Dedicado ao amigo Caio Venâncio Martins
i – Os tempos do Satriani no Ipiranga
Voltara com frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo, na rua Silva Bueno, por muitos anos, numa pizzaria famosa.
Ela me marcara porque a frequentara desde a adolescência, naquelas noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas discussões se prolongavam,transferidas na volta da pizzaria, naqueles sábados estendidos, até as primeiras horas da madrugada para o bar nos baixos do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor qualquer, os mais afoitos ingerindo um destilado, conhaque de preferência.
Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade e de Deus, debatendo-se a reecarnação e o sentido da vida. Eram os tempos dos Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual e, com ela a promiscuidade, misturado ao V de “paz e amor”...
Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60, para quem deles usufruiu, que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com incrível nitidez.
ii. Tempos de maravilhas e perigos
Mas, ao lado dessas experiências maravilhosas numa época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos tecnológicos nos rumos do espaço, iniciados pela União Soviética, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os Estados Unidos...
Tinha em mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O presidente soviético, Nikita Kruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas, com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima.
A séria crise dos mísseis – que começaram a ser instalados em Cuba, mirados para os Estados Unidos -, em 1962, no embate havido entre Kennedy e Kruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas potências, para mim fora a coragem de Kennedy que vencera os soviéticos.
O que se deu nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de aula, um velho professor de francês, o Deleo, com seus gestos delicados que provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa numa noite começaria a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou ele:
Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west, mais où tout le monde meurt. Vous avez déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit?
Silêncio.
- Alguém entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre os Estados Unidos e a União Soviética.
O professor riu o que raramente fazia. Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do perigo, o conflito prestes a espocar e, na sua cristandade assegurou que tudo se resolveria com a intervenção divina.
Kennedy fizera concessões aos soviéticos. Fora sua prudência que evitaria qualquer retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática. A ameaça nuclear foi afastada.
Quando do atentado em Dallas, acompanhei tudo com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. A emoção se irradiou pelo mundo, perplexo com a brutalidade do atentado.
iii. Política e repressão
A guerra fria depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no poder, mas não ainda no governo.
Os eventos políticos em março de 1964 se precipitaram, resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve comemoração e alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe.
Tive um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o Isaque:
- Esse comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói do nada. Um desastre. O que significou a “Coluna Prestes” se não uma fanfarrice? Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis, propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe na sua insanidade os argumentos dos ditadores tanto de Getúlio como dos militares em 1964 para implantarem a ditadura.
À medida que os militares se consolidavam no poder mais a oposição era retaliada. Políticos eram cassados, os sindicatos esvaziados, prisões políticas se tornaram rotina e os movimentos de rua reprimidos.
iv – Grupos armados
Não demoraria muito, e grupos armados se organizaram opondo-se ao golpe militar, iniciando-se uma luta surda e sórdida nos bastidores. Nos porões dos órgãos oficiais de repressão, a tortura selvagem se tornara uma prática comum. Brutal. Mas, claro que não havia santos do lado dos grupos clandestinos armados.
Jovens e estudantes inteligentes se uniram a esses movimentos alimentando um ideal ambíguo de desforra impossível. De mudar o país com o povo unido. Ideais sem povo, porém, e ideologias que não diziam respeito a muitos daqueles que aderiram à luta armada. E, pior, tombaram sem bandeira e sem razão. O estilingue contra o canhão. Essa luta armada, no fundo, dera munição aos militares para o endurecimento do regime e o “vale tudo” da linha dura fortalecida na atividade repressiva.
Parece que o medo de serem descobertos nos seus esconderijos, porque esses “soldados armados” viviam na clandestinidade, fora das piores torturas. E a elas as torturas físicas de que foram vítimas. É que certo tipo de experiência embrutece e descolore os ideais por muito tempo ou para sempre. Muitos conseguem “dar a volta por cima”, recuperar a integridade enquanto outros mantêm na sua interioridade, um sentido de ruína por todas as tensões quando descobertos e presos, pela violenta tortura física e moral a que foram submetidos, aqueles choques elétricos que revolvem o espírito para sempre.
Não foram muitos os que se decidiram por aquele caminho belicoso incluindo os que rumaram meio às cegas, mas vários foram os militantes que se deram mal. Entregaram a vida. Esse tipo de oposição fora instituída num momento de arrogância militar. Um erro de estratégia. Haveriam esses opositores que esperar o momento começando por discutir idéias nas oportunidades que surgissem. O regime militar haveria que se enfraquecer como resultado de suas próprias mazelas. Cairia de velho. O sindicalismo no ABC, mais tarde, tivera essa percepção ou agira do modo como se toma a sopa, enchendo a colher pelas bordas, saboreando-a e dera sua contribuição para a queda do regime militar.
Já disse que em outra crônica, mesmo com o esquema radical de censura, beirando o ridículo nos seus atos de desaprovar manifestações literárias e artísticas, houve nessa década um razoável nível de criatividade, uma intensa atividade cultural e musical.
v – Derribados e sobreviventes
Na luta armada se envolveu um amigo. No começo fora difícil acreditar, pela sua sensibilidade e pela sua inteligência.
Poeta talentoso, cronista e contista que mexia um pouco com os meus cotovelos, na verdade minha convivência com ele, nos tempos do colegial, não fora fácil, não só pelo seu talento, como por suas explosões e demonstração de valentia dando vazão à sua personalidade contraditória. Mas, essas atitudes ambíguas, inseguras, seriam, também, um grito interior resultado de sua própria repressão pessoal que de certa forma, em todos se manifestava com maior ou menor intensidade. E talvez pela sua origem humilde, ele que vivia num bairro modesto na periferia. O colégio onde estudávamos, embora público, concentrava, em boa parte os herdeiros da elite da cidade.
Um professor, já então usando barba espessa à moda de Fidel Castro tinha por hábito fazer pregações de natureza política contra os militares no recreio do colégio.
Algumas dessas pregações ouvi por acaso porque não era mais aluno do colégio, e já começava a me preparar para a faculdade de direito.
Para mim, ainda mantendo resquícios de um sentimento anticomunista em linha com o golpe militar – que não demoraria a se desvanecer -, sabia da notória desinformação entre a maioria dos alunos daquele professor sobre o ambiente político e a repressão que poderia gerar se pegassem em armas. Não sei se sua pregação resultou em alguma adesão. Acho que não.
Esse professor engajado na luta armada não sobreviveria, sendo morto pelas forças da repressão em 1974.
Mas, aquele meu amigo, o poeta talentoso que ingressara na Faculdade de Direito não demoraria a se engajar na “luta contra a ditadura”, mas a partir dos bancos do Largo de São Francisco.
Fugindo do país, vivendo antes a tensão de ser descoberto ou denunciado, passando pelo Uruguai, por Cuba e França, conseguiu trabalhar regularmente na então Alemanha Oriental.
Retornou ele a salvo e hoje escreve crônicas e poesias admiráveis. Sua sensibilidade pela sua experiência e até pelo remédio do tempo, fora aguçada. Sobrevivente, vive da inspiração.
Revirando papeis daqueles tempos encontrei um poema que ele escreveu ainda como estudante do antigo clássico:
"Somos assim como mares profundos,
praias desertas, que quando assoladas
recobrem com areia as pegadas
da vida passada em outros mundos."
vi – “Lindo sonho de amor que tão cedo acabou"
Num jornalzinho do Grêmio – entidade dos estudantes do colégio-, encontrei de sua autoria uma espécie de poesia sobre alguns alunos de nossa classe a qual denominou "ABC da turma brava".
Transportando-me exatamente para aqueles dias, bate nos meus ouvidos uma música romântica que, infelizmente, não sei o autor e menos ainda o cantor que tinha o seguinte trecho: "Ah, lindo sonho de amor, foi o nosso romance que tão cedo acabou..."
É que, na nossa classe comum, havia algumas garotas que se destacavam pela sua beleza. Uma, injustamente, era apelidada de "Bolinha" porque, dizia-se, fora gordinha.
Nesse clima e pela minha participação estudantil forte tive alguma aproximação com ela.
Seus interesses estavam definidos, principalmente ingressar numa faculdade de renome, não só pela sua inteligência como aplicação nos estudos. E nesse objetivo, obtivera sucesso.
Certo dia em plena aula, como péssimo aluno que fora, comecei a fazer "graças" sem qualquer graça talvez querendo impressioná-la. Eis que ela já aborrecida ameaçou-me:
- Se você não parar com isso atiro-lhe este livro.
- Quero ver, disse eu duvidando.
Desafiada, ato contínuo, o livro veio em minha direção, sem qualquer conseqüência.
Claro que o livro voando pela sala, resultou num "zum, zum, zum" porque fora um plena aula, incidente logo esquecido. Encerrou-se o ano e o curso e cada um foi para um lado.
Eis que no seu "ABC da Turma Brava" esse episódio fora registrado assim:
"Diz um "M" que é de MM...
rapaz que nunca sai da linha,
e quando tentou levou foi mesmo
uma livrada da Bolinha".
Estais achando uma extrema pieguice?
Mas, saibas, foi “um lindo sonho de amor que tão cedo acabou.”
26/04/2009
19/04/2009
VERSOS PARA NINGUÉM (I) (Dias de ingenuidade)
Sei bem que o “novo sempre vem” mas há apenas momentos do passado que amo. Uma paráfrase parcial da música de Belchior ("Como nossos pais") interpretada de modo arrepiante por Elis Regina. Quanto ao novo, ontem já está envelhecendo nesse caminhar célere dos dias e da própria vida.
A crônica de hoje, de regra, como outras, também baseada em fatos reais. Destaco “reais” porque o Aurélio ensina que fato é “aquilo que realmente existe, que é real.” Assim, se é fato...
A década de 60 é considerada “de ouro”. Fora uma divisora de águas, entre a década de 50 de afirmação, ainda com ranços do pós-guerra, o esquentamento da guerra fria que quase resultou num conflito nuclear em 1962 entre os Estados Unidos e União Soviética e o intenso progresso que eclodiria a partir dos anos 70. Um passo antes, em 1969, os americanos alcançaram a Lua, naqueles tempos em que os Estados Unidos haviam decidido obter (ou manter) a liderança tecnológica e científica no mundo minimizando a influência soviética. Também em 1969 com a interligação de quatro universidades americanas, possibilitou que professores e pesquisadores se comunicassem por precários computadores, em rede.
Quanto mudou o mundo a partir daí!
Mesmo os anos da ditadura que começaram em 1964 não impediram intensa criação artística. Basta lembrar os momentos célebres da “jovem guarda” e suas músicas açucaradas, românticas. As músicas geniais de Tom Jobim desde os primórdios da bossa nova. Mesmo Chico Buarque nessa década não se destacara por suas músicas com temas “sociais” e de revide velado aos atos da ditadura. "Olê, olá" é de 1965, a “Banda" é de 1966.
Pois bem, a cidade de São Caetano do Sul, nesses tempos dourados destacava-se pela intensa atividade cultural, artística, política e social. Inigualável.
O movimento estudantil empolgava e eu fiz parte dele fortemente.
Foi nesse caldo de cultura que aliado a um outro estudante, Emerson Marcon, ambos “doidos”, vivendo intensamente – mais não “vivi”, porque infelizmente ninguém me avisou, e nem poderia, como aquilo tudo era bom demais e que nunca jamais se repetiria – elaboramos uma cartilha de poesias, imprensa devidamente, arrumadinha, cujo título fora “Versos para ninguém”. A capa, um vulto mal atravessando uma porta transparente.
Com o tempo, com reservas pelas minhas “poesias”, porque feitas para preencher o tal livreto, sem inspiração e quase zero de transpiração, eis que anos depois, encontro uma delas transcrita num jornal interno de uma multinacional de eletrônicos. Claro que uma surpresa considerando a maneira como fora ela composta.
Tenho um amigo naquela cidade com quem militei na pequena imprensa, brilhante advogado, já antigo, pouco mais do que eu, João da Costa Faria, que me dizia – e se não disse, está dito – que tudo que publicamente se escreve, nunca se sabe onde vai parar o texto.
Essa “poesia” piegas demais foi exemplo efetivo disso. Ei-la:
Louvemos o homem que ri
Sem vaidade,
Admiremos o homem que fala
Sem hipocrisia
Respeitemos o homem que chora
Pela verdade,
Citemos o homem que estampa
Humildade
Louvemos o homem desiludido
Que perdoa
Admiremos o homem que perde
E reinicia
Respeitemos o homem que ama
E chora
Citemos o homem honesto
E feliz.
Louvemos o homem doente
Sem desânimo
Admiremos o homem pobre
Que trabalha
Respeitemos o homem que é rei
E modesto
Citemos o homem rico
E simples,
Louvemos o homem feliz
E otimista
Admiremos o homem paciente
Que espera,
Respeitemos o homem cansado
Que repousa
Citemos o homem que morreu
Mas viveu.
As virtudes que se inserem após cada louvação, fazem desse homem um super-homem. Utopias e esperanças naqueles tempos de transição, uma espera para qual lado caminharia a mente dos homens e o próprio mundo. As coisas, como se vê hoje, não caminharam bem: recrudesce a truculência entre o “homo sapiens”, as misérias se multiplicam e o agravamento assustador da devastação ambiental. Quais as consequências que advirão desses atos? Tremo ao imaginar.
De Emerson Marcon selecionei “Peregrino Errante” uma de suas poesias que compôs o livreto citado:
Viajei as estradas da vida tal um peregrino,
Vaguei pela chuva, pelo sol, sem um destino...
Conheci o céu, a terra, o mar, a luz, os amores,
o pó, a lama, a dor, o fogo, o perfume das flores.
As minhas vestes se rasgaram nos espinhos
e os meus sonhos se esfumaram sem carinho,
na carne os espinhos cicatrizes deixaram
e n’alma tantas vezes os sentimentos se afogaram!
Deus! Quanto sangue verti pelas feridas
e as lágrimas choradas foram perdidas!
Agora que a conheci, encontrei o meu destino,
não mais na vida serei um errante peregrino!
Depois de vê-la o passado é nada,
chegou o peregrino no fim da jornada!.
INGENUIDADES
Acima, no título, falei de “dias de ingenuidade” que se inserem naqueles anos dourados.
Claro que atrás de certo recato, inimaginável nos dias de hoje, havia a angústia sexual, reflexo de sua demonização por séculos, pregação das várias religiões que repetiam conceitos que hoje se perderam.
Muitos padres, então, aos meninos e meninas que iam confessar, faziam a inevitável pergunta: “você fez coisas más?” Será preciso explicar o que sugeria tal pergunta?
Sobre isso, aqueles que se propuserem a ler as crônicas em “Poetas”, aquela primeira cujo título é “Poeta falsificado que rima rosa com prosa”, há a explanação dessa “angústia sexual” porque o vulcão reprimido mexia com a cabeça...e como mexia.
Deu no que deu, no eterno efeito do pêndulo que solto se desloca violento para o outro lado, arrebentando tudo. Nestes dias assustadores a truculência sexual se faz presente como nunca.
Mas, o momento é de amenidades. Animo-me, então, a transcrever crônica meio poética que reflete bem o espírito romântico daquela época tão preciosa:
Esmeralda sem rosto
A primeira futura ex-namorada. Em nome dela, em sua homenagem, num domingo chuvoso de paixão, perdido no tempo, formulara alguns versos com rima pobre:
Como são fortes, candentes
Os primeiros amores,
Ardentes
A primeira namorada
Dúvida amarga
Amada.
Toda essa relação apaixonada fora tão tímida, havia indecisão em se aproximar da possível futura namorada. Naqueles idos. Uma torcida para que ela passasse na mesma rua após as aulas, no mesmo horário, um encontro silencioso e ansioso.Estudante destacadíssima. Aceitaria?
Encontros forçados, à espreita numa esquina qualquer, uma paixão ardente. Inesquecível.
A imagem dela na bicicleta, descolorida, meio enferrujada, sem rosto, um vulto, de branco. A rua cinzenta, úmida da garoa havia pouco, vento gelado no rosto, o sobrado humilde desbotado, com muro baixo. Alguns gerânios vermelhos nos vãos e rosas vermelhas e amarelas no canto do jardim. Um buquê retorcido no vento.
Esmeralda. Lembranças. Tudo passou de repente. Só o amor sem rosto ficou.
Amor ou lembranças que se perderam no tempo, não sei bem! Um pouco dos dois. Há desses instantes que não se perdem. Ficam porque doces.
Fazia justa associação: uma espécie de La Esmeralda, a cigana, vulto deslumbrante de Victor Hugo no “Corcunda de Notre Dame”. Também sem rosto, deslumbrante, porém.
Ainda voltarei com versos e poesias. Um dia desses.
A crônica de hoje, de regra, como outras, também baseada em fatos reais. Destaco “reais” porque o Aurélio ensina que fato é “aquilo que realmente existe, que é real.” Assim, se é fato...
A década de 60 é considerada “de ouro”. Fora uma divisora de águas, entre a década de 50 de afirmação, ainda com ranços do pós-guerra, o esquentamento da guerra fria que quase resultou num conflito nuclear em 1962 entre os Estados Unidos e União Soviética e o intenso progresso que eclodiria a partir dos anos 70. Um passo antes, em 1969, os americanos alcançaram a Lua, naqueles tempos em que os Estados Unidos haviam decidido obter (ou manter) a liderança tecnológica e científica no mundo minimizando a influência soviética. Também em 1969 com a interligação de quatro universidades americanas, possibilitou que professores e pesquisadores se comunicassem por precários computadores, em rede.
Quanto mudou o mundo a partir daí!
Mesmo os anos da ditadura que começaram em 1964 não impediram intensa criação artística. Basta lembrar os momentos célebres da “jovem guarda” e suas músicas açucaradas, românticas. As músicas geniais de Tom Jobim desde os primórdios da bossa nova. Mesmo Chico Buarque nessa década não se destacara por suas músicas com temas “sociais” e de revide velado aos atos da ditadura. "Olê, olá" é de 1965, a “Banda" é de 1966.
Pois bem, a cidade de São Caetano do Sul, nesses tempos dourados destacava-se pela intensa atividade cultural, artística, política e social. Inigualável.
O movimento estudantil empolgava e eu fiz parte dele fortemente.
Foi nesse caldo de cultura que aliado a um outro estudante, Emerson Marcon, ambos “doidos”, vivendo intensamente – mais não “vivi”, porque infelizmente ninguém me avisou, e nem poderia, como aquilo tudo era bom demais e que nunca jamais se repetiria – elaboramos uma cartilha de poesias, imprensa devidamente, arrumadinha, cujo título fora “Versos para ninguém”. A capa, um vulto mal atravessando uma porta transparente.
Com o tempo, com reservas pelas minhas “poesias”, porque feitas para preencher o tal livreto, sem inspiração e quase zero de transpiração, eis que anos depois, encontro uma delas transcrita num jornal interno de uma multinacional de eletrônicos. Claro que uma surpresa considerando a maneira como fora ela composta.
Tenho um amigo naquela cidade com quem militei na pequena imprensa, brilhante advogado, já antigo, pouco mais do que eu, João da Costa Faria, que me dizia – e se não disse, está dito – que tudo que publicamente se escreve, nunca se sabe onde vai parar o texto.
Essa “poesia” piegas demais foi exemplo efetivo disso. Ei-la:
Louvemos o homem que ri
Sem vaidade,
Admiremos o homem que fala
Sem hipocrisia
Respeitemos o homem que chora
Pela verdade,
Citemos o homem que estampa
Humildade
Louvemos o homem desiludido
Que perdoa
Admiremos o homem que perde
E reinicia
Respeitemos o homem que ama
E chora
Citemos o homem honesto
E feliz.
Louvemos o homem doente
Sem desânimo
Admiremos o homem pobre
Que trabalha
Respeitemos o homem que é rei
E modesto
Citemos o homem rico
E simples,
Louvemos o homem feliz
E otimista
Admiremos o homem paciente
Que espera,
Respeitemos o homem cansado
Que repousa
Citemos o homem que morreu
Mas viveu.
As virtudes que se inserem após cada louvação, fazem desse homem um super-homem. Utopias e esperanças naqueles tempos de transição, uma espera para qual lado caminharia a mente dos homens e o próprio mundo. As coisas, como se vê hoje, não caminharam bem: recrudesce a truculência entre o “homo sapiens”, as misérias se multiplicam e o agravamento assustador da devastação ambiental. Quais as consequências que advirão desses atos? Tremo ao imaginar.
De Emerson Marcon selecionei “Peregrino Errante” uma de suas poesias que compôs o livreto citado:
Viajei as estradas da vida tal um peregrino,
Vaguei pela chuva, pelo sol, sem um destino...
Conheci o céu, a terra, o mar, a luz, os amores,
o pó, a lama, a dor, o fogo, o perfume das flores.
As minhas vestes se rasgaram nos espinhos
e os meus sonhos se esfumaram sem carinho,
na carne os espinhos cicatrizes deixaram
e n’alma tantas vezes os sentimentos se afogaram!
Deus! Quanto sangue verti pelas feridas
e as lágrimas choradas foram perdidas!
Agora que a conheci, encontrei o meu destino,
não mais na vida serei um errante peregrino!
Depois de vê-la o passado é nada,
chegou o peregrino no fim da jornada!.
INGENUIDADES
Acima, no título, falei de “dias de ingenuidade” que se inserem naqueles anos dourados.
Claro que atrás de certo recato, inimaginável nos dias de hoje, havia a angústia sexual, reflexo de sua demonização por séculos, pregação das várias religiões que repetiam conceitos que hoje se perderam.
Muitos padres, então, aos meninos e meninas que iam confessar, faziam a inevitável pergunta: “você fez coisas más?” Será preciso explicar o que sugeria tal pergunta?
Sobre isso, aqueles que se propuserem a ler as crônicas em “Poetas”, aquela primeira cujo título é “Poeta falsificado que rima rosa com prosa”, há a explanação dessa “angústia sexual” porque o vulcão reprimido mexia com a cabeça...e como mexia.
Deu no que deu, no eterno efeito do pêndulo que solto se desloca violento para o outro lado, arrebentando tudo. Nestes dias assustadores a truculência sexual se faz presente como nunca.
Mas, o momento é de amenidades. Animo-me, então, a transcrever crônica meio poética que reflete bem o espírito romântico daquela época tão preciosa:
Esmeralda sem rosto
A primeira futura ex-namorada. Em nome dela, em sua homenagem, num domingo chuvoso de paixão, perdido no tempo, formulara alguns versos com rima pobre:
Como são fortes, candentes
Os primeiros amores,
Ardentes
A primeira namorada
Dúvida amarga
Amada.
Toda essa relação apaixonada fora tão tímida, havia indecisão em se aproximar da possível futura namorada. Naqueles idos. Uma torcida para que ela passasse na mesma rua após as aulas, no mesmo horário, um encontro silencioso e ansioso.Estudante destacadíssima. Aceitaria?
Encontros forçados, à espreita numa esquina qualquer, uma paixão ardente. Inesquecível.
A imagem dela na bicicleta, descolorida, meio enferrujada, sem rosto, um vulto, de branco. A rua cinzenta, úmida da garoa havia pouco, vento gelado no rosto, o sobrado humilde desbotado, com muro baixo. Alguns gerânios vermelhos nos vãos e rosas vermelhas e amarelas no canto do jardim. Um buquê retorcido no vento.
Esmeralda. Lembranças. Tudo passou de repente. Só o amor sem rosto ficou.
Amor ou lembranças que se perderam no tempo, não sei bem! Um pouco dos dois. Há desses instantes que não se perdem. Ficam porque doces.
Fazia justa associação: uma espécie de La Esmeralda, a cigana, vulto deslumbrante de Victor Hugo no “Corcunda de Notre Dame”. Também sem rosto, deslumbrante, porém.
Ainda voltarei com versos e poesias. Um dia desses.
10/04/2009
ANIMAIS (ZINHOS) E BICHOS
EXPLICO
Minhas relações com as várias espécies de animais (zinhos) e bichos sempre foram as melhores possíveis. Já nem falo de cachorros. Tem uma preta já velha e agitada me encarando suplicante pela janela, aqui do lado, esperando por um afago, passando minha mão pelos losangos da grade. Se não chego perto, ela choraminga.
Daqui mesmo, olhando à esquerda vejo rolinhas, anuns, pica-paus, bem-te-vis e outros espécimes que não sei identificar (há um pássaro azulzinho frequentador assíduo) saboreando bananas e metades de mamões postos para eles, sobre o muro, pela manhã, exatamente para que compareçam diariamente.
Gatos são, porém, minha preferência, embora tenham eles sumido das vizinhanças. Há muita gente intolerante com esses animais e partem para a maldade. Talvez nem eu mesmo tenha tempo para eles hoje, mas sempre que por perto, foram entre malandros e doces. Um tinha por costume morder suavemente meus pés com aqueles dentinhos finos. Aos meus protestos, ele parava, olhava para cima, com aquelas pupilas que vão e voltam e ficava a espera de um agrado.
Um indivíduo velho desses, que morreria atropelado, certa manhã comia sua ração quando um estrondo de tampa de panela no chão o fez saltar em pânico e sair correndo para a janela em fuga, batendo a cabeça no vidro. Percebendo a gafe e a risada geral, o sujeitinho se postou quieto perto da janela e carregado carinhosamente de volta à comida, ronronou como se tentasse explicar o vexame por que passara. Como não gostar desses caras?
Que valor tem, por exemplo, reter na mão um beija-flor que adentrou numa sala, na hora do almoço talvez atraído pelo perfume dum suco de uva? Cansado de se debater em busca da saída, barrado pelo vidro transparente sem entender porque não alcançava a liberdade - que estava a um palmo abaixo na abertura escancarada da janela -, que via lá fora, suas flores e suas árvores tão perto, entregou-se à sorte encostando-se indefeso num canto da parede. Eu o embalei cuidadosamente. Um chumaço de penas na minha mão, bicudo e olhinhos pretos. Solto lá fora, bateu as asas e desapareceu. Ficou a sensação de sua presença.
Que valor tem um momento desses? Para mim muito valor, muitíssimo.
Certamente que muitos dirão que isso ou aquilo é rotina e contarão passagens mais interessantes.
Mas, para mim foram experiência e impressões únicas, daí...
A Coruja
Numa tarde modorrenta de domingo, eis que uma coruja - ave muito comum no interiorzão de São Paulo, onde fazem seus ninhos em covinhas nos campos – no alto de um telhado vizinho, debatia-se para soltar sua perninha dos arames que retinham uma antena de televisão. Encontrava-se presa num desses fios onde se forma uma espécie de “v” ou “y”. Tentava se soltar pressionando a perninha no sentido do vértice da forquilha o que cada vez mais a feria.
Para melhor enxergá-la, munimo-nos de um binóculo. A perninha presa sangrava e mais se feria na medida em que forçava para escapar da armadilha.
Um dos meus filhos, verdadeiro “animal trepador”, então, resolveu soltá-la. Chegou ao telhado escalando muros e, com jeito, alcançou a corujinha. Já exausta e ferida não esboçou reação alguma, quem sabe conformada com o seu fim, eis que o inimigo cruel chegara para abatê-la impiedosamente.
Num movimento suave foi ela solta. Após alguns segundos, percebendo a liberdade, voou para uma folha alta de coqueiro, numa área verde próxima. Estava salva. Vacilara um pouco em voltar para seu esconderijo bem embaixo do coqueiro. Não demoraria muito, ela desapareceria. Sua cova estava vazia.
Algum tempo depois, ela reapareceu, mas empoleirada numa folha de coqueiro de minha casa – aquele tipo de coqueiro classificado de “anão” mas que vai crescendo e engordando como gota próximo da terra e se tornando alto e inalcançável. Certa vez, ainda não tão alto como hoje, ele produziu duma só vez 76 cocos, algo inimaginável. Não se trata de conversa de ...pescador, até porque falo de cocos e odeio pescar. Jamais pesquei e detesto! Inspiro-me sempre numa frase de Leon Tolstoi em “Ana Karenina”:“Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Ainda baixo o coqueiro a coruja ali se acomodou, sem a perninha esquerda. Certamente que infeccionara atrofiando-se, resultando na sua amputação. Dali do coqueiro ela não fugia, ficava horas quietinha. Deixava-se tranquilamente examinar com o binóculo. Dava voltas de quase 180 graus com sua cabeça.
Não sei se seu instinto revelara que ali, naquele coqueiro, naquele lugar havia segurança para ela ou se, no seu pequeno cérebro, espocara algum sentido de gratidão.
À noite, ela desaparecia. Nas proximidades, uma coruja chirriava de forma arrepiante. Talvez fosse ela nos estertores de sua vida.
Um dia ela (ou ele?) sumiu. Talvez tenha sido ceifada por infecção na região da perninha amputada.
Ficou sua imagem e a nossa gratidão em estar conosco por algum tempo.
Abelhas
Numa pequena chácara que tivera, construí uma casa de madeira, bem própria para o campo. Arrumadinha mas com alguns detalhes meio precários, caso dos vãos entre o telhado e o forro, que permitiram que morcegos frugíveros ali passassem a viver, ruidosos a noite inteira sobre o forro. E mais, num dos lados, bem na aba da varanda, a pouca altura, instalou-se um enxame de abelhas.
A colméia cresceu muito. Chegamos a extrair mel em razoável quantidade.
No calor insuportável dos dias de verão, as abelhas pareciam sofrer muito porque as telhas de amianto aumentam a temperatura. Em grande quantidade elas deixavam o abrigo e “nervosas” saiam em busca de alimento ou permaneciam esvoaçando ruidosas a poucos metros do chão.
Tinha por hábito passar no meio delas. Elas se embaraçavam nos meus cabelos, mas nunca foram agressivas. Jamais fui vítima de seus ferrões, salvo uma única vez em que uma delas, vendo-se presa atrás da lente de meus óculos, ameaçou a picada que não consumou. Se se consumasse, poderia ter atraído o ataque de outras e teria sido perigoso.
Essas abelhas eram agressivas. Certa feita, num pequeno serviço de terraplenagem por perto, o tratorista foi violentamente atacado por elas.
Para mim, essa relação de confiança demonstrada pelas abelhas, transcende o acaso, deixando transparecer que até elas respeitam sentimentos de não agressão e de tolerância.
Mas, cuidado, porque a reação delas pode não ser a mesma em qualquer outra circunstância ou pessoa.
Vespas ou marimbondos
Quando vim para o interior de São Paulo, aluguei uma casa assobradada. Na parte de baixo espécie de salão de jogos, dando para amplo quintal, instalara-se, parecia fazer algum tempo, um ninho de vespas, aquelas cujas picadas são muito dolorosas.
As crianças querendo fustigar os marimbondos que ali viviam quietos e amistosos, passaram, numa tarde de sábado, a mirar tênis no ninho. Claro que o vespeiro ficou agitado e agressivo. As vespas se aproximavam tentando identificar o agressor.
Impedidos por mim de continuarem atiçando os bichos, depois de algum tempo, não houve jeito, tive que recolher os tênis bem embaixo do ninho semidestruído.
No momento em que estiquei o braço direito para recolher um dos tênis em local bem abaixo donde esvoaçavam as vespas, uns cinco indivíduos me atacaram, picando apenas o braço ameaçador. Eles não me atacaram para agredir, apenas para se defenderem na iminência de nova ameaça de agressão.
Meu braço inchou, mas eu apreendi a lição de não agressão.
O leitãozinho
Sempre que ia ao açougue naqueles tempos já saindo da meninice me dava um aperto no peito aqueles ganchos nos quais eram pendurados pedaços de cadáver de porco e boi. Sempre no mesmo horário de domingo, frequentemente um chinês dono de pastelaria próxima, aproveitava o moedor do açougue para preparar o recheio dos pasteis. Os filetes da carne moída e das pelancas que se misturavam caiam numa bacia imunda, meio amassada, contendo nas reentrâncias resíduos de outras moagens.
Os pedaços de porco mais me impressionavam porque havia alguns anos assistira ao abate de um leitãozinho que circulava meio livre pelo quintal. Lá estava, presente que meu pai recebera, nem sei bem porque e de onde.
Chegou o dia de ser abatido. O vizinho afeito à matança desses animais se prontificara a não só abater o bicho já grandinho como retalhá-lo em pedaços para serem consumidos. O Natal seria comemorado dali a uns dias.
Numa manhã de domingo tal se consumou. O homem, já velho, curvado, nariz avantajado com crateras lunares, olhos avermelhados, sem expressão, de chapéu de feltro batido e desbotado, escondendo seus cabelos grisalhos, apropriou-se de uma faca enorme, agarrou sem dificuldades o porco porque habituado à presença de todos, segurou-o pelas costas apertado-o no seu peito com o braço esquerdo e com a mão direita desferiu o golpe abaixo de sua pata dianteira em direção ao coração.
A facada não atingira o coração do bicho. Gritando desesperado, pressentindo a traição e a morte iminente, aqueles olhos vermelhos procuravam por todos aqueles em sua volta em quem confiara e recebera carinho, de mim especialmente, se debatendo não demorou, momentos depois, a perecer num segundo golpe, agora certeiro. Seus olhos morreram fixados nos meus.
O escorpião no sapato
O escorpião é um animal (zinho) amaldiçoado na Bíblia. Eis alguns versículos que o tratam como um demoninho:
Apocalipse 9,5: “...e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião quando fere o homem.”
I-Reis 12,11: “...meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.”
Eclesiástico 26,10: “Uma mulher maldosa é como jugo de bois desajustado; quem a possui é como aquele que pega um escorpião.”
Lucas 10,19: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada fará dano algum.”
Por vezes um acontecimento que poderia ser ignorado num mero bocejo, rebate como se houvesse um sentido oculto, uma mensagem velada. Tive várias dessas experiências. Uma delas, meio assustadora, dera-se numa chácara que freqüentava. Lá chegando, quase todos os domingos, calçava um par de sapatos velhos, feito chinelos, folgados e saia pelos campos. Num fim-de-semana, calço os tais sapatos e sinto que há algo saliente dentro de um dos pés. Jogo o sapato no chão. Sai a carcaça de um escorpião adulto, o mais venenoso, que amassara na semana anterior, sem que percebesse. Passara incólume de sua picada venenosa e dolorida.
Algo diferenciado se dera nesse episódio? Fora alertado sutilmente do perigo em calçar os sapatos sem olhar? O que se faz numa hora dessas? Olho para o céu azul e indago: o que isso quis significar?
A minha “cultura esotérica” insiste que não leve certos eventos para o mero acaso, a sorte.
Deixei o versículo de Lucas por último, acima (“Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões..."), que fora uma afirmação do poder de Jesus transmitido aos seus discípulos. A mim não serve esse poder, nem pensar, até porque tenho uma propensão agnóstica, meio moderada, porém.
Mas, o que isso significaria, “agnosticismo moderado”? Poderia ser definido numa frase do professor Paulo Edgar A. Resende em artigo numa antiga revista da PUCSP (1968 – “Deus hoje, Sim e Não”): “Os cristãos que passam ao ateísmo, não o fazem a partir de um raciocínio da existência de Deus ou da não-existência de Deus. Eles partem da convicção de que a crença em Deus não tem significação para o relacionamento com os homens, é algo separado da terra, e que poderia ficar para depois, para os períodos de intervalo, para as situações limites, para a velhice, para a época da doença.”
Por esse agnosticismo, ainda que moderado, não sou elegível a pisar a salvo nesses demoninhos.
O caso é que eu pisei e o amassei. Bichinho adulto, amarelado, imóvel diante dos meus olhos perplexos.
O que isso significou? Sorte? O acaso? Já disse que há situações em que rejeito explicações por essas palavras.
Não sei, mas quando dele me lembro, sinto algo a mais no meu sapato mesmo que não tão folgado como aquele no qual se alojara o escorpião sem sorte (epa!) num domingo de céu azul e ensolarado.
O Quati
Houve um tempo em que morara numa casinha simples, boazinha, cujo quintal dava fundos para o já então poluído rio Tamanduateí, violentado pelo despejo de fábricas, esgotos, lixo. O quintal era separado por uma cerca de ripas, tendo um portãozinho que dava para um terreno baldio e, atravessado esse, a aproximadamente 30 metros, depois de um caminho de terra à margem, "caia-se" no rio Tamanduateí. Perto dali, havia uma ponte de madeira e, na outra margem, na mesma direção do meu quintal, havia um campo de futebol, onde aprendera a andar de bicicleta.
Quando chovia muito, o rio transbordava, chegando as águas até ali, perto da cerca, inundando todo o terreno baldio dos fundos. As águas não chegavam até meu quintal, porque o terreno de minha casa era mais alto. Bem encostada na cerca, do lado de dentro de meu quintal, havia uma amoreira, que frutificava sem parar. Quase que diariamente, meus dedos ficavam tingidos de vermelho das amoras, graúdas, saborosas. Certa feita, trouxera meu pai para casa, um quati. Fora um presente. Não sei dizer sua origem. Viera ele dentro de um caixote.
Foi-lhe posta uma coleira, sendo preso por uma corrente, com cuidados especiais, próximo à amoreira. Meio selvagem, meio perigoso pelos seus dentes caninos afiados, mantínhamos certa distância no começo. O quati, segundo o Dicionário Aurélio, é um mamífero carnívoro, "com sete subespécies distribuídas por todo o Brasil" (!?)
O "meu" quati, seguindo a descrição normal das espécies, tinha focinho e pés pretos, corpo meio amarelado, com cauda longa e com anéis pretos. O animalzinho preso, tinha mobilidade suficiente para trepar na amoreira.
E isso ele fazia constantemente, enroscando a corrente nos galhos. Com muito cuidado, algumas vezes por dia, íamos desenroscá-la para que o bicho voltasse a ter a mesma mobilidade. Quanto a mim, depois de algum tempo de sua chegada, querendo as amoras criei coragem e fui para perto da árvore e comecei a colhê-las. O quati permaneceu quieto de pé, cauda alevantada. Quando me sentei para comer as frutinhas acompanhando o caminho de formigas cortadeiras que passavam por ali carregando pedacinhos de folhas, entre assustado e em pânico, tentei tirar o quati de cima de minha cabeça que avançara inesperadamente, tendo a corrente batendo no meu rosto.
Mas ele não fora feroz. Não fora agressivo. Na verdade, tivera tempo de "cavoucar" delicadamente minha cabeça com as patas dianteiras. E esse carinho maravilhoso ele repetiria sempre. Subia pelos meus ombros sem cerimônia e "cavoucava" minha cabeça. Embora carnívoro, comia quase de tudo na minha casa, como um cachorro. Nasceria ali uma amizade duradoura. Eu o levava para passear no terreno do fundo, ele abria pequenas covas com seu focinho e suas patas.
Uma alegria para ele. Chegava mesmo a soltá-lo da corrente. Dava um pouco de trabalho resgatá-lo, mas quando se cansava, espontaneamente voltava. Pela amizade do quati, entendo bem a frase inspirada de Antoine de Saint-Exupéry no seu consagrado "O Pequeno Príncipe", pela voz da raposa: "- Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Ele tinha umas pequenas feridas e coceiras na cauda. Eram tratadas com mercurocromo e não progrediam. Desapareciam um tempo, mas voltavam.
Um dia precisou ser levado embora. Não me lembro bem porque. Teria sido levado para uma espécie de convento, conduzido por religiosas que possuía ampla área verde. Soube que morrera algum tempo depois. As feridas na cauda evoluíram, disseram-me, resultando em sua morte. Certamente que não fora cuidado devidamente. Ou morrera de saudades. Até hoje lembro-me dele com carinho... Uma vidinha simples, de amor e de amizade incondicionais, sem escolher dia e hora.
Minhas relações com as várias espécies de animais (zinhos) e bichos sempre foram as melhores possíveis. Já nem falo de cachorros. Tem uma preta já velha e agitada me encarando suplicante pela janela, aqui do lado, esperando por um afago, passando minha mão pelos losangos da grade. Se não chego perto, ela choraminga.
Daqui mesmo, olhando à esquerda vejo rolinhas, anuns, pica-paus, bem-te-vis e outros espécimes que não sei identificar (há um pássaro azulzinho frequentador assíduo) saboreando bananas e metades de mamões postos para eles, sobre o muro, pela manhã, exatamente para que compareçam diariamente.
Gatos são, porém, minha preferência, embora tenham eles sumido das vizinhanças. Há muita gente intolerante com esses animais e partem para a maldade. Talvez nem eu mesmo tenha tempo para eles hoje, mas sempre que por perto, foram entre malandros e doces. Um tinha por costume morder suavemente meus pés com aqueles dentinhos finos. Aos meus protestos, ele parava, olhava para cima, com aquelas pupilas que vão e voltam e ficava a espera de um agrado.
Um indivíduo velho desses, que morreria atropelado, certa manhã comia sua ração quando um estrondo de tampa de panela no chão o fez saltar em pânico e sair correndo para a janela em fuga, batendo a cabeça no vidro. Percebendo a gafe e a risada geral, o sujeitinho se postou quieto perto da janela e carregado carinhosamente de volta à comida, ronronou como se tentasse explicar o vexame por que passara. Como não gostar desses caras?
Que valor tem, por exemplo, reter na mão um beija-flor que adentrou numa sala, na hora do almoço talvez atraído pelo perfume dum suco de uva? Cansado de se debater em busca da saída, barrado pelo vidro transparente sem entender porque não alcançava a liberdade - que estava a um palmo abaixo na abertura escancarada da janela -, que via lá fora, suas flores e suas árvores tão perto, entregou-se à sorte encostando-se indefeso num canto da parede. Eu o embalei cuidadosamente. Um chumaço de penas na minha mão, bicudo e olhinhos pretos. Solto lá fora, bateu as asas e desapareceu. Ficou a sensação de sua presença.
Que valor tem um momento desses? Para mim muito valor, muitíssimo.
Certamente que muitos dirão que isso ou aquilo é rotina e contarão passagens mais interessantes.
Mas, para mim foram experiência e impressões únicas, daí...
A Coruja
Numa tarde modorrenta de domingo, eis que uma coruja - ave muito comum no interiorzão de São Paulo, onde fazem seus ninhos em covinhas nos campos – no alto de um telhado vizinho, debatia-se para soltar sua perninha dos arames que retinham uma antena de televisão. Encontrava-se presa num desses fios onde se forma uma espécie de “v” ou “y”. Tentava se soltar pressionando a perninha no sentido do vértice da forquilha o que cada vez mais a feria.
Para melhor enxergá-la, munimo-nos de um binóculo. A perninha presa sangrava e mais se feria na medida em que forçava para escapar da armadilha.
Um dos meus filhos, verdadeiro “animal trepador”, então, resolveu soltá-la. Chegou ao telhado escalando muros e, com jeito, alcançou a corujinha. Já exausta e ferida não esboçou reação alguma, quem sabe conformada com o seu fim, eis que o inimigo cruel chegara para abatê-la impiedosamente.
Num movimento suave foi ela solta. Após alguns segundos, percebendo a liberdade, voou para uma folha alta de coqueiro, numa área verde próxima. Estava salva. Vacilara um pouco em voltar para seu esconderijo bem embaixo do coqueiro. Não demoraria muito, ela desapareceria. Sua cova estava vazia.
Algum tempo depois, ela reapareceu, mas empoleirada numa folha de coqueiro de minha casa – aquele tipo de coqueiro classificado de “anão” mas que vai crescendo e engordando como gota próximo da terra e se tornando alto e inalcançável. Certa vez, ainda não tão alto como hoje, ele produziu duma só vez 76 cocos, algo inimaginável. Não se trata de conversa de ...pescador, até porque falo de cocos e odeio pescar. Jamais pesquei e detesto! Inspiro-me sempre numa frase de Leon Tolstoi em “Ana Karenina”:“Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Ainda baixo o coqueiro a coruja ali se acomodou, sem a perninha esquerda. Certamente que infeccionara atrofiando-se, resultando na sua amputação. Dali do coqueiro ela não fugia, ficava horas quietinha. Deixava-se tranquilamente examinar com o binóculo. Dava voltas de quase 180 graus com sua cabeça.
Não sei se seu instinto revelara que ali, naquele coqueiro, naquele lugar havia segurança para ela ou se, no seu pequeno cérebro, espocara algum sentido de gratidão.
À noite, ela desaparecia. Nas proximidades, uma coruja chirriava de forma arrepiante. Talvez fosse ela nos estertores de sua vida.
Um dia ela (ou ele?) sumiu. Talvez tenha sido ceifada por infecção na região da perninha amputada.
Ficou sua imagem e a nossa gratidão em estar conosco por algum tempo.
Abelhas
Numa pequena chácara que tivera, construí uma casa de madeira, bem própria para o campo. Arrumadinha mas com alguns detalhes meio precários, caso dos vãos entre o telhado e o forro, que permitiram que morcegos frugíveros ali passassem a viver, ruidosos a noite inteira sobre o forro. E mais, num dos lados, bem na aba da varanda, a pouca altura, instalou-se um enxame de abelhas.
A colméia cresceu muito. Chegamos a extrair mel em razoável quantidade.
No calor insuportável dos dias de verão, as abelhas pareciam sofrer muito porque as telhas de amianto aumentam a temperatura. Em grande quantidade elas deixavam o abrigo e “nervosas” saiam em busca de alimento ou permaneciam esvoaçando ruidosas a poucos metros do chão.
Tinha por hábito passar no meio delas. Elas se embaraçavam nos meus cabelos, mas nunca foram agressivas. Jamais fui vítima de seus ferrões, salvo uma única vez em que uma delas, vendo-se presa atrás da lente de meus óculos, ameaçou a picada que não consumou. Se se consumasse, poderia ter atraído o ataque de outras e teria sido perigoso.
Essas abelhas eram agressivas. Certa feita, num pequeno serviço de terraplenagem por perto, o tratorista foi violentamente atacado por elas.
Para mim, essa relação de confiança demonstrada pelas abelhas, transcende o acaso, deixando transparecer que até elas respeitam sentimentos de não agressão e de tolerância.
Mas, cuidado, porque a reação delas pode não ser a mesma em qualquer outra circunstância ou pessoa.
Vespas ou marimbondos
Quando vim para o interior de São Paulo, aluguei uma casa assobradada. Na parte de baixo espécie de salão de jogos, dando para amplo quintal, instalara-se, parecia fazer algum tempo, um ninho de vespas, aquelas cujas picadas são muito dolorosas.
As crianças querendo fustigar os marimbondos que ali viviam quietos e amistosos, passaram, numa tarde de sábado, a mirar tênis no ninho. Claro que o vespeiro ficou agitado e agressivo. As vespas se aproximavam tentando identificar o agressor.
Impedidos por mim de continuarem atiçando os bichos, depois de algum tempo, não houve jeito, tive que recolher os tênis bem embaixo do ninho semidestruído.
No momento em que estiquei o braço direito para recolher um dos tênis em local bem abaixo donde esvoaçavam as vespas, uns cinco indivíduos me atacaram, picando apenas o braço ameaçador. Eles não me atacaram para agredir, apenas para se defenderem na iminência de nova ameaça de agressão.
Meu braço inchou, mas eu apreendi a lição de não agressão.
O leitãozinho
Sempre que ia ao açougue naqueles tempos já saindo da meninice me dava um aperto no peito aqueles ganchos nos quais eram pendurados pedaços de cadáver de porco e boi. Sempre no mesmo horário de domingo, frequentemente um chinês dono de pastelaria próxima, aproveitava o moedor do açougue para preparar o recheio dos pasteis. Os filetes da carne moída e das pelancas que se misturavam caiam numa bacia imunda, meio amassada, contendo nas reentrâncias resíduos de outras moagens.
Os pedaços de porco mais me impressionavam porque havia alguns anos assistira ao abate de um leitãozinho que circulava meio livre pelo quintal. Lá estava, presente que meu pai recebera, nem sei bem porque e de onde.
Chegou o dia de ser abatido. O vizinho afeito à matança desses animais se prontificara a não só abater o bicho já grandinho como retalhá-lo em pedaços para serem consumidos. O Natal seria comemorado dali a uns dias.
Numa manhã de domingo tal se consumou. O homem, já velho, curvado, nariz avantajado com crateras lunares, olhos avermelhados, sem expressão, de chapéu de feltro batido e desbotado, escondendo seus cabelos grisalhos, apropriou-se de uma faca enorme, agarrou sem dificuldades o porco porque habituado à presença de todos, segurou-o pelas costas apertado-o no seu peito com o braço esquerdo e com a mão direita desferiu o golpe abaixo de sua pata dianteira em direção ao coração.
A facada não atingira o coração do bicho. Gritando desesperado, pressentindo a traição e a morte iminente, aqueles olhos vermelhos procuravam por todos aqueles em sua volta em quem confiara e recebera carinho, de mim especialmente, se debatendo não demorou, momentos depois, a perecer num segundo golpe, agora certeiro. Seus olhos morreram fixados nos meus.
O escorpião no sapato
O escorpião é um animal (zinho) amaldiçoado na Bíblia. Eis alguns versículos que o tratam como um demoninho:
Apocalipse 9,5: “...e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião quando fere o homem.”
I-Reis 12,11: “...meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.”
Eclesiástico 26,10: “Uma mulher maldosa é como jugo de bois desajustado; quem a possui é como aquele que pega um escorpião.”
Lucas 10,19: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada fará dano algum.”
Por vezes um acontecimento que poderia ser ignorado num mero bocejo, rebate como se houvesse um sentido oculto, uma mensagem velada. Tive várias dessas experiências. Uma delas, meio assustadora, dera-se numa chácara que freqüentava. Lá chegando, quase todos os domingos, calçava um par de sapatos velhos, feito chinelos, folgados e saia pelos campos. Num fim-de-semana, calço os tais sapatos e sinto que há algo saliente dentro de um dos pés. Jogo o sapato no chão. Sai a carcaça de um escorpião adulto, o mais venenoso, que amassara na semana anterior, sem que percebesse. Passara incólume de sua picada venenosa e dolorida.
Algo diferenciado se dera nesse episódio? Fora alertado sutilmente do perigo em calçar os sapatos sem olhar? O que se faz numa hora dessas? Olho para o céu azul e indago: o que isso quis significar?
A minha “cultura esotérica” insiste que não leve certos eventos para o mero acaso, a sorte.
Deixei o versículo de Lucas por último, acima (“Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões..."), que fora uma afirmação do poder de Jesus transmitido aos seus discípulos. A mim não serve esse poder, nem pensar, até porque tenho uma propensão agnóstica, meio moderada, porém.
Mas, o que isso significaria, “agnosticismo moderado”? Poderia ser definido numa frase do professor Paulo Edgar A. Resende em artigo numa antiga revista da PUCSP (1968 – “Deus hoje, Sim e Não”): “Os cristãos que passam ao ateísmo, não o fazem a partir de um raciocínio da existência de Deus ou da não-existência de Deus. Eles partem da convicção de que a crença em Deus não tem significação para o relacionamento com os homens, é algo separado da terra, e que poderia ficar para depois, para os períodos de intervalo, para as situações limites, para a velhice, para a época da doença.”
Por esse agnosticismo, ainda que moderado, não sou elegível a pisar a salvo nesses demoninhos.
O caso é que eu pisei e o amassei. Bichinho adulto, amarelado, imóvel diante dos meus olhos perplexos.
O que isso significou? Sorte? O acaso? Já disse que há situações em que rejeito explicações por essas palavras.
Não sei, mas quando dele me lembro, sinto algo a mais no meu sapato mesmo que não tão folgado como aquele no qual se alojara o escorpião sem sorte (epa!) num domingo de céu azul e ensolarado.
O Quati
Houve um tempo em que morara numa casinha simples, boazinha, cujo quintal dava fundos para o já então poluído rio Tamanduateí, violentado pelo despejo de fábricas, esgotos, lixo. O quintal era separado por uma cerca de ripas, tendo um portãozinho que dava para um terreno baldio e, atravessado esse, a aproximadamente 30 metros, depois de um caminho de terra à margem, "caia-se" no rio Tamanduateí. Perto dali, havia uma ponte de madeira e, na outra margem, na mesma direção do meu quintal, havia um campo de futebol, onde aprendera a andar de bicicleta.
Quando chovia muito, o rio transbordava, chegando as águas até ali, perto da cerca, inundando todo o terreno baldio dos fundos. As águas não chegavam até meu quintal, porque o terreno de minha casa era mais alto. Bem encostada na cerca, do lado de dentro de meu quintal, havia uma amoreira, que frutificava sem parar. Quase que diariamente, meus dedos ficavam tingidos de vermelho das amoras, graúdas, saborosas. Certa feita, trouxera meu pai para casa, um quati. Fora um presente. Não sei dizer sua origem. Viera ele dentro de um caixote.
Foi-lhe posta uma coleira, sendo preso por uma corrente, com cuidados especiais, próximo à amoreira. Meio selvagem, meio perigoso pelos seus dentes caninos afiados, mantínhamos certa distância no começo. O quati, segundo o Dicionário Aurélio, é um mamífero carnívoro, "com sete subespécies distribuídas por todo o Brasil" (!?)
O "meu" quati, seguindo a descrição normal das espécies, tinha focinho e pés pretos, corpo meio amarelado, com cauda longa e com anéis pretos. O animalzinho preso, tinha mobilidade suficiente para trepar na amoreira.
E isso ele fazia constantemente, enroscando a corrente nos galhos. Com muito cuidado, algumas vezes por dia, íamos desenroscá-la para que o bicho voltasse a ter a mesma mobilidade. Quanto a mim, depois de algum tempo de sua chegada, querendo as amoras criei coragem e fui para perto da árvore e comecei a colhê-las. O quati permaneceu quieto de pé, cauda alevantada. Quando me sentei para comer as frutinhas acompanhando o caminho de formigas cortadeiras que passavam por ali carregando pedacinhos de folhas, entre assustado e em pânico, tentei tirar o quati de cima de minha cabeça que avançara inesperadamente, tendo a corrente batendo no meu rosto.
Mas ele não fora feroz. Não fora agressivo. Na verdade, tivera tempo de "cavoucar" delicadamente minha cabeça com as patas dianteiras. E esse carinho maravilhoso ele repetiria sempre. Subia pelos meus ombros sem cerimônia e "cavoucava" minha cabeça. Embora carnívoro, comia quase de tudo na minha casa, como um cachorro. Nasceria ali uma amizade duradoura. Eu o levava para passear no terreno do fundo, ele abria pequenas covas com seu focinho e suas patas.
Uma alegria para ele. Chegava mesmo a soltá-lo da corrente. Dava um pouco de trabalho resgatá-lo, mas quando se cansava, espontaneamente voltava. Pela amizade do quati, entendo bem a frase inspirada de Antoine de Saint-Exupéry no seu consagrado "O Pequeno Príncipe", pela voz da raposa: "- Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Ele tinha umas pequenas feridas e coceiras na cauda. Eram tratadas com mercurocromo e não progrediam. Desapareciam um tempo, mas voltavam.
Um dia precisou ser levado embora. Não me lembro bem porque. Teria sido levado para uma espécie de convento, conduzido por religiosas que possuía ampla área verde. Soube que morrera algum tempo depois. As feridas na cauda evoluíram, disseram-me, resultando em sua morte. Certamente que não fora cuidado devidamente. Ou morrera de saudades. Até hoje lembro-me dele com carinho... Uma vidinha simples, de amor e de amizade incondicionais, sem escolher dia e hora.
29/03/2009
POETAS
EXPLICAÇÃO
Há anos, escrevi uma série de crônicas sobre “tipos notáveis” que conheci, que soube da história e alguns inventei a partir de fragmentos de fatos "reais".
Entre os "tipos notáveis", insere-se "O Solitário" que tem muito de delírio e nos seus discursos, a despeito de sua vida incomum, um modo de encontrar inspirações, as respostas que dá não são conclusivas, significando imensa dificuldade para compreender esta existência de nexos, conexos e desconexos.
Também entre os notáveis, o relato em "O deserto e o mar". Esses "tipos" estão publicados aqui.
Os "poetas" estão, também, entre os "tipos notáveis".
São crônicas longas que podem desincentivar a leitura mas afirmo, como já se disse, que não houve tempo de serem mais curtas.
I – Poeta falsificado que rima rosa com prosa.
Vivia-se naqueles tempos mágicos em que não se falava de abominações como pedofilia e outras aberrações humanas de hoje. Não havia preocupação com a devastação ambiental. Os tempos eram mais lúcidos e limpos.
No domingo, as missas eram até obrigatórias. A das 10h40 na matriz mais ainda porque desfilavam garotas perfumadas e encantadoras. E que não fumavam...
E nesses tempos, havia espaço para a boemia. Para se ser boêmio, havia que se ter uma certa indiferença com o dia-a-dia da vida, isto é, não estar muito preocupado com a manhã seguinte, com o emprego (o “trampo”), com o patrão.
Se essas preocupações batessem, já por volta da meia noite, não seria o indivíduo um boêmio, mas um notívago que na manhã do mesmo dia, estaria acordando cedo, bocejando sem parar e, pior, ter que dar conta do batente e ouvir as ordens do patrão.
Pois a convivência com esse tipo de figuras, naqueles tempos em que os poetas de botequim rimavam mais ‘rosa’ com ‘prosa’ e não ‘nexo’ com ‘sexo’, havia um grupo misto de garotos e garotas que frequentava uma pizzaria bem em frente do maior colégio da cidade, do outro lado da avenida e, sentados num banco de cimento nos fundos do salão, punham-se, depois de nacos de pizza devorados, algumas doses de cerveja ou conhaque, a "meditar sobre a vida".
As frases entreouvidas:
- Eu tenho problemas, eu não consigo me controlar, estou doente, não sei bem o que é!
Sem um psicanalista por perto, depressão não se conhecia, o problema jamais era identificado. Algumas das garotas, para se "automedicarem" falavam em estudar psicologia.
Uma delas até chegou a esse extremo. Já madura, sem saber o que fazer com o diploma de psicologia por total inaptidão voltou a estudar, formando-se em direito. Tornou-se mais tarde juíza com distinção e já era cotada para assumir posição no tribunal, numa merecida promoção. Não perdera mesmo nesse nível, a sua meiguice que trazia desde aqueles tempos de colégio. Muitos foram seus pretendentes e apaixonados. Na atualidade, solteira, nas audiências, havia advogados que torciam para que suas ações fossem distribuídas para sua vara de tal ordem a admirarem a virtude da meiguice, encantados com seu modo de explanar as idéias. Rigorosa, o resultado da demanda se adverso, era sempre perdoado e os recursos redigidos de modo respeitoso de tal modo a não ofendê-la nas razões expostas. Mas, sua erudição e independência estavam acima desses flertes. Não sei se casou, eu a perdi de vista.
Entre esse grupo da pizzaria, havia um garoto que revelava os mesmo sintomas.
Tornara-se um jovem alto, magro, cabelos lisos e pretos, mais para branco do que para mulato, à noite sempre de camisa branca, impecável. Pouco se sabia de sua vida privada, de sua família, de sua casa...
Trabalhando como aprendiz operário numa fábrica no Ipiranga, nas proximidades do Museu, abominava o trem “lotado e proletário”, que tomava diariamente e reclamava de tudo, do chefe, do almoço, do trabalho repetitivo, da burrice dos colegas... de tudo.
Já estudante do colegial, engajou-se nessa "turma problemática". Toda noite, bastava beber um pouco e, aos prantos, esbravejava suas emoções incontidas e, depois, encostando a testa na mesa, escondendo-se com os braços, curtia a bebedeira, esperando por algum consolo. Por tudo queria parecer vítima e às vezes era bastante convincente quando reclamava entre lágrimas de sua má sorte.
Dizia-se poeta. Numa dessas noites, depois de uma crise de histeria, escreveu num guardanapo alguns versos com aquelas rimas medíocres, de rosa, com prosa revelando toda sua paixão por um amor não correspondido:
"Meu amor, és para mim uma branca rosa,
Sua imagem doce me inspira em verso e prosa."
Colegas mais matreiros, desconfiados do seu “problema”, nalguns sábados, levavam-no a inferninhos bravos de São Paulo, naquelas zonas próximas da praça da República ou no Teatro de Revista numa travessa da avenida Ipiranga para provocá-lo. Eram aqueles tempos em que as doenças venéreas eram curáveis.
Mas, não havia meio: não se embalava. Embebedava-se, fazia papelão no meio daquelas mulheres ávidas por uns trocados, exibia-se recitando algumas poesias medíocres e ficava a espera de "muletas". Nada funcionava para ele.
Certo dia, um sábado meio ensolarado meio nublado, engajou-se numa excursão a um parque público que tinha como atrações um bosque bem fechado e um lago amplo e bonito tendo, às suas margens, quiosques reservados para churrascos e piqueniques.
Na viagem de ida, no ônibus, por acaso, sentou-se ao lado de uma moça, já não tão moça, mais para "coroa" devidamente desimpedida.
Essa mulher assanhou-se para o seu lado. Não demorou muito para que o clima esquentasse. Logo após o almoço, discretamente foram para o bosque e se encostaram numa árvore iniciando a mútua excitação.
Desceram a roupa de baixo naquela “volúpia incontida”. Teve início o ato sexual, sem medo e sem vergonha, exultante. Mas, fora este interrompido de forma até abrupta e cômica. Um vigia do parque os viu em pleno ato e apitou com todas as forças de seus pulmões. Foi a sorte de ambos, porque permitiu que saíssem correndo da maneira que puderam, ajeitando a roupa pelas trilhas do bosque. O “poeta” aos tropeços na barra da calça mal ajeitada e a mulher recomposta do jeito que pode, fugiu por outra trilha num recanto mais fechado do bosque.
Não foram pegos por pouco. E se fossem seria um grande vexame, um escândalo, teriam muita dor de cabeça, porque naqueles tempos tudo se resolveria na delegacia. E como se explicar aos colegas da excursão, à professora que a organizara?
Passado o susto e o desprazer pelo prazer interrompido, voltaram juntos no ônibus rindo muito e pelo que ele próprio contara, nunca mais se viram. É o que disse...
A partir daquele dia o "poeta beberrão" mudou. Suas choradeiras tornaram-se raras. Apenas doses agudas de conhaque poderiam aguçar sua sensibilidade. Depois abandonou o curso e desapareceu. Sobre ele só ficaram estes versos, redigidos por um boêmio solidário, tão “problemático” quanto, numa noite fria em que a histeria ridícula do beberrão passara dos limites e o álcool falara alto por todos:
”Ah ! poeta falsificado
triste e doido beberrão;
rei da histeria tola
o que pensas da poesia ?
Julgas que diante dos copos ,
da garrafa vazia,
encontraras a musa do amor ?
enganado estás meu caro medíocre !
a musa imaculada que buscas,
aquela que o verdadeiro poeta canta,
não está no brilho d’uma garrafa,
Ilustre beberrão !
Porque a musa doce e bela
a pura e límpida impressão,
É a alma limpa que chama
É o espírito são que revela...
tolo beberrão.”
Aqueles tempos idos que agora voltavam à memória afetavam a sensibilidade. a doçura da juventude, acordes de músicas daqueles tempos ressoavam em meus ouvidos orquestradas no éter.
Agora pisava no chão duro, há muito compelido a enfrentar os desafios, os chamados da vida.
II – Poeta infeliz, um lutador sem vaidades
Fui às lágrimas ao me lembrar de outro poeta, mas este diferente daquele porque tivera uma vida amarga e, na realidade, consumido por ela.
Ele também convivera com esses grupos de jovens “problemáticos”, notívagos e boêmios. A única extravagância é que, um dia, no meio daquela turma, no seu silêncio bebera um pouco mais e se proclamara com um copo nas alturas de “João, o poeta”.
Esse sujeito, um simplório, mulato, fez de tudo para sobreviver: trabalhou num centro de abastecimento carregando caixas de frutas e legumes, foi motorista de táxi e até mesmo ambulante. Mas, a despeito de todas essas atividades duras, ele continuava se qualificando como poeta. A sua humildade tinha um certo encanto: por causa dela, ninguém conseguia ignorá-lo e era sempre bem-vindo.
Sua educação formal não fora além do colegial. Seu pai falecera, vítima de cirrose hepática, quando tinha apenas nove anos. Dissera certa feita que ver o seu pai bêbado quase todo dia, fora dilacerante. Sua mãe, infeliz e batalhadora, operária de uma indústria têxtil, garantiu ao filho esse nível escolar. Mais não pôde.
Nos últimos tempos, tornara-se lavadeira. Cheguei a conhecê-la: apresentava rosto sofrido sulcado por pequenas rugas, os cabelos grisalhos a envelheciam implacavelmente muito além da idade. Seus olhos opacos sem brilho demonstravam cansaço e tristeza. Suas mãos e braços apresentavam feridas e inchaços doloridos, porque dia após dia, enfrentava o tanque, os sabões e o cloro. Por terem, apesar de tudo, algum conforto até há um mês, sua dor maior fora se mudar para uma favela, em condições precárias. Todas as tardes, quando chegava ao seu lar tão desarrumado, seus olhos se enchiam de lágrimas.
O pendor de João pela poesia fora, talvez, uma forma que encontrara para se diferenciar dos demais, se superar nas imensas dificuldades de sua vida suportando ironias e deboches num meio pouco afeito à solidariedade e à compreensão. E ao mirar sua mãe ferida trabalhando sem parar, escondia o rosto com as mãos, como se escondesse sua dor e sua vergonha por nada poder fazer por aquela senhora, sua mãe, que lhe dera tudo o que pôde dar.
Quem se proporia, naquele meio, a dar um apoio? Naquele meio em que o dinheiro do pai falava mais alto, dava prestígio? Naqueles tempos em que se tornava rei quem possuísse um “fusca sedan”?
Naquela noite em que João se proclamara poeta, um desses sujeitos bem de vida, com forte dose de álcool no sangue, no fundo da pizzaria, com aquela voz mole de embriagado, equilibrou-se como pôde e gritou:
- Ô João bobo, o poeta de ninguém, o negrinho sem vintém!
João baixou a cabeça por alguns instantes. Levantou-se vagarosamente, deixou o copo vazio com restos de espuma sobre o banco e reagiu violentamente. Um único soco, além de ferir o supercílio do ofensor deixou seu olho roxo. O impacto do soco arremessou para trás o ofensor e, sem equilíbrio sob os efeitos do álcool, sentou-se no banco de cimento batendo a cabeça na parede com aquele ruído muito próprio.
O tumulto foi geral. Alguns davam vivas, outros erguiam o braço do João pelo nocaute obtido e todos cantaram num ritmo alucinante,com vivas, “o poeta beberrão”.
Sendo a "vítima" quem era, João foi assunto por semanas, não pela sua poesia desconhecida, mas pelo soco merecido dado num cara prepotente que por vários dias ostentara o curativo e o olho roxo.
Anos depois, num dia frio, eu o encontro numa esquina abrigando-se da garoa:
- Como vai, João, há quanto tempo! Eu estudei com você, lembra-se. O que você tem feito?
Ele esboçou uma resposta qualquer, balbuciou monossílabos incompreensíveis. Não parecia bem, estava abatido, cabisbaixo. Sua aparência era pior, porque vestia roupa surrada.
Disse apenas:
- Minha mãe morreu no sábado.
Em silêncio, tentando esconder a emoção pela perda daquela que tanto lhe fizera, que tanto lutara, abriu uma velha pasta de mão retirou um livro (“A Maça no Escuro“ de Clarice Lispector) e do meio dele puxou um envelope desgastado:
- Olha algumas de minhas poesias, até agora não serviram para nada. Nunca mostrei a ninguém. Guarde-as para mim.
- João, alguma vez na vida você tentou um concurso literário, tentou publicá-las perguntei.
Ele me encarou surpreso, pensando que fosse mais um deboche. Percebendo que a pergunta fora séria, seus olhos brilharam, esboçou um sorriso e calou-se.
De repente, saiu pela garoa forte, correndo. Voltou-se e fez um aceno.
Uns oito anos depois, soube que João falecera havia uns três anos de "doença grave" nos pulmões. Para minha surpresa, o que me fez pensar por vários dias, toda a conta do tratamento hospitalar tardio e do enterro de João, fora paga por aquele sujeito bem de vida, vítima de seu soco, agora um poderoso empresário, herdeiro da empresa de seu pai.
Sua empresa fazia doações ao hospital e mantinha convênio para atendimento de seus empregados. Numa tarde, o empresário saindo do hospital com o diretor clínico reconheceu sentado, cabisbaixo, João, “o poeta.”
Parou na porta, certificou-se de quem se tratava, voltou-se e discretamente apontou para João:
- Doutor, está vendo aquele mulato branquinho ali? Veja o que está acontecendo. Dê-lhe todo o carinho e tratamento. Depois falaremos de custo, se houver.
Soube dias depois de sua grave doença irreversível e, logo depois, de sua morte, como se a ela se entregasse tantas as amarguras que enfrentara. Emocionou-se e redimiu-se com o passado de deboches ele que era mal visto até entre os “problemáticos”. Discretamente acompanhou o sepultamento de João que pagara como pagara a conta do hospital.
João fora, rigorosamente, um simples. Em sua humildade e no seu gosto pela poesia, estava sua grandeza. Ele poderia ser alvo de deboches, mas nunca ignorado. Era daqueles que incomodam positivamente.
Nem eu levara em conta sua poesia. Ao saber de sua morte, lembrei-me delas. Procuro ardentemente o envelope, encontrando-o finalmente no meio de velhas contas pagas, numa divisória da estante. Ao tocar no envelope, a presença do poeta ao meu lado naquela tarde garoenta fora sentida com intensidade.
Uma poesia que certamente refletiu seu modo de vida, suas angustias é esta:
TUDO É VAIDADE (ECL. 12,8)
Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...
Extinta, então, a tênue vida, não o Espírito
Falam as Escrituras dum fio de prata rompido
Retornando o Espírito desse ponto partido (?).
Mas, como "tudo quanto sucede é vaidade"
Quando tal soberba sem medida cresce
O Ser humano, no Espírito, enfraquece.
Depois disso, resolvi ler o livro de Clarice Lispector (“A Maçã no escuro”) em cujo exemplar estava o envelope de poesias de João.
Achei-o “meio chato”, embora a história apontasse à exaustão, as contradições, as fraquezas do espírito humano e, especialmente, a angustia da solidão expressada pelo personagem principal que cometera um crime, Martin.
Tempos depois de lido, muitas vezes alguns episódios voltavam à minha memória, sinal de que o livro, a despeito de maçante para mim, o poeta João dissera algo, fora importante.
Há anos, escrevi uma série de crônicas sobre “tipos notáveis” que conheci, que soube da história e alguns inventei a partir de fragmentos de fatos "reais".
Entre os "tipos notáveis", insere-se "O Solitário" que tem muito de delírio e nos seus discursos, a despeito de sua vida incomum, um modo de encontrar inspirações, as respostas que dá não são conclusivas, significando imensa dificuldade para compreender esta existência de nexos, conexos e desconexos.
Também entre os notáveis, o relato em "O deserto e o mar". Esses "tipos" estão publicados aqui.
Os "poetas" estão, também, entre os "tipos notáveis".
São crônicas longas que podem desincentivar a leitura mas afirmo, como já se disse, que não houve tempo de serem mais curtas.
I – Poeta falsificado que rima rosa com prosa.
Vivia-se naqueles tempos mágicos em que não se falava de abominações como pedofilia e outras aberrações humanas de hoje. Não havia preocupação com a devastação ambiental. Os tempos eram mais lúcidos e limpos.
No domingo, as missas eram até obrigatórias. A das 10h40 na matriz mais ainda porque desfilavam garotas perfumadas e encantadoras. E que não fumavam...
E nesses tempos, havia espaço para a boemia. Para se ser boêmio, havia que se ter uma certa indiferença com o dia-a-dia da vida, isto é, não estar muito preocupado com a manhã seguinte, com o emprego (o “trampo”), com o patrão.
Se essas preocupações batessem, já por volta da meia noite, não seria o indivíduo um boêmio, mas um notívago que na manhã do mesmo dia, estaria acordando cedo, bocejando sem parar e, pior, ter que dar conta do batente e ouvir as ordens do patrão.
Pois a convivência com esse tipo de figuras, naqueles tempos em que os poetas de botequim rimavam mais ‘rosa’ com ‘prosa’ e não ‘nexo’ com ‘sexo’, havia um grupo misto de garotos e garotas que frequentava uma pizzaria bem em frente do maior colégio da cidade, do outro lado da avenida e, sentados num banco de cimento nos fundos do salão, punham-se, depois de nacos de pizza devorados, algumas doses de cerveja ou conhaque, a "meditar sobre a vida".
As frases entreouvidas:
- Eu tenho problemas, eu não consigo me controlar, estou doente, não sei bem o que é!
Sem um psicanalista por perto, depressão não se conhecia, o problema jamais era identificado. Algumas das garotas, para se "automedicarem" falavam em estudar psicologia.
Uma delas até chegou a esse extremo. Já madura, sem saber o que fazer com o diploma de psicologia por total inaptidão voltou a estudar, formando-se em direito. Tornou-se mais tarde juíza com distinção e já era cotada para assumir posição no tribunal, numa merecida promoção. Não perdera mesmo nesse nível, a sua meiguice que trazia desde aqueles tempos de colégio. Muitos foram seus pretendentes e apaixonados. Na atualidade, solteira, nas audiências, havia advogados que torciam para que suas ações fossem distribuídas para sua vara de tal ordem a admirarem a virtude da meiguice, encantados com seu modo de explanar as idéias. Rigorosa, o resultado da demanda se adverso, era sempre perdoado e os recursos redigidos de modo respeitoso de tal modo a não ofendê-la nas razões expostas. Mas, sua erudição e independência estavam acima desses flertes. Não sei se casou, eu a perdi de vista.
Entre esse grupo da pizzaria, havia um garoto que revelava os mesmo sintomas.
Tornara-se um jovem alto, magro, cabelos lisos e pretos, mais para branco do que para mulato, à noite sempre de camisa branca, impecável. Pouco se sabia de sua vida privada, de sua família, de sua casa...
Trabalhando como aprendiz operário numa fábrica no Ipiranga, nas proximidades do Museu, abominava o trem “lotado e proletário”, que tomava diariamente e reclamava de tudo, do chefe, do almoço, do trabalho repetitivo, da burrice dos colegas... de tudo.
Já estudante do colegial, engajou-se nessa "turma problemática". Toda noite, bastava beber um pouco e, aos prantos, esbravejava suas emoções incontidas e, depois, encostando a testa na mesa, escondendo-se com os braços, curtia a bebedeira, esperando por algum consolo. Por tudo queria parecer vítima e às vezes era bastante convincente quando reclamava entre lágrimas de sua má sorte.
Dizia-se poeta. Numa dessas noites, depois de uma crise de histeria, escreveu num guardanapo alguns versos com aquelas rimas medíocres, de rosa, com prosa revelando toda sua paixão por um amor não correspondido:
"Meu amor, és para mim uma branca rosa,
Sua imagem doce me inspira em verso e prosa."
Colegas mais matreiros, desconfiados do seu “problema”, nalguns sábados, levavam-no a inferninhos bravos de São Paulo, naquelas zonas próximas da praça da República ou no Teatro de Revista numa travessa da avenida Ipiranga para provocá-lo. Eram aqueles tempos em que as doenças venéreas eram curáveis.
Mas, não havia meio: não se embalava. Embebedava-se, fazia papelão no meio daquelas mulheres ávidas por uns trocados, exibia-se recitando algumas poesias medíocres e ficava a espera de "muletas". Nada funcionava para ele.
Certo dia, um sábado meio ensolarado meio nublado, engajou-se numa excursão a um parque público que tinha como atrações um bosque bem fechado e um lago amplo e bonito tendo, às suas margens, quiosques reservados para churrascos e piqueniques.
Na viagem de ida, no ônibus, por acaso, sentou-se ao lado de uma moça, já não tão moça, mais para "coroa" devidamente desimpedida.
Essa mulher assanhou-se para o seu lado. Não demorou muito para que o clima esquentasse. Logo após o almoço, discretamente foram para o bosque e se encostaram numa árvore iniciando a mútua excitação.
Desceram a roupa de baixo naquela “volúpia incontida”. Teve início o ato sexual, sem medo e sem vergonha, exultante. Mas, fora este interrompido de forma até abrupta e cômica. Um vigia do parque os viu em pleno ato e apitou com todas as forças de seus pulmões. Foi a sorte de ambos, porque permitiu que saíssem correndo da maneira que puderam, ajeitando a roupa pelas trilhas do bosque. O “poeta” aos tropeços na barra da calça mal ajeitada e a mulher recomposta do jeito que pode, fugiu por outra trilha num recanto mais fechado do bosque.
Não foram pegos por pouco. E se fossem seria um grande vexame, um escândalo, teriam muita dor de cabeça, porque naqueles tempos tudo se resolveria na delegacia. E como se explicar aos colegas da excursão, à professora que a organizara?
Passado o susto e o desprazer pelo prazer interrompido, voltaram juntos no ônibus rindo muito e pelo que ele próprio contara, nunca mais se viram. É o que disse...
A partir daquele dia o "poeta beberrão" mudou. Suas choradeiras tornaram-se raras. Apenas doses agudas de conhaque poderiam aguçar sua sensibilidade. Depois abandonou o curso e desapareceu. Sobre ele só ficaram estes versos, redigidos por um boêmio solidário, tão “problemático” quanto, numa noite fria em que a histeria ridícula do beberrão passara dos limites e o álcool falara alto por todos:
”Ah ! poeta falsificado
triste e doido beberrão;
rei da histeria tola
o que pensas da poesia ?
Julgas que diante dos copos ,
da garrafa vazia,
encontraras a musa do amor ?
enganado estás meu caro medíocre !
a musa imaculada que buscas,
aquela que o verdadeiro poeta canta,
não está no brilho d’uma garrafa,
Ilustre beberrão !
Porque a musa doce e bela
a pura e límpida impressão,
É a alma limpa que chama
É o espírito são que revela...
tolo beberrão.”
Aqueles tempos idos que agora voltavam à memória afetavam a sensibilidade. a doçura da juventude, acordes de músicas daqueles tempos ressoavam em meus ouvidos orquestradas no éter.
Agora pisava no chão duro, há muito compelido a enfrentar os desafios, os chamados da vida.
II – Poeta infeliz, um lutador sem vaidades
Fui às lágrimas ao me lembrar de outro poeta, mas este diferente daquele porque tivera uma vida amarga e, na realidade, consumido por ela.
Ele também convivera com esses grupos de jovens “problemáticos”, notívagos e boêmios. A única extravagância é que, um dia, no meio daquela turma, no seu silêncio bebera um pouco mais e se proclamara com um copo nas alturas de “João, o poeta”.
Esse sujeito, um simplório, mulato, fez de tudo para sobreviver: trabalhou num centro de abastecimento carregando caixas de frutas e legumes, foi motorista de táxi e até mesmo ambulante. Mas, a despeito de todas essas atividades duras, ele continuava se qualificando como poeta. A sua humildade tinha um certo encanto: por causa dela, ninguém conseguia ignorá-lo e era sempre bem-vindo.
Sua educação formal não fora além do colegial. Seu pai falecera, vítima de cirrose hepática, quando tinha apenas nove anos. Dissera certa feita que ver o seu pai bêbado quase todo dia, fora dilacerante. Sua mãe, infeliz e batalhadora, operária de uma indústria têxtil, garantiu ao filho esse nível escolar. Mais não pôde.
Nos últimos tempos, tornara-se lavadeira. Cheguei a conhecê-la: apresentava rosto sofrido sulcado por pequenas rugas, os cabelos grisalhos a envelheciam implacavelmente muito além da idade. Seus olhos opacos sem brilho demonstravam cansaço e tristeza. Suas mãos e braços apresentavam feridas e inchaços doloridos, porque dia após dia, enfrentava o tanque, os sabões e o cloro. Por terem, apesar de tudo, algum conforto até há um mês, sua dor maior fora se mudar para uma favela, em condições precárias. Todas as tardes, quando chegava ao seu lar tão desarrumado, seus olhos se enchiam de lágrimas.
O pendor de João pela poesia fora, talvez, uma forma que encontrara para se diferenciar dos demais, se superar nas imensas dificuldades de sua vida suportando ironias e deboches num meio pouco afeito à solidariedade e à compreensão. E ao mirar sua mãe ferida trabalhando sem parar, escondia o rosto com as mãos, como se escondesse sua dor e sua vergonha por nada poder fazer por aquela senhora, sua mãe, que lhe dera tudo o que pôde dar.
Quem se proporia, naquele meio, a dar um apoio? Naquele meio em que o dinheiro do pai falava mais alto, dava prestígio? Naqueles tempos em que se tornava rei quem possuísse um “fusca sedan”?
Naquela noite em que João se proclamara poeta, um desses sujeitos bem de vida, com forte dose de álcool no sangue, no fundo da pizzaria, com aquela voz mole de embriagado, equilibrou-se como pôde e gritou:
- Ô João bobo, o poeta de ninguém, o negrinho sem vintém!
João baixou a cabeça por alguns instantes. Levantou-se vagarosamente, deixou o copo vazio com restos de espuma sobre o banco e reagiu violentamente. Um único soco, além de ferir o supercílio do ofensor deixou seu olho roxo. O impacto do soco arremessou para trás o ofensor e, sem equilíbrio sob os efeitos do álcool, sentou-se no banco de cimento batendo a cabeça na parede com aquele ruído muito próprio.
O tumulto foi geral. Alguns davam vivas, outros erguiam o braço do João pelo nocaute obtido e todos cantaram num ritmo alucinante,com vivas, “o poeta beberrão”.
Sendo a "vítima" quem era, João foi assunto por semanas, não pela sua poesia desconhecida, mas pelo soco merecido dado num cara prepotente que por vários dias ostentara o curativo e o olho roxo.
Anos depois, num dia frio, eu o encontro numa esquina abrigando-se da garoa:
- Como vai, João, há quanto tempo! Eu estudei com você, lembra-se. O que você tem feito?
Ele esboçou uma resposta qualquer, balbuciou monossílabos incompreensíveis. Não parecia bem, estava abatido, cabisbaixo. Sua aparência era pior, porque vestia roupa surrada.
Disse apenas:
- Minha mãe morreu no sábado.
Em silêncio, tentando esconder a emoção pela perda daquela que tanto lhe fizera, que tanto lutara, abriu uma velha pasta de mão retirou um livro (“A Maça no Escuro“ de Clarice Lispector) e do meio dele puxou um envelope desgastado:
- Olha algumas de minhas poesias, até agora não serviram para nada. Nunca mostrei a ninguém. Guarde-as para mim.
- João, alguma vez na vida você tentou um concurso literário, tentou publicá-las perguntei.
Ele me encarou surpreso, pensando que fosse mais um deboche. Percebendo que a pergunta fora séria, seus olhos brilharam, esboçou um sorriso e calou-se.
De repente, saiu pela garoa forte, correndo. Voltou-se e fez um aceno.
Uns oito anos depois, soube que João falecera havia uns três anos de "doença grave" nos pulmões. Para minha surpresa, o que me fez pensar por vários dias, toda a conta do tratamento hospitalar tardio e do enterro de João, fora paga por aquele sujeito bem de vida, vítima de seu soco, agora um poderoso empresário, herdeiro da empresa de seu pai.
Sua empresa fazia doações ao hospital e mantinha convênio para atendimento de seus empregados. Numa tarde, o empresário saindo do hospital com o diretor clínico reconheceu sentado, cabisbaixo, João, “o poeta.”
Parou na porta, certificou-se de quem se tratava, voltou-se e discretamente apontou para João:
- Doutor, está vendo aquele mulato branquinho ali? Veja o que está acontecendo. Dê-lhe todo o carinho e tratamento. Depois falaremos de custo, se houver.
Soube dias depois de sua grave doença irreversível e, logo depois, de sua morte, como se a ela se entregasse tantas as amarguras que enfrentara. Emocionou-se e redimiu-se com o passado de deboches ele que era mal visto até entre os “problemáticos”. Discretamente acompanhou o sepultamento de João que pagara como pagara a conta do hospital.
João fora, rigorosamente, um simples. Em sua humildade e no seu gosto pela poesia, estava sua grandeza. Ele poderia ser alvo de deboches, mas nunca ignorado. Era daqueles que incomodam positivamente.
Nem eu levara em conta sua poesia. Ao saber de sua morte, lembrei-me delas. Procuro ardentemente o envelope, encontrando-o finalmente no meio de velhas contas pagas, numa divisória da estante. Ao tocar no envelope, a presença do poeta ao meu lado naquela tarde garoenta fora sentida com intensidade.
Uma poesia que certamente refletiu seu modo de vida, suas angustias é esta:
TUDO É VAIDADE (ECL. 12,8)
Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...
Extinta, então, a tênue vida, não o Espírito
Falam as Escrituras dum fio de prata rompido
Retornando o Espírito desse ponto partido (?).
Mas, como "tudo quanto sucede é vaidade"
Quando tal soberba sem medida cresce
O Ser humano, no Espírito, enfraquece.
Depois disso, resolvi ler o livro de Clarice Lispector (“A Maçã no escuro”) em cujo exemplar estava o envelope de poesias de João.
Achei-o “meio chato”, embora a história apontasse à exaustão, as contradições, as fraquezas do espírito humano e, especialmente, a angustia da solidão expressada pelo personagem principal que cometera um crime, Martin.
Tempos depois de lido, muitas vezes alguns episódios voltavam à minha memória, sinal de que o livro, a despeito de maçante para mim, o poeta João dissera algo, fora importante.
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