20/06/2010

A ESPREITADORA

Explicação

Não pretendo ser lúgubre nesta crônica, embora reconheça que se trata daquele tema que muitos tentam ignorar e levam a vida pra frente, mesmo sabendo que a espreitadora anda por aí.
Eu também levo a vida pra frente mas quando se atinge certa idade, alguns amigos começam a ser “recolhidos”, pessoas importantes que foram referência também, e é nessa hora que paro um pouco para meditar sobre essa inevitabilidade.
Não fui fundo nas transcendências que o tema pode sugerir, até porque não tenho condições intelectuais para tanto
.

O recolhimento do escritor português José Saramago no último dia 18 de junho em linhas gerais foi assim descrito: tomara o café da manhã, começando logo depois a se sentir mal, teve atendimento médico, mas não resistiu às sequelas de sua doença respiratória, entre outras deficiências, do alto de seus 87 anos. As Divindades lhe garantiram um passamento suave mesmo considerando sua proclamada condição de ateu: “Deus não existe fora da mente das pessoas”. Mas, e certas emanações que provém da mente, meu ilustre “cara pálida”? Melhor não pensar?
Morte suave também se deu com meu pai, que cuidava de enfisema pulmonar que adquirira, creio eu, por conta de décadas de fumante de cigarros “quebra-peito”, aqueles “macedônia”, “continental” e outros de “altos teores”. Naqueles tempos em que os atores de Hollywood nos filmes faziam ligação de cena fumando com prazer seus cigarros. Claro que também dessa indústria deveria rolar um belo cachê.
Esse relato sobre o meu pai pode ser lido em "Amarguras e ternuras contidas", crônica de 22.05.2009.
Aquilo que de modo eufemístico, qualifico de “recolhimento”, sempre me causa perplexidades, porque o momento em que eclode, ou ocorre de modo suave, ou com extrema e traumática violência. Os acidentes aéreos são sempre impressionantes.
É a eterna espreitadora que resolve a hora e o modo de agir, aproveitando até mesmo a reunião de tantos num dado momento e lugar, por conta de “carmas” comuns, tentam explicar aqueles que acreditam na compensação de saldos que ficaram pendentes ao longo das existências. Lei de talião?
Há milhares de casos iguais a este que acompanhei por força de minha profissão o que explica o meu absoluto afastamento da área criminal. Em aulas de medicina legal meu estômago, ao presenciar certas imagens, me traía.
Um atropelamento fatal que um cliente jovem praticara, vitimando uma moça bem jovem que, depois de uma festa, caminhava de madrugada pelo leito molhado de rodovia de alta velocidade com pouco movimento naquela hora, acompanhada de outros colegas, todos alcoolizados em maior ou menor dose. Chovera muito, horas antes. Havia lama no acostamento, forçando os festeiros a andarem no meio da estrada. Uma neblina tênue dificultava a visão dos motoristas. Os faróis só em parte ajudavam porque o nevoeiro diminuía sua eficiência. O atropelamento fora inevitável, a vítima caminhava com passos incertos a dois metros no leito da rodovia, quase no seu centro.
A foto que compunha o inquérito policial me impressionaria para sempre. O rosto da jovem, jogada a metros de distância, estirada num barranco raso ao lado do acostamento, no meio de vegetação rasteira, cabelos loiros bem cuidados, olhos abertos, boca entreaberta, dentes à mostra, um sorriso macabro de surpresa, parecia não entender o fim violento da sua vida, a irreversibilidade do seu passamento. Aquela foto, aquela rosto, aquela expressão ficaram em minha mente por semanas, meses.
Muitas vezes, ao saber de atropelamentos fatais, aquela imagem angustiada, sorriso triste me assaltava, não como assombração, mas como uma advertência da fragilidade da vida que às vezes se esquece naqueles momentos de soberba.
Lembrava-me sempre dos versos de um poeta “sofredor”:
“Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...”

Afinal, uma fração de segundo antes do acidente mortal, aquela moça comemorava a alegria do baile que se encerrara minutos antes, alguns copos de cerveja a mais, desenhando sonhos e projetos já para o dia que nascia, um domingo que prometia tranquilo, após a madrugada chuvosa. O céu limpara, a noite começava dar lugar à aurora.

A lua dera o ar da graça entre nuvens que se recolhiam mas já ofuscada pela luz do amanhecer. As estrelas desapareciam também ofuscadas pela luz solar. A tragédia em nada impediria uma manhã ensolarada dando a impressão de que as árvores rebrilhavam comemorando a chuva forte de horas antes, enquanto bem-te-vis, andorinhas e pardais esvoaçavam, alguns caçando insetos despertos que saiam dos esconderijos recepcionando o sol.
Era o sinal de que a vida seguiria seu curso, cada um a experimentando segundo seu grau de merecimento até os limites postos pela espreitadora no exato instante que resolve intervir.
Muitos ela conduz por um túnel onde irradia a paz para novas missões.
Para outros, os de má índole...


Imagem: "Nebulosa de Hélice ("O Olho de Deus" - explosão de estrela semelhante ao Sol) NASA, from Google.

15/06/2010

A COPA É A DE 1958 (Quando tudo começou!)

Não me venham com essa de que o que passou, passou e que as reminiscências são exercícios de quem se volta para o passado porque no seu hoje os desencontros são doses de angústia insuperáveis.
Quanto a mim, pelas reminiscências, já fiz várias comparações e chego sempre à conclusão de que aquelas são espécie de alimento que amenizam, sim, minhas angústias nestes tempos cruéis. O que fazer? Mas, eu não desisto, não!
Lá estão as origens, lá estão as marcas dos pés que ficaram no tempo. Os passos da vida a serem contados aos que se disponham a ouvir.

Morávamos numa casa modesta, já melhorada, porém, com um quintal apreciável, duas cachorrinhas que minha mãe cuidava com carinho, um papagaio instável que só não se irritava com meu pai. Esse papagaio tinha a liberdade de se locomover por um longo arame esticado que saía de um poleiro próximo de uma parreira que pouca uva dava – se é que dava alguma – até nos fundos, no quartinho de despejo, também oficina de marcenaria de meu pai, um talento que tinha e com ele construía brinquedos e utilidades bem feitinhos.
As bananeiras também nos fundos ao lado do quartinho deram muitos cachos que viravam bananada no panelão. Eram pequenas. No meio do caminho, aquela fruta meio ácida que conhecíamos como “tomate japonês”.
Garotão em 1958, no ginasial, no 1° ano, palmeirense como todos em casa, comecei a me dar conta da Copa do Mundo, acho, quando a seleção brasileira venceu a da Áustria por 3 x 0 em 8 de junho.
À medida que a seleção ia vencendo o interesse ia crescendo na mesma proporção. Conseguiria o Brasil o campeonato mundial, finalmente? Na verdade, apenas oito anos depois, que me lembre hoje, ninguém mais se importava, então, com a derrota de 50. Acho que é coisa da imprensa, aquelas comparações absurdas, tanto que sempre que a seleção do Brasil joga com a do Uruguai, a partida se “transforma’ em revanche de 50. E o goleiro Barbosa, coitado, foi “condenado” para sempre. Que perdoe os brasileiros e a crônica esportiva no seu recolhimento.
Dava gosto ouvir a narração de Pedro Luis e Edson Leite que se revezavam nas transmissões da “cadeia verde-amarela”. Imaginem, comparar esses locutores com os de hoje – é melhor não comparar porque ofenderia a memória de ambos. Acho até hoje que Pedro Luis era palmeirense, de tão bom que era.

A coisa chegou à empolgação no jogo da terça-feira, dia 24, quando a seleção venceu a França por 5 x 2 e foi para a final com a seleção da Suécia.
Domingo, dia 29, nascera ensolarado. A decisão.
Havia nervosismo geral eclodindo no ar. O jogo começaria aí pela hora do almoço.
Todos a postos na minha casa, meus pais, irmãos, as cachorras e o papagaio temperamental se equilibrando entre um poleiro e outro pelo arame.
Logo no início o time da Suécia fez o primeiro gol da partida. Minutos depois, Vavá empataria e faria o 2°. O radio em volume alto transmitia a narração impecável de Pedro Luis. No final do 1° tempo, 2 x 1 para o Brasil, crescera o estado ansioso generalizado.

No 2° tempo o time do Brasil deslanchou: gol de Pelé, de Zagalo, 4 x 1, gol da Suécia, 4 x 2 e o “magistral gol de Pelé” (assim qualificado por Edison Leite que narrara o 2° tempo com emoção) o último, no final, que confirmaria o título para o Brasil, 5 x 2.

Fogos e rojões saíram de não sei de onde e espocaram lá nos altos do quintal, todo mundo emocionado em casa, as cachorras perdidas com aquele alvoroço incomum, trêmulas com os estouros, precisaram ser contidas e acariciadas, o papagaio maluco que, descendo para o chão, batia asas, gritando feito louco acompanhando o embalo da festa...
Ah, aquele dia de 1958! Aquela seleção sem estrelismos, sem endeusamentos, sem os milhões, profissionais que honraram o país.
O que fazer se o futebol é assim!

Até hoje reflito sobre aqueles momentos de confraternização e alegria em casa por obra da Copa de 1958 e ainda hoje quando ouço trechos da narração de Pedro Luis e Edson Leite, me arrepio.
E já despontava a bossa nova!
Meu Deus, que tempos aqueles!

Foto: Pelé aos prantos apoiado pelo goleiro Gilmar e Didi - 1958 (Google Imagens)


Página do Diário do Grande ABC de 22.06.2018

Acessarhttps://martinsmilton.blogspot.com/p/moravamosnuma-casa-modesta-em-sao.html

06/06/2010

TERRORES E TREMORES














"Ainda que tivesse sido o maior pecador dentre os homens, a nave do conhecimento da Verdade te conduzirá sem perigo pelo mar dos pecados”.
“Dirige, pois, a Mim todos os seus pensamentos e luta. Se a tua mente e o teu coração em Mim firmemente fixares, com certeza, enfim, a Mim chegarás”. (Bhagavad Gîtâ)


- Bem, pelo jeito posso lhe relatar alguns terrores que tenho guardado comigo e posso até ter escrito sobre eles mas de um modo meio poético, sabe aqueles devaneios ambíguos, nem sim nem não?
Não saberia precisar bem o momento ou suas causas. Talvez tivesse algo a ver com meu desinteresse religioso ou por fixação nalguma literatura que lera em algum momento. Não sei.
O processo fora gradativo. No começo, durante o sono, ocasionalmente, sentia-me incomodado. Nesses momentos, parecia estar lúcido no sonho, tentando desesperadamente acordar, mas alguma coisa me impedia de retornar ao "lar", de reassumir, digamos, a minha própria vida. De repente, como num estalo, acordava sobressaltado, totalmente consciente do que experimentara, de todo o mal-estar que tivera.
Acho até que na morte assim ocorre para aqueles muito apegados às coisas da terra. Talvez essas experiências, por esse lado, a mim se aplicam até que bem.
Preciso fazer um parêntesis, porém. Sabe do livrinho Bhagavad Gîtâ que já lhe falei?
- “Sublime canção”, lembro sim.
- Tem um trecho assim, dito por Krishna - que poderia ser considerado, para nós, o “Eu Superior”...
- A essência de Deus em nós?
- Diz:
“Faze bem o que te compete fazer no mundo: cumpre bem as tuas tarefas: ocupa-te da obra que encontras, para fazê-la o melhor possível: assim será muito bom para ti. Atividade é melhor do que a ociosidade.
E olha o que mais, porque a Divindade reconhece que o nosso mundo é também o da matéria:
“A atividade fortalece a mente e o corpo, e conduz a uma vida longa e normal; a ociosidade enfraquece tanto o corpo como a mente, e conduz a uma vida impotente e anormal, de duração incerta”.
E isso foi escrito lá pelo século IV antes de Cristo!
- Vida é movimento, então? Para ser bem simples. É bem atual.
- Pois bem. Passados esses momentos de terror, embora um pouco perturbado saía logo cedo para o meu mundo de obrigações, para as minhas tarefas da vida, “porque a ociosidade enfraquece...”
Certa noite, como se tocado na região dos tornozelos, tivera novos momentos de terror. Aquele toque sobremaneira físico, fizera vibrar todo o meu corpo, a alma, sei lá, tudo. Acordara instantaneamente, vivendo ainda aquelas impressões, aquele toque tão real, coração batendo a mil, trêmulo, aterrorizado, o desejo imenso de me esconder sem saber bem aonde, sob as cobertas, de mim mesmo, sabe lá. Sentia-me mal, muito mal.

Quando tal ocorria, meu dia não era bom.
Numa dessas visitas particularmente difíceis invoquei, “Jesus Cristo me ajude”. O resultado foi imediato. Acordei sobressaltado, mas instantaneamente livre daquela invasão, digamos, com alívio.


- Mas, você não se proclama agnóstico?
- Moderado meu caro, eu já disse a você sobre isso – lembre-se da minha definição particular. Tanto que nessa questão de vida e morte pendo para a reencarnação.
Passado algum tempo desses "toques" assustadores, fantasmagóricos, certa vez alguma mudança ocorreu.
Umas poucas vezes que me lembre, o sintoma do "toque" voltou a se manifestar como se me amarrasse. Mas, em minha mente, veio uma mensagem nítida:
- É benigno !
Meu corpo e alma novamente vibraram, mas de modo inspirador, tranqüilizador.
Acordei após aqueles segundos de sensações como se estivesse interiormente iluminado, com muita paz.
Na manhã seguinte, mesmo envolvido nos meus afazeres graves, carregava comigo resíduos de paz e harmonia.
- Experiências do bem e do mal, acho.
- Eu assim interpreto, mas não sei porque logo eu teria essas experiências.
Seria também uma dose tênue do evento morte ou a exteriorização dos efeitos do mal e do bem sobre nossa alma que, por uma razão qualquer me foram transmitidos. Pela fresta que se abriu no reino dos sonhos, eclodindo como um vulcão, o que se acumula no Ego inferior (o “porão”) e no superior (“uma impecável e imaculada sala de visitas”), as contradições da vida.
- E você invocou Jesus Cristo, hem?
- E como relatei, o resultado não poderia ter sido melhor. O que dizer, se não a verdade do que se passou?
- Sabe de uma coisa? Duvidava que você me contasse tudo o que me contou. Acho mesmo que o mundo dos sonhos tem “regras” próprias incompreensíveis. Eu por exemplo, não poucas vezes, me vi viajando em localidades estranhas e até conhecidas. Não é que certa vez, caminhava por uma cidade na qual vivi minha juventude e até visualizei o nome de rua nessas placas comuns que, para dizer a verdade, naqueles tempos, pouco conhecia. O nome da rua veio comigo quando cheguei a acordei. Usei o mapa para localizá-la naquela cidade. E ela lá estava.
E sabe o que mais? Isso que você me revelou daria uma crônica que até já bolei o título: “terrores e tremores”.
- É complicado falar sobre isso. Reflita muito antes de divulgar esse relato porque são experiências muito pessoais, sujeitas ao descrédito quase total. Quantos não teriam algo a dizer a respeito e silenciam. Com essas revelações alguns dirão: “o cara é alucinado, beirando a doideira”. E, claro, não se menciona nome...se você, um dia, tiver coragem de publicar. (1)


Imagens:
(i) yogasaocaetanodosul.blogspot.com
(ii) Theconspirate.blogspot.com (Jesus Cristo e Krishna)
(Google imagens)

(1) V. "Alucinações, Sonhos (?)" de 03.04.2011

30/05/2010

COMO OUSAS? TUDO O QUE FICOU...

Explicação

Estaria hoje “publicando” crônica sobre a final da Copa de 1958, tudo o que houve em volta dela naqueles meus dias. Resolvi adiar.
Mas, há dias nestes dias difíceis de viver em que as coisas enroscam na indiferença e naquela pergunta perigosa:
- Para que tudo isto? Jogue tudo para cima, ora!
Refletindo um pouco, resolvi republicar a crônica completa, me referindo sobre dois espelhos. Faço, porque de um jeito ou outro há um sentido de profundidade naqueles amores impossíveis porque assim decidiram os “futuros ex-amantes” diante das circunstâncias refletidas em seu tempo.
A crônica “Como Ousas” já foi publicada em alguns blogs. Ela completa, incluindo a parte “Tudo que ficou” somente no blog “Prosa e Verso de Boteco”, que pode ser acessado por aqui. Esse blog contém poesias e crônicas inspiradas, merecendo visitas permanentemente.


Como ousas?!

Mas, como chegara aos 70 anos?

Pois, não foi ontem de manhã que assistiu o surgimento da bossa nova, mais tarde a Jovem Guarda com o ainda hoje "rei" Roberto Carlos, já meio monótono.

E os namoros, os bailes, essas coisas?
Tudo passou de repente, embora ainda sentisse o perfume da noite, da alegria dos tempos, alguns acordes ainda chegavam aos seus ouvidos, sabe lá de onde. Do éter? Ora!

- Como é bonita a Deyse, diziam seus admiradores no colégio, muitos.

O tempo foi passando e ela se casou. O marido seria guindado tempos depois a um elevado cargo executivo numa multinacional. Sua vida foi muito fácil, muitas viagens ao exterior. Sabia que os executivos da empresa a admiravam. Não poucas vezes flagrou alguns meio boquiabertos a examinando. Aquela morena, de cabelos soltos e olhos verdes...

Teve três filhos: um professor, de vida simples, mas o mais culto, um engenheiro executivo de multinacional que enriqueceu e um médico que clinicava na Itália. Tinha orgulho de dizer de seu filho médico na Itália. Tinha facilidade de ir para lá. Sempre que ia, chegava até Assis e visitava o túmulo de São Francisco. Ficava ali, naquela meia luz, absorvendo as boas vibrações e se emocionando com as pessoas piedosas que ali oravam. Como ela. Saia dali sempre renovada.

Já pelos seus 40 anos resolveu trabalhar num núcleo de saúde infantil como voluntária, ajudando um médico, pouco mais jovem parecia, com sua barba espessa, bem contornada no rosto. Bonito? Era, reconhecia Deyse.

Teve muita convivência com ele, pelo menos duas vezes por semana. Por meses. Um dia, enquanto separava ela remédios entregues, o médico entrou, postou-se ao seu lado e, baixando a cabeça encabulado, disse quase sussurrando:

- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!

Paixão é difícil de não confidenciar. Atônita, conseguiu responder:

- Eu também, doutor.

O médico se aproximou e trocaram um leve beijo, próximo dos lábios. Deyse caiu em si, seu rosto explodiu vermelho, saiu apressada e disse, já no jardim:

- Como ousas? Como ousas?

Nunca mais voltou ao núcleo assistencial. Pior para as crianças de tão dedicada que era.

Hoje, viúva, mirando-se no espelho, pouco ligando para as poucas rugas, estava conservada, lembrando-se de sua vida serena, realizada. Num dado momento, acariciou seu próprio rosto, bem ali onde o médico lhe beijara. Sentira o perfume de sua loção, de novo. Enrubesceu e emocionada, disse alto:

- Como ousas?


Fugiu do espelho que a encarava com rigor...



Tudo o que ficou...

Mira-se no espelho e vê a realidade nua de seu rosto, já enrugado, cabelos grisalhos, ajeitados.
Há muito tirara a barba trabalhada que lhe dava um ar elegante e, sabia, chamava a atenção das mulheres à sua volta.
Ali, na imagem do espelho, havia um médico envelhecido que não enriqueceu. Afinal, trabalhara para os mais pobres, e por muitos anos num núcleo de assistência infantil.
Clínico geral, não saía de sua cabeça uma frase de uma humilde paciente. O tratamento que dispensara, culminando com uma cirurgia complicada, tivera êxito. Ela agradecia a todos os santos, especialmente São Francisco, de quem era devota exaltada.
Semanas depois da alta, ela voltou ao seu consultório e ao sair disse uma frase que talvez tivesse ouvido alhures:
- Doutor, o senhor é de uma raça em extinção.
E o espelho apenas confirmava isso, do ponto de vista físico...
Tinha hoje 72 anos. Viúvo havia quatro anos. Sua esposa morrera em seus braços de infarto fulminante. Nada pôde ser feito.
Essa experiência fora dolorosa, porque salvara tanta gente em momentos semelhantes e não obtivera êxito com sua própria esposa. Essa contradição mexera com sua cabeça, meditara sobre sua espiritualidade, mas as respostas não vinham. Com a profundidade que desejava.
Seus dois filhos avançaram na vida. Um era médico como ele, cirurgião exímio. O outro advogado também bem sucedido.
Este último tivera sérios problemas havia alguns anos o que o fez abandonar a advocacia criminal depois que um bandido o procurou para defendê-lo. Ao ter à sua frente aquela celebridade com ficha criminal medida a metros, decidiu rejeitar o trabalho. O bandido o ameaçara violentamente, obrigando-o a se afastar do trabalho e se esconder por algum tempo.

O que restara de sua vida aos 72 anos? Como não poderia deixar de ser, também para ele que sempre vivera no limiar da vida e da morte, o tempo também passara.


Recordara de sua infância, de sua juventude sacrificada fazendo trabalhos avulsos e ministrando aulas para ajudar nas despesas da faculdade. Lembrava-se de seu pai, que trabalhava como operário cerca de 12 horas por dia para ajudá-lo e sua mãe que tanto o incentivara, vendendo em sua casa, roupas feitas. E de sua esposa que o encorajara ao trabalho dedicado aos mais carentes com pouco retorno econômico.
Um drama que efetivamente vivera, parecendo enredo de romance de escritor pouco inspirado.
Mas, não havia somente essas lembranças atribuladas.
Sem qualquer peso na consciência nunca esquecera a curta paixão que vivenciara havia anos após a sua formatura, trabalhando num centro de assistência infantil.
Ali, uma senhora dos seus 40 anos, lindíssima, morena de olhos verdes, prestava trabalho voluntário. Com ela convivera, por meses, duas vezes por semana.
Um dia, não se conteve e confessou:
- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!
Para sua surpresa, ela respondeu:
- Eu também, doutor.
Aproximou-se então e deu-lhe um leve beijo, próximo dos lábios.
A mulher enrubesceu e se retirou apressada.
Nunca mais a viu e nem poderia procurá-la por saber de sua conduta e de sua vida social
Aquela lembrança, na frente do espelho fora de emoção. Um alento aos seus sacrifícios. Revivera o perfume do rosto daquela mulher que lhe inspirara tanto e que se foi.
Como o tempo...