REPUBLICAÇÃO: Resolvi republicar esta longa crônica, chamemo-la assim, por conta de um desses momentos de reflexão e desinteligências em que as respostas não vêm para aquelas mesmas perguntas que se perdem no vazio do insondável. A frase não é, para mim, de efeito...
Estava num momento de humildade e ansiedade, olhando para aquelas paredes brancas, sem nenhum atrativo. Havia que me consolar com algumas experiências, que foram tantas na minha vida profissional.
Lembro de Roberto, nome fictício, porque não poderia usar seu nome verdade.
Esse cara fora um caso excepcional de mudança de caráter e de rumo, eu sempre pensei assim.
Roberto fora um executivo de empresa multinacional que um dia "cansado de ser conduzido pela vida" decidiu abandonar a carreira vitoriosa passando a levar vida modesta no litoral paulista, embora desfrutasse de excelente situação financeira.
Lembro-me bem do relato que ouvi numa palestra, naquele dia que me escondi no fundo do modesto auditório, como se pudesse ser reconhecido por todos aqueles a quem não conhecia. E não me conheciam.
Uma certa presunção de minha parte porque, afinal, era gerente médio de multinacional. Bobagem.
A nova forma de viver adotada por ele tinha lá seus momentos de tédio, a despeito de ser ávido ledor e dispor de enorme disposição para apreciar o mar, as paisagens que descobria percorrendo todo o litoral paulista avançando para o norte com seu barco.
Certa feita, só, saiu pelo mar meio sem rumo para pescar. O sol do meio-dia estava muito quente, batendo forte em seu rosto. Sentia certo desconforto com aquele calor intenso, o balanço do barco lhe provocava enjoo, por isso meio arrependido por estar ali, naquele momento. Desviou-se para os intensos movimentos na vara de pesca presa numa saliência externa da cabina.
Um peixe de cerca de 60 centímetros mordera o anzol. Era o primeiro do dia. Sem muita dificuldade, o peixe foi trazido para o barco debatendo-se violentamente relutando à morte certa, posto num chão quente sob sol escaldante.
O peixe ferido querendo a vida, Roberto perturbado pelo sol intenso sobre sua cabeça. Uma leve tontura o prostrara. O enjoo se agravava, ele que superara esse sintoma havia muito depois do vexame numa excursão de alto nível num barco moderno.
Mar agitado, seu estômago não resistiu, resultando no vômito de vento que se prolongou por tempo suficiente para chamar atenção de outros executivos, obrigado a ouvir piadas. A reação de um executivo português debochado:“Estas a vomitar seus pecados”.
Fixando-se no movimento do peixe, sua cabeça começou a rodar. Parecia estar próximo de um desmaio. Com a sensação de estar também preso no anzol? Olhou para o mar e não o viu claramente. Quanto mais procurava enxergá-lo mais ele se transformava num ...deserto. As ondas além transformavam-se em dunas e a leve brisa em tempestade de areia violenta. No meio dela, parecia ver vultos humanos mal formados em movimentos apressados, parecendo acenar para ele. Em vias de perder o sentido, recostou-se na cabine do barco. O peixe debatia-se bravamente ao sol, mas dava agora sinais de sua morte iminente. Roberto voltou-se para ele como pôde, com cuidado livrou-o do anzol e o devolveu ao mar.
- Quem sabe ainda sobreviva, dissera confuso, com o estômago na boca. Veio-lhe a frase de Tolstoi em “Ana Karenina” que jamais esquecera: “Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Permanecendo quieto na cabina, bebendo água gelada, molhando a testa suada com ela, foi se recompondo. Uma hora depois, mais disposto, voltou ao controle do barco, retornando à terra, embora ainda tonto com o mar e o deserto que eclodira em sua mente.
A noite fora tranquila. Lá pelas tantas da madrugada, levantou-se e permaneceu na varanda ouvindo o marulho, recebendo no rosto, em cheio, a brisa refrescante de uma noite muito quente.
Mas, claro que a "miragem" do deserto lhe martelava a cabeça. Tudo bem que fora um mal-estar provocado pelo calor, pelo enjoo, pelo sol. Mas, porque a imagem do deserto, suas dunas ampliadas de ondas baixas e a tempestade de areia tão autênticas?
Passara, então, a fazer uma autocrítica. O que significava sua vida, desde que passara a residir no litoral, senão uma vida ociosa, mentalmente estéril, a caça predatória de peixes porque nem sempre os consumia? Afinal, não abominava a caça como esporte, a própria pesca esportiva, tão ridícula e as touradas?
A impressão que tivera então de si próprio é de que se encontrava num processo de decadência mental, porque vida interior ele não possuía nenhuma.
Em poucas palavras: o deserto que vira em sua quase insolação era rigorosamente ele próprio, sua alma clamando por mudanças. Voltou para dentro da sala confortável, entrou no pequeno escritório e consultou um mapa da África. Com o dedo "viajou" por todo o Deserto do Saara, começando pelo Atlântico Norte.
Lá estava o Marrocos e a cidade de Casablanca. Viajou mentalmente embarcando no filme do mesmo nome, que ajudou a celebrizá-la, Ingrid Bergman linda, jovem. Em seus ouvidos, a música do filme soava harmoniosa ("As time goes bye"), cantada por "Sam", até que "Rick" (Humphrey Bogart) melancólico o interrompeu. E nesse momento reencontrou sua ex-amada. Quem dera houvesse um bar como aquele, o "Rick’s Café Americain" do filme!
Decidira que em poucos dias viajaria para o Marrocos, não para encontrar o "Rick’s Café", uma figura de ficção, mas para chegar às margens do Deserto do Saara por aquele país. Viajaria de camelo, conheceria alguns oásis e a vida que neles existia.
Quem sabe, conforme ironicamente pensava, visse o mar no deserto, da mesma forma como vira o deserto no mar.
Dois meses depois, viajou para o Marrocos, rumando logo para Casablanca, a principal cidade do país, moderna, sem perder, mesmo com a forte influência européia, o timbre da cultura árabe. O cenário do filme jamais existira. Talvez nos bairros periféricos pobres afastados do centro da cidade poderia haver alguma semelhança. Só isso.
Uma breve troca de impressões no café do aeroporto de Casablanca com um turista chileno que voltava para o seu país, impressionado com o que vira em sua excursão ao Marrocos lhe alertara da possível decepção.
Dois dias depois viajou para a Tunísia, um país pequeno, pouco conhecido, mas com monumentos excepcionais. Gostou de Tunis. Comunicando-se em inglês, nada fácil num país que fala árabe e francês, conseguiu sobreviver com os resquícios da língua que sempre odiara nos tempos da escola. Hospedou-se num hotel quatro estrelas, simples e confortável com talento de três, porém
Uma tarde, desorientado e cansado de ouvir o som de múltiplos idiomas especialmente o árabe e o francês, parando para se recompor ao lado duma loja de tapetes num dos centros comerciais de Tunis, com muitas ruelas e dezenas de lojas, foi abordado por um dos comerciantes que falou em francês e depois um espanhol rudimentar, língua falada nesses centros comerciais, oferecendo-lhe seus artigos.
Ao saber que era o visitante, brasileiro, quis saber tudo do país, do futebol ao Carnaval e se era a festa pagã tão imoral como falavam e que vira algumas fotos numa revista. Cheio de “mulher pelada”. Roberto explicara que se tratava dum acontecimento com forte apelo turístico e que os abusos vinham diminuindo. O carnaval de rua era sobretudo uma festa do povo na qual se misturavam ricos e pobres que se deslumbrava com o luxo das fantasias e que as escolas eram constituídas de gente simples e sofrida das favelas, na maioria. Eram seus dias de extravasar e esquecer as dificuldades. Mas, que o Brasil não era só carnaval e futebol, havia cidades de grande projeção, como São Paulo.
Antes de sair, comentara que no dia seguinte, porque nada havia planejado, tentaria fazer uma breve excursão pelo deserto, fora do circuito turístico, passando algumas noites na sua imensidão, despojando-se quanto possível do seu “status”. O comerciante com muita simpatia, de pronto apontou para um homem próximo, de pé, do lado oposto da galeria, numa loja de artesanato, alto, pele morena queimada de sol, rosto fino, barba trabalhada. Roberto percebeu que ele os observava. O comerciante chamou-o e ele se aproximou.
- Ele é um excelente guia, você aprenderá muito com ele se quiser que ele o acompanhe. Isso se o senhor abrir mão do luxo. Pode confiar, ele organizará tudo. Ele conhece tudo. Ele speak English.
Ao encará-lo percebeu que seus olhos transmitiam algo diferente, talvez serenidade. Comunicava-se num inglês razoável. Quis saber Roberto de onde era, de que região, se tunisiano o seu possível guia, ele desconversou apenas fazendo um gesto girando a mão direita apontando o indicador para o alto, dando um sentido de que poderia ser daquela região. Revelara-se de poucas palavras.
Dois dias depois, preparado, com as informações precisas e a ajuda do guia taciturno aproximou-se do deserto do Saara enfrentando na viagem algo em torno de 800 quilômetros dentro de um jipão.
Embora existindo opções mais modernas, ao adentrarem no deserto, boa parte do trajeto foi vencido no dorso de camelos, assim preferira Roberto, esses animais admiráveis, mal humorados, nascidos para servir os habitantes e os visitantes do deserto.
Roberto passou a habitar uma tenda e lá, naquele ambiente tão precioso para os nativos, tão simples, convivendo com golfadas de vento forte e tempestades de areia, finíssima, começou a ter impressões do deserto, especialmente ouvindo o seu silêncio.
Numa noite fria do Saara depois de um dia de alta temperatura que o fizera suar em bicas, tivera a primeira sensação da imensidão do universo sem fim, sem começo, sem data, habitado no alto por milhões de corpos celestes. Como tudo aquilo poderia ser possível? Que forças administravam aquele universo cadenciado? Casualidades é que não poderiam ser. Um susto: sob aquela imensidão, tivera despertado, tão marcantemente, a consciência de sua mortalidade. Ou de sua imortalidade...
À medida que insistia em contemplar aquele paisagem, aquela formação de areia a perder de vista e especialmente o teto inatingível do deserto mais reforçava a idéia de sua fragilidade, de sua humilde condição humana. Com dificuldades de comunicação, tendo pouco contato com os demais habitantes, solitário, sentiu-se aliviado ao voltar, saindo do deserto com aquele seu guia que sempre estivera por perto e chegara para acompanhá-lo no retorno. Na viagem depois de um longo silêncio, já se aproximando de Tunis, Roberto comentou:
- Permanecer no deserto, no seu imenso silêncio e imensidão, fez-me mais humilde, mais resignado. Vou pensar muito no que vi e senti.
A resposta seca de seu guia:
- O primeiro passo para a sabedoria, porque você se despoja da vaidade e da arrogância mundanas que para nada servem, só atrapalham aquilo que você parece estar buscando.
- Mas o quê “parece” que eu estou buscando, eu não disse que estivesse buscando algo.
O guia manteve-se em silêncio, olhando a frente pelo parabrisa do veículo, sem se voltar deu uma resposta enigmática:
- Creio que um oásis verdadeiro em sua vida onde você se prostrará, nem tanto o mar e sua brisa, nem tanto o deserto e sua quentura.
Roberto ficara atônito com a resposta pela referência "ao mar", mas silenciou, até porque seu interlocutor fizera o mesmo. No dia em que Roberto se dispôs a voltar para o Brasil, esse seu guia, com a mesma atitude silenciosa despediu-se com alguma simpatia, falando em português, língua que desconhecia, uma única palavra: PAZ !
Roberto era alto, naquela manhã apresentara-se com barba trabalhada grisalha, cabelos também grisalhos, com fios ainda resistindo, rosto escurecido pelo sol, atrás de uma mesa simples, numa pequena sala de sociedade de bairro, propondo-se a falar para não mais do que 30 pessoas, algumas humildes que nas fábricas nas quais fora diretor jamais dele se aproximariam. Seu semblante apagara aquela imagem altiva e mesmo arrogante que transmitia nas fotos estampadas nos jornais e revistas de negócios de outros tempos.
Sua palestra fora até simples, enfatizando os aspectos ecológicos que cada um tinha o dever de se preocupar diante do enfraquecimento das potencialidades da Terra tal a devastação que se processava, o respeito aos animais que são seres vivos em evolução, a busca pela paz interior, meditar como forma de ampliar a consciência, melhorar como indivíduo e o próprio mundo.
Foi bastante didático. Fixou num tripé uma mapa da Europa e do norte da África que trouxera debaixo do braço e com uma varinha de bambu envernizada, parecendo parte de vara de pescar, explicou a localização do Marrocos e da Tunísia e circulou com o indicador todo o imenso deserto do Saara.
Encerrada a palestra, no momento das perguntas Roberto fora mais preciso nas suas ideias.
De uma mulher negra, simpática, cabelos desgrenhados:
- O seu destaque à palavra paz, deixou-me na dúvida. Qual o significado que ela contém, até pelo fato de seu guia do deserto, ao se despedir, tê-la pronunciado em português.
- Porque a paz contem perdão e amor. (Roberto falando de perdão e amor?). Talvez seja o perdão a maior de todas as virtudes, porque pode significar a resignação, até mesmo uma renúncia, diante de uma ofensa ou de uma traição. Vejam que a traição é de tal ordem devastadora, que muitos traidores são tão célebres quanto os traídos ilustres. O perdão sepulta o ódio, o rancor e a vingança, que são forças destrutivas que nos levam a contrair dívidas à luz da balança universal. Ofensor pela sua ofensa e ofendido pela vingança, têm a mesma culpa que permanece registrada na alma de cada um para ser purgada no momento propício. Só o perdão ameniza a culpa do ofensor que pode se arrepender. Eis porque se constitui num gesto tão difícil de ser praticado. O perdão é manifestação de amor. Um chavão muito utilizado em campanhas ou algo assim é profundamente verdadeiro: o amor é construtivo, a antítese do egoísmo, da indiferença e do ódio. Ele pode significar um gesto, um sorriso, uma palavra de estímulo e até mesmo renúncias para ser oferecido em toda a sua plenitude aos semelhantes. Aí está a paz. Não foi Cristo quem recomendou aos seus Apóstolos: encontrando alguém digno na cidade, ao "entrardes na casa, saudai-a dizendo: Paz seja nesta casa"? Vejam! PAZ como saudação cristã.
De um homem com fortes rugas no rosto, cabelos grisalhos, camisa vermelha desbotada:
- O Sr. falou muito em contemplação, meditação, etc. Sei de religiosos que passam a vida meditando. Tal prática não significa uma posição inútil em relação ao mundo que precisa tanto de ações objetivas?
- O homem é muito poderoso pela força de seu pensamento. Há alguns semelhantes nossos que são de extremo brilhantismo e desvendam coisas maravilhosas. O pensamento é uma força poderosa. Formularei uma imagem talvez até já tenham ouvido algo semelhante: já não passaram os senhores nas proximidades de um local fétido e, no meio da deterioração dos elementos, uma flor aparece linda, exalando um perfume que todos aspiraram com prazer e alívio, amenizando a podridão em volta? Todos perguntam: como é possível isso? Pois bem. Esses religiosos, com esse tipo de vida que escolheram, propagando pensamentos de paz, amor, caridade e perdão isolados em suas celas longínquas, são como o perfume da flor a que me referi, expandindo pelo mundo. Muitos captam essas vibrações que permanecem em sintonia própria na nossa esfera mental e, por vezes, como se falassem à própria consciência, mudam repentinamente para melhor a atitude do receptor em relação ao semelhante. Muitos são os perfumes que melhoram o mundo. A oração do devoto pode surtir o mesmo efeito. E infelizmente, os sentimentos de ódio, imagens de ódio, também, mas em sentido contrário.
De um jovem que ouvira tudo de pé, num canto do auditório, rosto redondo com aquele ar cético:
- Parece que, para buscar o autoconhecimento, é preciso ser rico. O Sr. fez uma viagem cara aos desertos. E para os que não têm dinheiro para essas viagens?
- Li em algum lugar uma fábula mais ou menos assim: o discípulo abordava seu mestre, um sábio, todos os dias, dizendo-lhe que queria conhecer a verdade. Depois de muita insistência, certo dia, o sábio convidou o discípulo para irem a uma lagoa próxima. Lá chegando, o sábio num gesto rápido levou a cabeça do discípulo para baixo da água deixando-o assim, por alguns instantes. Quando o discípulo se recompôs da surpresa, o mestre lhe perguntou: - O que você mais desejava quando estava com a cabeça sob a água? Ar, respirar, respirar, respondeu o discípulo ainda atordoado. Com aquela mesma intensidade de respirar deverá partir em busca da verdade, ensinou-lhe o mestre. Claro que esse tipo de "busca da verdade" escapa de nossa vontade imediata. Uma forma alternativa de conseguir alguma maturidade no caminho do conhecimento são exatamente as viagens aos locais conhecidos como sagrados ou julgados inspiradores. Pelas suas vibrações ou por nossa própria receptividade mental em lá estar, podem nos inspirar e nos abrir frestas importantes no nosso autoconhecimento. Mas, mesmo esse recurso é limitado. O aspirante prega a iluminação interior, o encontro da paz, mas num dado momento ele próprio não avança. As revelações interiores estancam. A partir daí, com todo o cuidado no rumo a seguir, talvez seja necessário buscá-la com a mesma intensidade que tinha o discípulo em respirar quando com a cabeça sob as águas do lago. E essa busca dispensa viagens exteriores, só interiores.
De um homem idoso, calvo e sorridente:
- O Senhor é um homem poderoso e rico. Por que agora assume posição tão modesta, vindo falar para pessoas tão simplórias, operários e operárias como nós?
- Certa vez, há muitos anos esbocei algumas poesias e, numa delas, muito antes de saber que seria um "poderoso" - para usar seu qualificativo - escrevi um verso com esta mensagem: "respeitemos o homem que é rei e modesto". Qual a primeira ou a principal das virtudes do ser humano? Amor ao próximo? A honestidade? A lealdade? A amizade? O altruísmo? Se fosse feita essa pergunta a qualquer dos senhores, talvez uma dessas ou todas as mencionadas fossem de pronto citadas. Mas, e a modéstia? Não seria, também, uma destacada virtude? A própria palavra vibra simplória: MODÉSTIA. Ela pode ser usada como algo de pouca expressão: "aquela casa é modesta". Mas, a sua existência como virtude humana, parece agregar um pouco de todas as outras: o amor ao próximo, porque a modéstia respeita o semelhante, a honestidade, porque a modéstia se encaminha para o desprendimento de certos valores normalmente aproveitados pela soberba, a lealdade e a amizade, porque a modéstia tende a não reconhecer a perfídia e defende o altruísmo, porque ela vê pelos seus próprios olhos um semelhante que pode necessitar de ajuda, sem esperar reconhecimento. Tanto que o dicionário Aurélio a define utilizando palavras como "simplicidade", "reserva", "pudor", "decência", "gravidade", "compostura". Ela contém um pouco de todas as outras virtudes ou tem afinidades com elas. Eis porque parece difícil ser-se modesto sempre, desprendido. Nos textos filosóficos a modéstia ocupa lugar especial. Assim, Jesus Cristo, no "Sermão da Montanha", na versão de São Mateus (5, 3), "abrindo a boca" disse: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus." Costuma ser aceito como correto significado para "pobres de espírito", os humildes. No "O Evangelho Segundo o Espiritismo" de Allan Kardec: "Por pobres de espírito, entretanto, Jesus não entende os tolos, mas os humildes, e diz que o Reino dos Céus é destes e não dos orgulhosos." Um dos significados de "humildade", no mesmo dicionário, é exatamente a modéstia. Mas, muitas vezes aquele humilde, desprovido de bens, não é necessariamente modesto, mas revoltado, amargo. Pode até ser compreensível esse estado destrutivo pela sua existência dura. A modéstia contempla, também, certa serenidade. Daí ser uma virtude tão excepcional. No "I Ching – O Livro das Mutações", um livro de conhecimento da antiga China, uma espécie de oráculo com tem um método próprio de consulta e há dificuldade de interpretação das mensagens formuladas, surgido "no período anterior à dinastia Chou (1.150-249 a. C.)", na tradução do alemão Richard Wilhelm (*), o hexagrama 15 denominado "modéstia", tem posição destacada: "O destino dos homens segue leis imutáveis que têm de ser cumpridas. Mas o homem tem o poder de moldar seu destino, na medida em que sua conduta o expõe à influência de forças benéficas ou destrutivas. Quando um homem está numa posição elevada e é modesto, ele brilha com a luz da sabedoria. Quando ele está numa posição inferior e é modesto, não pode ser ignorado". Disse tudo aquilo de memória. Essa é a modéstia que me empolga. Aquela que, em vez de enfraquecer, fortalece. Que não pode ser ignorada, porque sobretudo corajosa, um paradigma que às vezes incomoda os circunstantes. Ela é, pois, um referencial. E continuou, depois de um gole de água:
- Mas, o que parece certo é que a soberba é mais agressiva, mais ambiciosa, assustadora e predomina no mundo. Eu sei disso porque convivi nesse mundo de competição e posso dizer que combati a soberba com a soberba. Mas, os tempos mudaram. Sendo a soberba uma não virtude ela tende a manter as desigualdades subestimando ou minimizando as virtudes do respeito ao próximo, da honestidade, da lealdade, do altruísmo. A modéstia contrapõe-se à arrogância e à violência. Proponho, pois, um mundo "modesto"? Uma utopia? Trazer o céu para a terra? Não é bem isso. Seria uma impossibilidade. Sabemos que nosso mundo é naturalmente o mundo das desigualdades. Com ela, a modéstia, cultivada numa permanente autocrítica do indivíduo, possivelmente fizéssemos o mundo apenas um pouco menos desigual, um pouco menos doente. Com mais amor, mais amizade, mais lealdade, mais altruísmo.
Tudo aquilo Roberto dissera sem consultar nenhum texto. Essa agilidade mental poderia explicar sua ascensão profissional invejável.
Depois de uma pausa, olhando fixamente para seus ouvintes, em cada rosto, solenemente:
- Mas, não pensem os senhores que cheguei a esse nível de "modéstia". O que acabei de lhes relatar é apenas uma aspiração pessoal que tenho em mente. Não sei se chegarei um dia a tanto.
Esse foi o último comentário de Roberto.. Acenou para todos e exclamou: Paz! Ao sair foi rodeado pelos seus ouvintes, recebendo-os com um sorriso e apertos de mão.
Eu lá no fundo, perplexo com tudo aquilo, com a transformação daquele que fora espécie de ídolo no meio profissional, retirei-me cabisbaixo. Orgulhosinho ferido, havia uma dorzinha de cotovelo pelas minhas impossibilidades.
(*) Refere-se, creio, à edição da Editora “O Pensamento” – não houve questionamentos da platéia sobre detalhes do I Ching.
Fotos:
1. Mar (Google)
2. Casablanca – centro “Boulevard de Paris” (Wikipédia)
3. Mercado da Medina – Tunis / Tunísia (http://desciclo.pedia.ws/wiki/)
4. Camelos no Deserto do Sahara (http://ilustracoesbiblicas.blogspot.com/
Um comentário:
Dr. Milton. Que texto maravilhoso! Este "Roberto" aprendeu lições preciosas da vida e soube como transmiti-las. Ah, meu amigo, como eu gostaria de me refugiar numa beira de praia para viver de peixe, brisa, luz e oração! Um forte abraço de sua fiel leitora.
Marisa Bueloni
Postar um comentário