30/09/2012

AMEAÇAS POLÍTICAS NO INÍCIO DA DÉCADA DE 60




[Esta crônica tem pontos políticos, que situo entre realidade e ficção: a crise dos mísseis há 50 anos, autores influentes, contracultura e, sobretudo, saudades. A música "São Francisco", cantada por Scott Mackenzie. A crônica faz parte de um texto maior engavetado por causa da preguiça.]

Voltava com frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo na rua Silva Bueno, numa pizzaria famosa. Era muito frequentada.
Ela marcara um pouco a minha vida porque a frequentara desde a adolescência, naquelas noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas discussões se prolongavam até a madrugada, transferidas na volta para os baixos do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor qualquer, os mais radicais ingerindo um destilado, conhaque de preferência, bebido ali mesmo no bar anexo.
Vivia-se num certo clima de ingenuidade. Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade, de Deus. Eram os Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual e, com ela a promiscuidade, o V de “paz e amor”... contracultura, anti-guerra do Vietnã, hippies, anti-status quo.

Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60 para mim e para quem deles usufruíram, que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com incrível nitidez.
De tudo aconteceu naquela década
 Ao lado dessas experiências maravilhosas numa época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos tecnológicos nos rumos do espaço, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os Estados Unidos...

Tinha em mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O presidente soviético, Nikita Khruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas, com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima. Eram imagens!
A séria crise dos mísseis em 1962, no embate havido entre Kennedy e Khruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas potências, para aqueles meus idos de adolescência, fora a coragem de Kennedy que vencera os soviéticos.
O que se deu nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de aula, um velho professor de francês, o D., com seus gestos delicados que provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa numa noite começara a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou ele:
Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west, mais où tout le monde meurt. Vous avez déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit? (*)
Silêncio.
- Alguém entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre os Estados Unidos e a União Soviética.
 O professor riu muito o que raramente fazia. Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do perigo, o conflito prestes a eclodir e, na sua cristandade, assegurou que tudo se resolveria com a intervenção divina.
 Kennedy fizera concessões aos soviéticos (não invadir Cuba e desinstalar mísseis na Turquia).
 Fora sua prudência que evitaria qualquer retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática. A ameaça nuclear foi afastada.
Aliás, segundo Kennedy, “a humanidade deve acabar com a guerra ou a guerra acabará com a humanidade”. Hiroshima e Nagasaki (Japão, agosto de 1948) que o digam!

Mas, até hoje continua uma ameça. Este símbolo trazia mensagem de paz e contra a guerra e o uso de armas nucleares.






Quando do atentado em Dallas, acompanhara com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. Emocionei-me às lágrimas.
A guerra fria depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no governo, mas não ainda no poder.
Tinha, quando ainda acadêmico, um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o I.:
- Esse comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói do nada. Um desastre. Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis, propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe nessa insanidade os argumentos dos ditadores para implantarem a ditadura.
Mas, os eventos políticos nos idos de 64, com a ameaça comunista se precipitaram, resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve festa e alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe. A propriedade estava salva.
Nestes tempos de agora, de incertezas me vem à mente com uma dose de saudade aquilo tudo que vivido nos anos 60.

Referências:
(*) Esse texto em francês foi reconstituído por quem tem domínio do idioma. Com minhas reticências no caso de alguma impropriedade.

A música “São Francisco” de autoria de John Phillips (do grupo Mamas and Papas) cantada por Scott Mackenzie:  “Se você for a São Francisco, lembre-se de usar flores em seus cabelos (Be sure to wear flowers in your hair) constitui-se um hino da contracultura da paz e do amor.

Por aqui, contemporâneo (1968), Geraldo Vandré com sua música “Caminhando (“Para não dizer que não falei das flores”) cuja letra era de contestação aos tempos cinzentos do regime militar. Tudo fazia parte do todo.

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