20/12/2010

REGRESSÃO (III): CARROCINHAS

MEMÓRIA: UM BRINQUEDO INESPERADO. UMA SURPRESA

Vou retornar no tempo, há muito tempo.

Eu ainda morava em São Paulo, na Lapa, bairro onde nasci. Na rua Roma.

Tempos de “pureza”, mais do que nunca, palavrão era pecado.

Criança, 6 ou 7 anos, saía sem medo pelas ruas dava a volta no quarteirão e parava nos escritórios da fábrica de máquinas de costura Leonam (Manoel ao contrário porque o dono seria Manoel Ambrósio Filho). As ruas eram praticamente desertas.

Tenho leve lembrança de queixas da derrota do Brasil na Copa de 1950 no Maracanã.

Acho que, pela família palmeirense, não sei se ainda na |Lapa ou já em São Caetano tenho distante a voz do incomparável narrador Pedro Luiz emocionado com a conquista pelo Palmeiras do campeonato mundial interclubes em 1951, comemorado apoteoticamente por 100 mil torcedores no mesmo Maracanã. Acho que meu irmão empolgado dissera: “o Palmeiras é campeão”. Não sei se foi nesse campeonato…

A proximidade do Natal e do Ano Novo tinha um sabor especial, muito mais do que agora, certamente. Naqueles idos na Lapa, a família toda se reunia na casa de um tio e lá havia a ceia do dia 31 de dezembro.

Minha mãe, excelente cozinheira, uns dois dias antes do Natal se unia às minhas tias e começavam a prepará-la.

Todos se uniam, meus primos e primas, meus pais, meus tios que contavam "causos", piadas, havia um clima de descontração pelo Natal, desprovido do apelo comercial de hoje e na véspera do Ano Novo, na virada, o rádio transmitia a corrida de São Silvestre. Em 1950 venceu um belga.

Penso que meus pais enfrentavam problemas, tanto que logo depois mudamos para as imediações de São Caetano, um trauma para minha mãe porque tudo estava por fazer, uma cidade que obtivera a autonomia havia dois anos.

Há desses momentos que não se esquece. E foi na Lapa. Guardei para sempre pelo gesto que surpreendeu o menino.

Fora, também, resultado de um impulso decidido, há quantos anos!

Quanto a mim, lembro-me bem, não sabia se meu presente de Natal seria bom. Se haveria presente.

Dias antes do Natal, meu primo fora ao "jardim de infância" para a festa da escola onde estava matriculado. Era perto de onde morávamos.

Fui com ele mas não tive coragem de entrar. Eu não "era" da escola.

Fiquei no portão e pude ver à distância todas as brincadeiras, as balas distribuídas e, para surpresa geral, no fim da festa, a escola distribuiu brinquedos a todos os alunos.

As crianças que estavam fora, vendo os presentes nas mãos dos meninos que saiam contentes, permaneciam boquiabertas pelos brinquedos que não ganhariam do "jardim da infância". E quiçá, do papai noel que naqueles tempos era uma figura comercial, mas nem tanto.

Eu não poderia ficar sem brinquedo também.

Criei coragem, entrei na escola quase vazia e vi-me numa sala ampla, toda enfeitada.

Uma mulher lá estava. Não me lembro do seu rosto? Era jovem? era velha? Bonita ou feia? Talvez mais jovem que velha. Jeito de professora, com certeza:

- Também quero um brinquedo, afirmei meio trêmulo com os olhos voltados para o chão.

A mulher, surpresa com o pedido, olhou-me por alguns segundos e sem relutar pegou sobre um armário uma carrocinha de madeira, puxada por um cavalinho. Caprichada, perfeita. Estava desembrulhada, sem a caixa. Talvez por isso tenha sobrado.

Entregou-me:

- Para você.

Foi demais. Inesquecível. Minha mãe ficou surpresa e contente com o presente inesperado que recebera. Jamais esquecerei essa carrocinha, pela forma como ela me foi dada.

Naqueles tempos e hoje com jogos eletrônicos e tudo, ainda acho que há uma idade em que a criança se encanta com um brinquedo. E quando ele é dado como foi dado sem qualquer relutância, seu valor se multiplica e permanece para sempre na memória.

Há um sentido de leveza e intensidade na gratidão a lembrar e a relatar.

Ainda que tenha sido há muito tempo, enleva tanto quem concede sem relutar, como quem recebe tanto que até hoje tenho guardada (na memória) essa carrocinha e seu cavalinho...



 A CARROCINHA
 
Um texto diferente  com outros episódios:


- Como vai nessa vida de riquinho? - Você sabe, esses caras falam tanto em reciclagem hoje, mas meu pai sempre teve consciência de que a cata de papelão, lata seria espécie de limpeza do mundo. Pobrezinho, ele sempre me dizia isso, querendo externar algum orgulho pelo que fazia, puxando aquela carrocinha cheia de tranqueira que ia catando. E os garotos caçoando dele. - Sabe que eu me lembro dele, com aquele chapéu batido, aquelas botinas gastas! - Então, naqueles tempos que pulávamos a veleta no fim da rua e saíamos naqueles campos com mato baixo a cata de ovos de patas, as peladas memoráveis no campinho. Por causa de uma delas não ajudei o velho num dia em que logo cedo, disse que não estava bem. Olhou para mim, fiz que não era comigo e não saí com ele. A consciência ainda me dói, meu amigo, ele morreu puxando a carrocinha naquele dia. E como foi difícil encontrá-lo, ou o seu corpo, que já estava sendo tratado como indigente. - Eu sei disso tudo. Só se falava nisso... - A família precisa comer, minha mãe adoentada. E nisso vi que tinha que assumir a carrocinha. E fui assumindo ainda menino. Eu, mas você também fez isso, enrolava fio de cobre descascado numa peça de ferro para ficar mais pesado e lá vinham os trocados do ferro velho. Com alguns tostões íamos à venda para comprar copinhos de hóstia com bananada. Que tempos, cara, que tempos! Foi por aí que fiquei riquinho, mas no diminutivo mesmo. Meu orgulho. - Essa história de carrocinha e seu pai me leva aos meus tempos de infância, um pouco antes disso, ainda. Não me lembro bem se meu pai voltara ou não ao alcoolismo. Acho que não. Essa doença fora provocada pela própria grande empresa de bebidas naquilo que hoje chamamos de “happy hour”. No fim do dia, o consumo de bebidas ficava meio liberado, o chope e mesmo destilados que ela produzia naqueles tempos. Essa facilidade deu no que deu. Eu ainda morava em São Paulo, na Lapa, bairro onde nasci. Há desses momentos que você não esquece. Guardei para sempre pela gratidão que ficou. Fora, também, resultado de um impulso decidido, há quantos anos! Naqueles tempos, a proximidade do Natal e do Ano Novo tinha um sabor especial, muito mais do que agora, certamente. As famílias se reuniam e usufruíam a ceia que todos se empenhavam em preparar . Minha mãe, excelente cozinheira, uns dois dias antes do Natal se unia às minhas tias e começavam a prepará-la. Todos se uniam, meus primos e primas, meus pais, meus tios que contavam "causos", mentirinhas mas, rigorosamente, havia um clima de emoção do Natal, desprovido do apelo comercial de hoje. Na véspera do Ano Novo, na virada, o radio espocava com a corrida de São Silvestre. Quanto a mim, lembro-me bem, não sabia se meu presente de Natal seria bom. Dias antes do Natal, meu primo fora ao "jardim de infância" para a festa da escola onde estava matriculado. Era perto de onde morávamos. As ruas eram praticamente desertas. Fui com ele mas não tive coragem de entrar. Eu não "era" da escola. Fiquei no portão e pude ver à distância todas as brincadeiras, as balas distribuídas e, para surpresa geral, no fim da festa, a escola distribuiu brinquedos a todos os alunos. As crianças que estavam fora, vendo os presentes nas mãos dos meninos que saiam contentes, permaneciam boquiabertas e tristes pelos brinquedos que não ganhariam do "jardim da infância". Muitos, nem do "Papai Noel" – que figura essa, que hoje me irrita. O cara todo de vermelho, barbudo, agasalhado num clima de quase 40°. C, com aquela risada ridícula: compre, compre, compre! Eu não poderia ficar sem brinquedo também. Criei coragem, entrei na escola quase vazia e vi-me numa sala ampla, toda enfeitada. . Disse à mulher que lá estava. Não me lembro do seu rosto? Era jovem? era velha? Bonita ou feia? Talvez mais jovem que velha. Jeito de professora, com certeza: - Também quero um brinquedo, afirmei meio trêmulo com os olhos voltados para o chão. A mulher, surpresa com o pedido, olhou-me por alguns segundos e sem relutar pegou sobre um armário uma carrocinha de madeira, puxada por um cavalinho. Caprichada, perfeita. Estava desembrulhada, sem a caixa. Talvez por isso tenha sobrado. Entregou-me: - Para você. Foi demais. Inesquecível. Minha mãe ficou surpresa e contente com o presente inesperado que recebera. Jamais esquecerei essa carrocinha, pela forma como ela me foi dada. Naqueles tempos e ainda hoje com jogos eletrônicos e tudo, há uma idade em que a criança se encanta com um brinquedo. E quando ele é dado como foi dada a mim a carrocinha, sem qualquer relutância, seu valor se multiplica e permanece para sempre na memória. Há um sentido de leveza e intensidade na gratidão a lembrar e a relatar. Ainda que tenha sido há muito tempo. Enleva tanto quem concede sem relutar, como quem recebe. Para sempre. E não tem essa de sentimentalismo barato, de memória inútil. - Eu também já ouvi essa história. Mas, isso já vai para quase um século e você não a esquece? - Não tem como. - Vamos descer para umas e outras. - Fico num copo só, vou avisando. - Eta cara chato. Ficou pior agora. Vamos lá então. Eu tomo o resto. Imagem: "Catador" - http://www.comshalom.org/blog/carmadelio/date/2009/11

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