01/08/2022

VOCÊ ACREDITA EM DESTINO? (*)


Fixado no horizonte do “interiorzão” que não chove, ar seco, sou acordado com um leve tapa nas costas.

- O destino provocou este reencontro depois de tantos anos.

Nem sabia o nome do meu “destinado” não o reconheci.

Ele se reapresenta. Sou o F. do Colégio…

Com muito esforço me veio uma imagem jovem, um estudante já acadêmico, então, agora mal vestido, barba por fazer. [Mal vestido? O “meu” pessoal diz que do jeito que ando, se estender a mão na rua posso até receber umas moedas].

- Ah, sim, me lembro agora. Você recitava marxismo naqueles tempos “perigosos” e agora vem falar em...destino?

Ele ri. Pergunto o que ele faz porque me parecera um sujeito muito culto naqueles tempos.

Me olha como se saísse dali, seus olhos se perdem no vazio, alguns segundos depois sem responder:

- Quando moleque, nas rodas adultas, não poucas vezes ouvi quem perguntasse aos interlocutores – “Você acredita em destino?” Você, não?

E prosseguiu:

- Os antigos também, com o inesperado da vida, se indagavam sobre o destino; se a vida, no essencial tinha desígnios fora do controle, as fatalidades.

Percebendo que estava eu atento:

- Olha não para complicar mas há duas tragédias gregas pré-socráticas que explanam sobre os efeitos do suposto destino, “Prometeu acorrentado” de Ésquilo e “Édipo Rei” de Sófocles. Nem falo de Sócrates com aquele seu sentido crístico. Uma coisa curiosa, ele rejeitou o suborno proposto por um discípulo para facilitar sua fuga de Atenas e da cicuta. Volto às tragédias. Prometeu fora acorrentado por ajudar, instruir os homens, os mortais, com uma série de culturas práticas de vida, inclusive o manejo do fogo. Zeus é apresentado como um deus cruel, vingativo, que castiga severamente Prometeu e quando este o desafia, mesmo acorrentado, seu castigo é agravado: o abutre do deus todo dia devoraria um pedaço do seu fígado - que é reconstituído durante o dia. Algo como o inferno de Dante, castigo eterno. Quanto a Édipo, o Oráculo de Delfos previra para o menino uma tragédia bárbara: mataria o pai e se casaria com a própria mãe. Fora, então, abandonando numa várzea, salvo por um pastor e, com o decorrer da vida, esse “destino” se realizou: matou seu pai e se casou com Jocasta, sua mãe. Dessa tragédia sairia o complexo de Édipo de Freud.

Pensou um pouco e foi concluindo:

- Claro que são peças teatrais mas elas atravessam os séculos, 400, 500 a.C. Quanto há de reflexão nisso?

- Pois bem, disse eu, eu tenho comigo uma tragédia que bem jovem muito me emocionou. Pois foi assim. O menino era apelidado de Bila, Quantos anos, quatro ou cinco? Quase todos os dias pela manhã, tomava seu café e saía à rua, sentava-se na guia e comia sua fatia de pão com manteiga.

Naquela manhã, ninguém sabe de onde, foi atacado por um cachorro louco – mas louco mesmo! O cachorro doente teve que ser morto e o foi com um taco de baseball arrumado na hora. Os ferimentos no rosto do Bila foram tão graves que ele não resistiu e faleceu poucos dias depois. Veja, um menino tão jovem com um destino tão trágico? Que emocionou tanto!

- Ah, meu caro, Sócrates, não sei se defendendo ideias de Platão admitiu a imortalidade da alma e os renascimentos sucessivos. Saiba, então, que no Evangelho de João, quando Jesus cura um paralítico ele o adverte: “não peques mais, para que não te sucedas coisa pior”. Em que momento da vida do paralítico “coisas piores poderiam acontecer”? Afinal ele fora curado havia pouco… e perdoado. Se a alma é imortal… há “dívidas contraídas” para serem saldadas nalgum tempo? Pode ser um castigo ou um aprendizado. Talvez o menino tivesse um “saldo” de vida a completar com uma tragédia. Observe em sua volta as diferenças nos semelhantes. Olha, meu caro, você acredita em destino? Responda aí. Vou saindo porque não estou agradando.

Usei meu chavão:

- Sabe duma coisa? Não explico sequer o sabor duma manga, o espocar duma rosa. Nada sei do essencial da vida…

F. riu, e quem sabe? e rapidamente saiu do meu campo de visão como uma sombra.





(*) Publicado na Revista “O Ginasiano” nº 41 de agosto de 2022.

Acessar: https://online.fliphtml5.com/umpdp/niwr/?1659322162764



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