/08/2010

REGRESSÃO (i)

Os tempos de infância lembrava-se saudoso, também por influência do Natal próximo. Chegara aos 80 anos com incrível lucidez e disposição. Quando lhe perguntavam qual o segredo, não saia muito daquelas respostas normalmente atribuídas a outros idosos: "muito vinho e alegria”, "comi tudo que tinha direito”.
Sua resposta era:
- Não fumei jamais, bebi vinho, quando o vinho era bom e ando bastante, me acerto bem em áreas verdes, pássaros, essas coisas. De há muito minha dieta de carne é quase nula. Se isso for realmente uma receita de longevidade, não sei. Mas, eis-me aqui. Mas, há outros idosos com mais idade do que eu que vivem bem.
Nas suas meditações sobre a longa existência, retornava à juventude e mesmo à infância, sem qualquer rigor cronológico.
Nesses momentos, entrava num processo nostálgico, saudoso, até um pouco confuso. Sua infância relativamente feliz - sua mãe falecera quando ele tinha 9 anos - eram imagens que voltavam à sua mente. Pareciam um sonho. Será que não eram mesmo? Momentos de felicidade, geralmente fugazes, não ficam na mente como um sonho? E seu pai que chegava até ele, nas lembranças, como alguém rigoroso mas que era dotado de muita generosidade.
Coisa estranha envelhecer :
- Sermos sempre nós mesmos e, no entanto, não sabermos explicar, ou entender esse evento irreversível da velhice e mesmo da morte, costumava repetir.
Se dizia vivendo o presente mas havia alguns eventos que lhe martelavam a mente e o coração.
Uma semana antes do Natal, tomara uma decisão: de trem, meio em segredo para não despertar os cuidados dos filhos e netos - era viúvo - voltaria à cidade natal e, no casebre onde tivera uma inesquecível experiência em sua infância, faria uma oração ao Natal e homenagearia sua mãe. Seria como que uma despedida daqueles velhos tempos de ternura que ainda o emocionavam tantos anos depois.

Sim, seria bom fazer uma oração no casebre, velho casebre se ainda preservado, sombreado por três ipês muito antigos.



Lembrava-se bem. Num dia próximo do Natal, chuvoso, refugiara-se no casebre para chorar a morte recente de sua mãe. Num dado momento, porém, em vez de estar encostado na rústica parede da pequena habitação, escapando das gotas de chuva que desciam pelo telhado mal conservado, viu-se recostado no colo de sua mãe, recebendo dela, carinho, beijos na têmpora e frases de que onde se encontrava, não estava morta e, de lá, zelava por ele.
Não se assustou com a visita de sua mãe. Somente as crianças, naqueles tempos em que crianças eram crianças, podiam compreender momentos como esse. E não chorou mais, porque sua mãe, lindíssima, sem as marcas da insidiosa doença que a consumira, assim pedira.
Com tudo isso em mente, tentaria retornar ao casebre, junto de suas árvores para a oração. Certamente a última visita àquelas paragens onde fora feliz ao lado dos seus pais e irmãos.
No dia seguinte, bem cedo, com sua velha Bíblia na mão, conforme planejara, tomou o trem, rumando para sua cidade. Deixou um breve bilhete para sua filha. Viagem longa para sua idade, cansativa, suportada, porém, pela sua disposição conseguida por quilômetros de caminhadas regulares.
Chegou à tarde. Apressadamente, para aproveitar o sol, tomou o ônibus que o levaria àqueles sítios de sua infância.
Depois, pensaria no pernoite, provavelmente na casa de um sobrinho, se houvesse tempo para localizá-lo. Caso contrário, o hotelzinho da cidade seria a solução.
Mais uma hora de viagem, eis que chegou ao ponto de desembarque. Desceu ansioso do veículo, notando que havia, ainda, muitas paisagens de sua época. O riacho que agora abastecia a cidade, embora mais poluído, lá estava a igrejinha da comunidade num ponto mais alto, branca, e todos aqueles sítios.
Caminhou a pé até a propriedade que fora um dia de sua família. Quando venceu a pequena subida, algum sentimento de perda antecipadamente lhe apertava o coração.

A decepção fora terrível. Não encontrou mais suas árvores velhas, mal reconhecendo o local do casebre. Uma estrada de ligação de sua cidade, com a rodovia principal passaria por ali.


Com profunda mágoa, aproximou-se do local onde certa vez fora consolado por sua mãe quando chorava sua morte, sem dar atenção às máquinas ruidosas que se movimentavam, emocionado ajoelhou-se no chão de terra batida onde estaria o casebre.
E mais uma vez chorou emocionado. Sob os olhares atônitos dos operários simples que ali estavam, máquinas gigantes paradas em sua volta naquele chão batido, sem grama ou eras, sem os seus ipês...
Abriu ao acaso sua velha Bíblia, o mesmo gesto que sua mãe lhe ensinara um dia e, em Isaias 60:18, leu em silêncio o versículo que recebera:
"Não mais se ouvirá de violência na tua terra, de assolação ou desmoronamentos dentro dos teus termos. E certamente chamará as tuas próprias muralhas de Salvação e os teus portões de louvor".


Foi levantado por um jovem operário negro que operava uma daquelas máquinas enormes e com delicadeza o afastou dali:
- Falo com o engenheiro e levamos o senhor para a cidade.
As máquinas voltaram a funcionar e movimentar a terra. Havia muito que aterrar e muito que enterrar. Emocionado, confuso, se dera conta disso.

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