24/10/2010

REGRESSÃO (II): Primeira Comunhão

Situo-me num bairro pobre, num tempo tanto de paz como de simplicidades, lá pelos idos de minha infância já num estágio de compreensão das coisas. Casa simples, quintal no fundo, cerquinha de taipas, portãozinho mal fechado que dava para um terreno desocupado. Nos dias de muita chuva, o rio transbordava, chegando a água imunda até ali perto.
Tinha por hábito atravessar o rio pela ponte de madeira a poucos metros, nos tempos secos e rumar para a casa de um amigo da família que morava morro acima. Um braço de rua à esquerda que terminava numa valeta na qual corria água fétida que desaguava no rio. Quando chovia, transbordava, trazendo todo tipo de objetos varridos das casas ribeirinhas.
Nessa rua, casas humildes, água de poço, muita precariedade mas não percebia amarguras, queixas da vida...
Em muitos domingos recebi balas dos filhos do proprietário de muitas daquelas casas simples que ia receber os aluguéis. Muitas vezes seu carrão não conseguia entrar rua abaixo nos dias de chuva, pelo barro que se formava.


Havia na beira das cercas pés de dálias que cresciam mais de um metro, dando flores enormes.



Giestas viçosas, suas florezinhas amarelas brilhavam ao sol naqueles tempos em que não se falava de poluição. Hoje são raras.



Até hoje procuro por violetas miúdas, que proliferavam cujas flores exalavam, se bem me lembro, leve perfume. Perto da valeta, um pé de “copo de leite” com flores imaculadas o ano todo resistiam a todas as agressões dos moleques e das enchentes.
Muitas tardes ia para essa rua, encontrar a molecada amiga. Ficava um pouco mais até a noitinha quando havia a reza do terço, cada mês numa casa diferente.
Ria muito daquilo tudo e, ansioso, esperava o fim da reza, ao amém, para participar dos refrigerantes que não faltavam nessa hora ou de licorzinho leve de anis ou hortelã.


No último dia de aula daquele ano chovera muito. Fiquei à espreita agarrado no pé de amora, vendo a água se aproximar alegando tudo por ali. Ela chegou mais uma vez perto da cerca do meu quintal, mas não passou dali, como nunca passara.
Saí às pressas para a aula, seria a despedida da professora.
Pela surpresa, aquele dia fora importante. Passara o ano inteiro sem uma falta sequer recebendo da professora, elogios, um livro de presente, lembrança desse feito inédito. Palmas.

Dois dias depois, num domingo, minha mãe falou da primeira comunhão, menos que um ato de fé, um costume que não poderia ser abandonado. Meu pai não interferira porque não se aproximava da Igreja. Meu tio era crítico cáustico da religião. Vez por outra ele chegava até nossa casa, com um caminhão tanque enorme de “querosene jacaré”, com maços enormes de dinheiro à vista de todos.


Interessei-me pela 1ª comunhão até porque não havia outro meio, então. Algum tempo depois comecei a frequentar o catecismo na denominada matriz velha da cidade.
Quando se aproximava a data, a beata que conduzia as aulas constatou que eu não decorara o “Credo” e “Salve rainha” Me ameaçou de ficar fora da comunhão.



Lá fui, então, decorar essas orações e reforçar outras.
O dia da comunhão chegou, um domingo que marcou porque minha mãe fez uns bolos, uns doces uns sanduíches e guaranás.
Se disser que não me senti um pouco acima do chão, depois da comunhão, estarei mentindo.
A partir dali voltei-me religiosamente para a missa dominical e me engajei entre os “congregados marianos” identificados com a fita amarela, passando pelo pescoço e ombros. Ficavam próximos da sacristia acompanhando a missa de perto. Eu recebi uma fita azul – que significava, que me lembre, a condição de aspirante.
Nunca perguntei o que significava aquele grupo dos “congregados marianos”.
Sempre que havia tempo, à tarde, ia para a igreja sabendo-a vazia, na certeza de encontrar linda menina que me fizera perder na paixão, aquele enlevo que só nessa idade se sente.
Ela, porém, tinha nome tradicional na cidade e seus pais estavam muito bem de vida. Esse enlevo perdurou por algum tempo mas havia esses obstáculos, o da pouca idade e diferença social, situação importante naqueles tempos, na cidade.
Esta tão ingênua poesia, remonta àqueles tempos. Vacilo hoje em lembrá-la exatamente pela sua ingenuidade mas me encorajo, imaginando que ela possa explicar esse “encanto” e minhas motivações que não se perderam neste meu mundo de hoje que nele batalho em algumas frentes sem esmorecer e a tudo agradecer!:

Menina
Morena
da cidade
das flores,
alegre
tão meiga
sincera.

Eleva
enleva
encanta
se fala
se olha
se chora
se ri.

Do rosto
lmpidos
olhos
estampam
pureza
sublime
beleza.

Ah! menina
morena
és dona
de tudo
da Natureza
do mundo
e mesmo
de mim...

Um belo dia, não sei explicar bem, esse estado religioso foi abandonado de modo abrupto. Não sei se pelo amadurecimento quando novas informações chegam, o ginasial e os novos amigos, questionamentos de toda ordem, a maturidade sexual que se faz presente...e nessa época converti-me num péssimo aluno. Mas, nada que não recorde tudo com carinho.

Mais tarde, por razões que já revelei, enveredei pelo rosacrucianismo, ocultismo e até rudimentos do espiritismo.
Volto um dia a este assunto, embora já tenha me referido a ele em outras crônicas neste espaço.


Fotos:
Dália
Flor de giesta
Igreja: Matriz "velha" de São Caetano do Sul

Um comentário:

Caio Martins disse...

Eita, seu Milton... Na minha primeira comunhão acabei levando santo cascudo do Pe. Ézio: entrei em duelo com o Marcon, com as longas velas que nos meteram nas mãos. Belas lembranças, sem dúvida, ressaltando a menina morena. Devo tê-la visto em minhas andanças pelo seu território.

Abração, Mestre.