22/05/2009

AMARGURAS E TERNURAS CONTIDAS











VÍCIO DOENÇA

Uma sensação de alívio. Aquele dia estava salvo. Tudo ficaria mais tranqüilo. O olhar para os colegas de escola seria mais confiante, haveria mais ânimo para enfrentar algumas aulas monótonas e, no geral, um fim de noite mais tranquilo.
A angustia ao anoitecer, era diária. Chegaria ele sóbrio ou embriagado?
Se embriagado, a angústia se converteria em constrangimento e insegurança.
A saída de casa seria envergonhada, não conseguiria sorrir porque tinha a sensação de que seus olhos, se o fizesse, revelariam seus segredos e sua amargura.
Por essa permanente incerteza, os amigos deveriam ser discretamente mantidos à distância de casa. Para qualquer adolescente, um pai não casualmente embriagado dificilmente não se constitui causa de alguns traumas.
Às vezes, uma exagerada reação agressiva com os amigos, momentos de exacerbada humildade, que se aproximavam da depressão.
Mas, nessa relação angustiada, tempestuosa e mesmo rancorosa, por incrível que pareça, há dezenas de perdões e de promessas. Quem sabe, não será amanhã o início da recuperação, sendo a vergonha em casa mais forte que a tentação da bebida?
Seria o alcoólatra um egoísta sem vontade de reagir? Pois resta-lhe o sabor e, principalmente, o conforto e a alienação da bebida. Para a família, o sabor da amargura e, para os filhos, a vergonha das ruas e a insegurança constante. Mais, a impossibilidade de entender o desarranjo havido naquele ser humano amado, que se apresenta com a personalidade destroçada pelo álcool.

Havia lá pelos lados onde morei um bêbado perdido e abandonado, apelidado de "Risadinha", apelido que se coadunava com seus cantos desconexos e suas gargalhadas por nada, salvo a visão dos seus demônios alcoólicos.
Muitas e muitas vezes tropecei nele, sempre desacordado numa esquina suja, mitório de cães de rua, estirado, desacordado e malcheiroso.
Pendurado na parede, dois metros acima onde permanecia desacordado, era fixado o cartaz do principal cinema da cidade, que mudava duas ou três vezes por semana, anunciando os filmes e os dias de exibição. Quantas vezes os títulos dos filmes coincidiam com a cena do corpo negro jogado no canto imundo: “Qual será o nosso amanhã?”, “Servidão humana”.
Numa manhã de domingo surpreendi-me vivamente com ele. Lá estava "Risadinha" de pé, sóbrio, à minha frente. Retornara à vida. Um quase ex-alcoólatra estava tentando recuperá-lo, tendo mesmo arrumado um emprego para ele. Lembro-me bem: naquele dia, ao ser oferecida uma bebida qualquer, aceitara apenas "água tônica". Era um sujeito simpático e inteligente. Naquela manhã estava perfumado e seus cabelos crespos retidos por alguma loção naqueles tempos da brilhantina.
Depois daquele rápido período de vida abstêmia, fora encontrado morto na mesma esquina. O filme anunciado no cartaz, com uma ponta de ironia, lá pendurado, fora “A fonte dos desejos”. Seus amigos de bares e de porre total, ao serem informados de sua morte, apenas comemoraram com mais uma dose. Porque havia mais que comemorar, o álcool o exigia.
Os tempos mudaram, para melhor. Antes o alcoólatra era considerado um viciado fraco, egoísta e desavergonhado.
Hoje o alcoolismo é classificado como doença psiquiátrica pela Organização Mundial da Saúde mudança que dá tolerância maior ao alcoólatra que pode se submeter a tratamento especializado.

DESPEDIDA

Acompanhei de perto os últimos momentos de vida de meu pai, acometido de insuficiência respiratória, certamente pelas décadas de fumante que foi, a despeito de, havia muito, ter largado o vício com algum sacrifício no começo. Costumava mascar "chicletes" para se livrar da maldição do cigarro toda vez que a abstenção da nicotina reclamava reposição.
Lembro dele fazendo caminhadas pela cidade, cada vez mais curtas à medida que aumentava sua dificuldade em respirar.
Nos últimos momentos de sua vida, estivera eu em São Caetano do Sul, exatamente para resolver algumas pendências deixadas por ele e minha mãe naquela cidade do ABC.
Naqueles últimos dias, ele já estava na UTI, respirando com extrema dificuldade, sendo auxiliado por aparelhos.
Após resolvidas as pendências naquela cidade do ABC, passaria no hospital em São Paulo para visitá-lo.
O trânsito estava pesado, totalmente parado na Av. do Estado. O metrô paulistano estava paralisado em greve, agravando o tumulto.
Imobilizado no meio de todos aqueles carros, ansioso por chegar ao hospital, mentalmente solidarizava-me com as pessoas nervosas de uma cidade tão difícil como São Paulo, com o povão amarrotado dentro dos ônibus superlotados ou mesmo indo a pé, como naquela tarde, pela falta de transporte que lhe fora sonegado. A poluição era sufocante e as árvores mantinham (como mantém) um verde escurecido, sobreviventes.
Quando cheguei ao hospital, o horário de visita já se expirara. A recepcionista da UTI gentilmente compreendera meu atraso. Deram-me um avental branco e um par de sapatilhas também brancas. Devagar, mantendo o equilíbrio no chão liso do hospital, cheguei à enfermaria onde estava meu pai.
Havia outro paciente ao seu lado, prostrado, adormecido.
Meu pai estava muito pálido, muito magro com o aparelho de oxigênio ligado diretamente em suas narinas. Parecia dormir.
Sentiu minha presença: abriu levemente os olhos e fez um leve cumprimento com a cabeça. Fechou de novo os olhos e pareceu adormecer.
Tentei tocar seu peito, mas não cheguei a isso. Ele estava muito magro, com o peito encolhido pela doença.
Deixei o hospital. No elevador, desci com o médico da UTI. Pergunta óbvia para uma resposta insincera e grosseira:
- Doutor, quais são as possibilidade de meu pai?
- Como você acha que vou saber? A qualquer momento ele pode se recuperar...
Perturbado com a resposta assumi insensatamente que meu pai poderia viver mais algum tempo.
Viajei à noite para o Interior de São Paulo.
Ao chegar ao meu destino, ele já havia falecido. Cerca de 15 minutos depois de minha saída.
Um sentimento de revolta contra o médico e um profundo sentimento de dó e ternura por meu pai me invadiu.
Quais diferenças e divergências passadas poderiam macular aquele momento solene da despedida?
Tudo, naqueles momentos finais, se transformara em amor e perdão.
Permanecerão para sempre em minha mente o esforço daquele aceno, a ternura de um olhar sofrido. De uma ansiada e esperada despedida que se prolongou até minha chegada fora de hora ao hospital.
Muitas vezes sonhei com ele depois disso. A separação pela morte parece impenetrável, mas em determinados estados de consciência, o véu se rompe, principalmente quando ela foi calma e sem rancores, como no caso do meu pai.


Minha mãe se tornara uma mulher forte, todos esses anos de lutas e feridas que muito tempo depois cicatrizaram mas que na velhice fizeram com que se tornasse impaciente com a vida que permanecia em seu corpo já cansado e que afetava sua lucidez mental. Nos últimos tempos, tinha dificuldade em externar pensamentos lógicos, dizia sempre que não tinha mais vontade de viver.
Tinha consciência de que a vida passara. Lembro-me dela na sua própria casa, simples, cuidando das cadelas, das bananeiras no fundo do quintal, colhendo alguns cachos de uva na parreira que constituía um caramanchão, do pé de tomate japonês e seus frutos ácidos, de suas plantas em volta, flores e abelhas. Um dia, pela manhã, fora encontrada morta. Sua passagem fora silenciosa e sem rancores. Havia muita serenidade no seu rosto. Para ela, certamente, um prêmio pela vida dura que enfrentara com bravura e com momentos de felicidade que usufruíra.
Não fora carinhosa naquele sentido de meiguice, mas esteve sempre presente, bonita e forte.
Por isso, tal a minha ternura que até hoje lamento não ter feito mais por ela e por meu próprio pai. Há momentos na vida que as coisas podem se inverter nessa relação pais e filhos.
E eu deixei passar oportunidades.

SUPERAÇÕES

Foram muitas as voltas por cima, digamos assim, que dei.
Tanto foi o esforço de superação que na cidade de São Caetano do Sul realmente tive um período, na década de 60, diferenciado, com forte envolvimento e influência na vida estudantil e na pequena imprensa.
Haveria muito que contar desses tempos deslumbrantes de realizações e influências.
Haveria que mudar o mundo.
Mas, há um momento em que a vida chama. Acaba-se o encanto como se dá ao acordar de um sonho bom.
Todo esse idealismo e autoestima foi jogado no lixo ao começar a trabalhar numa multinacional do município, me deparando com um supervisor truculento, problemático, que ignorou desde o primeiro dia meu “currículo externo”.
A despeito dele, houve períodos bons na empresa. Foi nela que comecei a me interessar pelo sindicalismo. O saldo foi positivo, mas a marca de sua ferradura permanecerá indelével no meu peito, como se gravada a ferro quente.

Herdei todos esses influxos familiares e profissionais e, por fim, casamento que já perdura por 40 anos com algum tumulto e filhos, cinco.
Da mesma forma que recebi, transmiti aos meus filhos esse distanciamento, essa tensão, até pelo excesso de trabalho que já perdura por quase 50 anos, algumas viagens ao exterior por períodos relativamente longos. Meio século de trabalho e não enriqueci. Dizem que quem trabalha não tem tempo de enriqucer.

Em comemoração ao “dia dos pais”, em 1982 recebi uma carta de meu filho mais velho que haveria que ser carinhoso na homenagem por ordem da sua professora, claro, mas que deixa transparecer minhas omissões. Sua carta que até hoje guardei:

Meu pai esta carta que estou lhe escrevendo é um tipo de um presente que mando-lhe no dia dos pais
Tenho certeza que você vai gostar dela. As palavras que estou lhe escrevendo saem da minha cabeça e não é copiada da lousa
O dia dos pais para você deve significar muita coisa porque é seu dia. Você promete muitas coisas mas demora para cumpri-las, por exemplo: quando eu queria ir no Parque Antarctica para ver o Palmeiras jogar mas isso demorou bastante, até que levasse. Você é esquisito, só gosta de estudar, não gosta de jogar nada, não gosta de montar barcos, aviões em miniatura, como os demais, só de estudar e também é vegetariano não come carne isso é muito engraçado. Não sei como resiste a uma feijoada, a um frango assado e outras coisas. Eu o admiro muito.”


Minha filha reclama desse meu distanciamento ao longo do tempo, ausência de carinho, mas não há mais jeito de recuperar isso. Apenas paguei as contas, diz ela. Aliás, herdei esse carinho contido de minha mãe. Tenho tentado alguma compensação com meus netos que já são cinco, incluindo de minha filha duas meninas gêmeas idênticas, mestiças nepônicas (japinhas).
A única coisa que posso dizer disso tudo é que, se me colocar ao lado dos meus filhos, talvez seja eu o pior deles.

(Acima, enfeitando esta crônica a foto das gêmeas idênticas, Sofie e Yarin. Ainda não sei dizer qual delas é ela e ela).

16/05/2009

SUSTOS

A guisa de explicação

Falei na crônica anterior sobre os efeitos da ligação com o ocultismo leve. Volto nesse tema. Não estou sendo repetitivo porque para cada relato exsurge um elemento peculiar. Ao absorver alguns conceitos básicos, vez por outra algum acontecimento fora do comum que ocorra, tende-se a interpretar segundo essa cultura. Demais, não será preciso lembrar a atração que produz a força mental sobre certos eventos e realizações.
Escrevi, digamos, um livro no qual misturo ficção com muitas dessas experiências pessoais. Tudo começa com um crime, havendo redenção da heroína no final. Não consigo deixar as coisas mal aparadas: "o crime é um dar de ombros" como se contata nestes tempos amargos. Quem relata essa história, aliás, é um advogado. Difícil é publicá-lo, mas sempre há esperança e os “desígnios da natureza” são invocados.
Depois, de tantos clássicos e campeões de venda que tenho lido, há páginas e páginas maçantes neles que chegam até a deslustrar a beleza da história. Claro que não quero justificar a minha mediocridade medindo a dos outros, máxime de autores consagrados.

Os sustos abaixo são pinçados desse livro. Deixo claro que, pelo menos por ora, omito outros eventos pelo receio de que mais alguma alucinação divulgada me conduza ao qualificativo inevitável de “alucinado” contumaz. Ironias e blagues à parte adapto o relato no qual há elementos verdadeiros e um pouquinho de ficção:

“Enveredar pelo ocultismo, esoterismo ou qualquer ramificação nessa linha, já se disse e digo eu, tende a influenciar o adepto para sempre. Retém ele certos conceitos, impressões e, talvez, até mesmo ilusões. Para mim fora no passado uma espécie de auto-ajuda, além de me fazer acreditar que a cada evento, a cada fenômeno a análise se dará pela lei da “causa e efeito”, que explica que aquelas eclosões foram decorrências dum ato qualquer, positivo ou negativo, perdido no tempo que vem prestar contas na hora aprazada, de crédito ou débito.
Esse indivíduo pode exagerar e se tornar mais sugestionável e às vezes tem experiências que considera aterradoras, atribuindo-as aos influxos desses conhecimentos que abriram frestas do desconhecido, do oculto, em sua alma.

Não teria coragem de relatar esta experiência que se dera mirando-me num espelho a meia luz, num entardecer beirando a noite, olhos fixados nos meus próprios olhos refletidos, e ver o surgimento momentâneo de imagem que não parecia mais ser a minha, um outro rosto em lugar do meu, disforme, envelhecido ou mal formado. Aquela experiência fora a um só tempo inquietante e reveladora porque pudera de início fixar-me nos seus próprios olhos com profundidade e encontrar timbres de uma individualidade superior (da alma?) até que a imagem distorcida tirou-me a coragem para continuar.
Coragem não teria sequer de contar essa história se não lesse em Guimarães Rosa, no seu “Primeiras Histórias”, no conto “Espelhos” uma revelação semelhante dita na sua linguagem rebuscada:
“Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei...Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento espavor. E era – logo descobri...era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?”

Há susto outro que me encorajo a relatar. Lia um livro, certa madrugada, de alto ocultismo, certamente que “Zanoni”, de Eduardo Bulwer Lytton. Naquelas páginas, se bem me lembro, num momento culminante, era relatada uma terrível experiência que um iniciado nos mistérios estava tendo, ao decidir retornar do ponto de onde chegara. Tinha o personagem visões fantasmagóricas na escuridão indevassável no caminho da renúncia. O livro escrito com tal beleza levava-me a sentir o drama do iniciado renunciante.
A escuridão, as sombras e os fantasmas, o terror enfrentado pelo iniciado que desistia e, naquele instante culminante de pavor, a luz da sala se apagou com pequena explosão: POF. Dei um salto na poltrona, busquei ardentemente o interruptor, acionei-o insistentemente sem resultado, a escuridão era impenetrável tal qual descrito no livro. Tropeçando pelos móveis da sala cuja localização tão bem conhecia, cego de terror, cheguei à cozinha clareada pelo luar que penetrara pela cortina entreaberta e aí acendi a luz. Coração batendo forte. Pus a mão no peito tentando me acalmar. Mesmo reconhecendo o simbolismo da cena tão bem descrita no livro, por muito tempo fora influenciado por aquela experiência estranha, a coincidência da luz que se apagara num pequeno estouro quando as trevas dominavam aquele trecho da narrativa que aguçava, naquele momento, minha capacidade em distinguir vultos me observando.
Fora um grande susto. Por algum tempo fugi mais cedo da noite e da madrugada a partir do momento em que ficasse só.

Meus fantasmas...que se foram...sei não!

03/05/2009

VERSOS PARA NINGUÉM (II)

A PERDA DA VEIA ROMÂNTICA

Ao se enveredar com alguma persistência para o estudo esotérico – que na verdade tem muito de auto-ajuda sem que isso se revele expressamente ou faça parte dos seus objetivos primeiros – mantém-se para sempre alguns conceitos que se leva pela vida. Eu acredito nisso e eu ainda carrego esses sintomas, embora hoje já não me dedique (tanto) a tais veredas.

Já disse – e se não disse, digo - que no campo da poesia tenho certa dificuldade em elaborar proposições românticas. É que num dado momento, obriguei-me a pisar no chão duro da sobrevivência profissional e, nesse passo, há sempre distorção de valores e desvios de prioridades.

Perde-se nesse mundo próprio a coragem pelo lirismo, e até mesmo em pronunciar a palavra ternura. Uma pena, porque os tempos não voltam. Por isso, admiro aqueles que conseguem superar esse antagonismo, obtendo refinada inspiração.

Então, do que escrevi ao longo do tempo e que consegui recuperar – porque o computador é ótima ferramenta até o momento em que uma pane descarta tudo, o bom e o ruim arquivados -, farei por temáticas, isto é, versos com semelhanças de enredo.

Seguem dois que tratam de indagações existenciais. O primeiro é completado pelo segundo:

Presente, passado e futuro

A tarde é cinzenta e fria. É outono
Bate forte o vento na janela entreaberta
Estas tardes melancólicas de sábado
me fazem viajar no tempo
E anoto quão ele é inexorável
de estação em estação.

Ligo o passado jovem com o presente
Sou eu mesmo, pena que sem mais
os projetos mirabolantes, belezas utópicas,
Sem mais as ilusões de mudar
com discursos o mundo,
Nem parece verdade todo esse trajeto.

Que posso dizer disso tudo, afinal?
Que tenho saudade do feito e do não feito?
Contabilizando os trens que passaram
sem que embarcasse?
Pelas oportunidades e o tempo desperdiçados?

Não sei bem o que sinto, na verdade.
Só sei que tal ligação passado-presente
Está aqui comigo, n’alma,
E me desperta a cada dia
Quem fui, quem sou e quem serei?

Quem sabe um idealista que queria
mudar com discursos o mundo,
Lamentando os trens perdidos
Que me levariam...para onde?
Olho do alto da maturidade
Serena e...mais além...
Lá serei uma lembrança remota
cuja presença se perderá no pó...

Inexorável!


Antigu-idade

Caminho olhando pra frente
Firme, busco compreensão sentida,
Dessa coisa que sacode ardente
Dessa centelha frágil chamada vida!

Mas, o que é isso tudo, afinal
Se a cada momento dado, há impostas
barreiras, desafios, sem prévio sinal?
Remexendo interiores, sem respostas?

Olho ansioso para o alto, então
Ouço a voz universal, tênue e piedosa
Sinto-me entre as estrelas, em solidão
Nada sei dessas luzes silenciosas!

Volto-me para mim, miro-me n’alma
Medito no todo dessa realidade (?)
Insisto em desvendar a centelha calma
Mas, apenas intuo que já vivo antiga idade...

26/04/2009

"TEMPOS MODERNOS"

Dedicado ao amigo Caio Venâncio Martins


i – Os tempos do Satriani no Ipiranga

Voltara com frequência ao Bairro do Ipiranga, em São Paulo, na rua Silva Bueno, por muitos anos, numa pizzaria famosa.
Ela me marcara porque a frequentara desde a adolescência, naquelas noitadas em que muito se filosofava, mas pouco se sabia. Havia, porém, uma grande vantagem: a televisão não tinha o poder avassalador de hoje de fazer cabeças ou, preferentemente, esvaziá-las.
Essas discussões se prolongavam,transferidas na volta da pizzaria, naqueles sábados estendidos, até as primeiras horas da madrugada para o bar nos baixos do principal cinema da cidade, tudo se encerrando com uma dose de um licor qualquer, os mais afoitos ingerindo um destilado, conhaque de preferência.
Nessas esquinas acadêmicas, eram, pois, inevitáveis esses encontros, todos querendo dar sua versão sobre o mundo, solução para seus problemas e sobre a vida. Por aqueles dias, começaram a aparecer ou se propagar, ao lado dos filósofos da moda, correntes esotéricas que principiaram a dar visões diferentes da interioridade do homem, da divindade e de Deus, debatendo-se a reecarnação e o sentido da vida. Eram os tempos dos Rosacruzes, Hermann Hesse e o seu “Lobo da Estepe”, “Siddarta”. De tudo isso, nessa mistura de ideias e ideais, espocaria o desejo de liberdade sexual e, com ela a promiscuidade, misturado ao V de “paz e amor”...
Foram tão marcantes aqueles tempos dos anos 60, para quem deles usufruiu, que certos eventos permanecem definitivamente na memória. Basta uma música, uma imagem qualquer daqueles dias, para que aflorem episódios agradáveis ou não com incrível nitidez.


ii. Tempos de maravilhas e perigos

Mas, ao lado dessas experiências maravilhosas numa época de muita perplexidade, havia também o medo: os primeiros êxitos tecnológicos nos rumos do espaço, iniciados pela União Soviética, a ascensão de Fidel Castro em Cuba implantando um regime totalitário, a guerra fria, o poderio soviético, desafiando os Estados Unidos...
Tinha em mente muito clara a figura de Kennedy. Irradiava carisma e competência. O presidente soviético, Nikita Kruchev, pelo contrário, lembrava um vendedor de gravatas, com sua careca e com seus paletós largos, um manequim acima.
A séria crise dos mísseis – que começaram a ser instalados em Cuba, mirados para os Estados Unidos -, em 1962, no embate havido entre Kennedy e Kruchev e que beirou uma guerra nuclear entre as duas potências, para mim fora a coragem de Kennedy que vencera os soviéticos.
O que se deu nos bastidores diplomáticos dos dois países não teve a divulgação detalhada na imprensa brasileira, então, ou se teve, não chegara com a ênfase que pudesse materializar uma preocupação real, pelo menos que me lembrasse.
Na sala de aula, um velho professor de francês, o Deleo, com seus gestos delicados que provocavam comentários velados, sua baixa estatura, lentes grossas, fala mansa numa noite começaria a aula com uma frase na língua que dominava:
Perguntou ele:

Jeunes, savez-vous que les États Unis et l'Union Soviétique peuvent commencer une guerre nucléaire? Ils sont déjà avec les revolvers atomiques pointés l'un vers l'autre, comme dans un duel du far west, mais où tout le monde meurt. Vous avez déjà imaginé la tragédie? Quelqu'un a-t-il compris ce que j'ai dit?
Silêncio.
- Alguém entendeu o que eu disse? Repetiu a pergunta em português.
Alguns levantaram os braços, dizendo que havia um faroeste com revolver atômico entre os Estados Unidos e a União Soviética.
O professor riu o que raramente fazia. Em poucas palavras, explicou no seu português com leve sotaque a iminência do perigo, o conflito prestes a espocar e, na sua cristandade assegurou que tudo se resolveria com a intervenção divina.

Kennedy fizera concessões aos soviéticos. Fora sua prudência que evitaria qualquer retaliação, perigosa naquela fase, enquanto não se esgotasse a via diplomática. A ameaça nuclear foi afastada.
Quando do atentado em Dallas, acompanhei tudo com muita emoção, pelo radinho de pilha, os eventos trágicos que resultaram na morte de Kennedy. A emoção se irradiou pelo mundo, perplexo com a brutalidade do atentado.


iii. Política e repressão

A guerra fria depois desse pico, teria influência decisiva no Brasil, com a suposta ameaça comunista já no Governo de João Goulart.
A reação se alvoroçara quando Luiz Carlos Prestes dissera que os comunistas estavam no poder, mas não ainda no governo.
Os eventos políticos em março de 1964 se precipitaram, resultando na deposição de João Goulart pelos militares.
Houve comemoração e alívio no âmbito da classe média alta e baixa que aplaudiu o golpe.

Tive um amigo judeu, estatura mediana, nariz adunco, sempre com seu fusca vermelho, crítico feroz de Prestes. Não fazia concessões o Isaque:
- Esse comunista, dizia ele, tivera vida política inútil, trágica. Constitui-se herói do nada. Um desastre. O que significou a “Coluna Prestes” se não uma fanfarrice? Mesmo respeitando a época em que viveu, cheia de ideologias, autoritarismos, preconceitos, guerras e violência inimagináveis, propícia à ampliação do comunismo no mundo. Debito-lhe na sua insanidade os argumentos dos ditadores tanto de Getúlio como dos militares em 1964 para implantarem a ditadura.

À medida que os militares se consolidavam no poder mais a oposição era retaliada. Políticos eram cassados, os sindicatos esvaziados, prisões políticas se tornaram rotina e os movimentos de rua reprimidos.


iv – Grupos armados

Não demoraria muito, e grupos armados se organizaram opondo-se ao golpe militar, iniciando-se uma luta surda e sórdida nos bastidores. Nos porões dos órgãos oficiais de repressão, a tortura selvagem se tornara uma prática comum. Brutal. Mas, claro que não havia santos do lado dos grupos clandestinos armados.
Jovens e estudantes inteligentes se uniram a esses movimentos alimentando um ideal ambíguo de desforra impossível. De mudar o país com o povo unido. Ideais sem povo, porém, e ideologias que não diziam respeito a muitos daqueles que aderiram à luta armada. E, pior, tombaram sem bandeira e sem razão. O estilingue contra o canhão. Essa luta armada, no fundo, dera munição aos militares para o endurecimento do regime e o “vale tudo” da linha dura fortalecida na atividade repressiva.
Parece que o medo de serem descobertos nos seus esconderijos, porque esses “soldados armados” viviam na clandestinidade, fora das piores torturas. E a elas as torturas físicas de que foram vítimas. É que certo tipo de experiência embrutece e descolore os ideais por muito tempo ou para sempre. Muitos conseguem “dar a volta por cima”, recuperar a integridade enquanto outros mantêm na sua interioridade, um sentido de ruína por todas as tensões quando descobertos e presos, pela violenta tortura física e moral a que foram submetidos, aqueles choques elétricos que revolvem o espírito para sempre.
Não foram muitos os que se decidiram por aquele caminho belicoso incluindo os que rumaram meio às cegas, mas vários foram os militantes que se deram mal. Entregaram a vida. Esse tipo de oposição fora instituída num momento de arrogância militar. Um erro de estratégia. Haveriam esses opositores que esperar o momento começando por discutir idéias nas oportunidades que surgissem. O regime militar haveria que se enfraquecer como resultado de suas próprias mazelas. Cairia de velho. O sindicalismo no ABC, mais tarde, tivera essa percepção ou agira do modo como se toma a sopa, enchendo a colher pelas bordas, saboreando-a e dera sua contribuição para a queda do regime militar.
Já disse que em outra crônica, mesmo com o esquema radical de censura, beirando o ridículo nos seus atos de desaprovar manifestações literárias e artísticas, houve nessa década um razoável nível de criatividade, uma intensa atividade cultural e musical.


v – Derribados e sobreviventes

Na luta armada se envolveu um amigo. No começo fora difícil acreditar, pela sua sensibilidade e pela sua inteligência.
Poeta talentoso, cronista e contista que mexia um pouco com os meus cotovelos, na verdade minha convivência com ele, nos tempos do colegial, não fora fácil, não só pelo seu talento, como por suas explosões e demonstração de valentia dando vazão à sua personalidade contraditória. Mas, essas atitudes ambíguas, inseguras, seriam, também, um grito interior resultado de sua própria repressão pessoal que de certa forma, em todos se manifestava com maior ou menor intensidade. E talvez pela sua origem humilde, ele que vivia num bairro modesto na periferia. O colégio onde estudávamos, embora público, concentrava, em boa parte os herdeiros da elite da cidade.

Um professor, já então usando barba espessa à moda de Fidel Castro tinha por hábito fazer pregações de natureza política contra os militares no recreio do colégio.
Algumas dessas pregações ouvi por acaso porque não era mais aluno do colégio, e já começava a me preparar para a faculdade de direito.
Para mim, ainda mantendo resquícios de um sentimento anticomunista em linha com o golpe militar – que não demoraria a se desvanecer -, sabia da notória desinformação entre a maioria dos alunos daquele professor sobre o ambiente político e a repressão que poderia gerar se pegassem em armas. Não sei se sua pregação resultou em alguma adesão. Acho que não.
Esse professor engajado na luta armada não sobreviveria, sendo morto pelas forças da repressão em 1974.

Mas, aquele meu amigo, o poeta talentoso que ingressara na Faculdade de Direito não demoraria a se engajar na “luta contra a ditadura”, mas a partir dos bancos do Largo de São Francisco.
Fugindo do país, vivendo antes a tensão de ser descoberto ou denunciado, passando pelo Uruguai, por Cuba e França, conseguiu trabalhar regularmente na então Alemanha Oriental.
Retornou ele a salvo e hoje escreve crônicas e poesias admiráveis. Sua sensibilidade pela sua experiência e até pelo remédio do tempo, fora aguçada. Sobrevivente, vive da inspiração.
Revirando papeis daqueles tempos encontrei um poema que ele escreveu ainda como estudante do antigo clássico:

"Somos assim como mares profundos,
praias desertas, que quando assoladas
recobrem com areia as pegadas
da vida passada em outros mundos."


vi – “Lindo sonho de amor que tão cedo acabou"

Num jornalzinho do Grêmio – entidade dos estudantes do colégio-, encontrei de sua autoria uma espécie de poesia sobre alguns alunos de nossa classe a qual denominou "ABC da turma brava".
Transportando-me exatamente para aqueles dias, bate nos meus ouvidos uma música romântica que, infelizmente, não sei o autor e menos ainda o cantor que tinha o seguinte trecho: "Ah, lindo sonho de amor, foi o nosso romance que tão cedo acabou..."
É que, na nossa classe comum, havia algumas garotas que se destacavam pela sua beleza. Uma, injustamente, era apelidada de "Bolinha" porque, dizia-se, fora gordinha.
Nesse clima e pela minha participação estudantil forte tive alguma aproximação com ela.
Seus interesses estavam definidos, principalmente ingressar numa faculdade de renome, não só pela sua inteligência como aplicação nos estudos. E nesse objetivo, obtivera sucesso.
Certo dia em plena aula, como péssimo aluno que fora, comecei a fazer "graças" sem qualquer graça talvez querendo impressioná-la. Eis que ela já aborrecida ameaçou-me:
- Se você não parar com isso atiro-lhe este livro.
- Quero ver, disse eu duvidando.
Desafiada, ato contínuo, o livro veio em minha direção, sem qualquer conseqüência.
Claro que o livro voando pela sala, resultou num "zum, zum, zum" porque fora um plena aula, incidente logo esquecido. Encerrou-se o ano e o curso e cada um foi para um lado.
Eis que no seu "ABC da Turma Brava" esse episódio fora registrado assim:
"Diz um "M" que é de MM...
rapaz que nunca sai da linha,
e quando tentou levou foi mesmo
uma livrada da Bolinha".

Estais achando uma extrema pieguice?
Mas, saibas, foi “um lindo sonho de amor que tão cedo acabou.”