29/08/2010

CICLOS E IMPOTÊNCIAS

Talvez eu esteja um tanto repetitivo nestas crônicas, explanando sobre a devastação ambiental. Se assim se dá é porque minha angústia atingiu limites do insuportável. Otimista por opção pessoal (“está tudo ótimo!”), sou pessimista, como já frisei antes, com o que poderemos passar ou os nossos descendentes enfrentar, com o que vimos assistindo no mundo no qual prevalece, imutável, o valor do dinheiro e não os prejuízos ambientais e de vida que ambição daquele impõe a estes.
Não me considero religioso na acepção do termo, tenho meus momentos de reflexão e outros de pura indiferença. Aqueles, porém, se sobrepões até por peso de consciência.
Já relatei, numa crônica de 20.09.2009, neste blog, “Intuição desvendada”, os significados de textos bíblicos à medida que, obtidos aleatoriamente os versículos, um grupo de alunos ia lendo e os interpretando, encontrando significados diferentes e até mais profundos do que aqueles normalmente aceitos.
Nunca me esqueci dessa experiência que vivi no meio termo da adolescência.
Por causa dela, vez por outra abro a Bíblia e vejo o que aparece. Nestes dias de sufoco pessoal abro em Romanos e lá está no versículo 5-3 e 4:
3. E não somente isso, mas também gloriemo-nos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a perseverança,
4. E a perseverança a experiência, e a experiência a esperança.


Assim sinto que tenho que perseverar na minha experiência e por todos os meios gritar: Esperança!
Mas, essa mensagem não me impediu de redigir a composição abaixo e, depois de escrita, abri de novo a Bíblia para algum aclaramento e eis que me deparei com o “Livro de Eclesiastes” e lá está a contundência na condenação à vaidade e, de certo modo, ressaltando a rotina da vida, como nestes versículos

2. Vaidade de vaidade! Diz o pregador, vaidade de vaidade é tudo vaidade.
3. Que vantagem tem o homem, de todo o seu trabalho, que ele faz debaixo do sol?


Considerando que o trabalho faz parte da vida e a vaidade a movimenta menos ou mais, tenho uma poesia cuja primeira estrofe:

TUDO É VAIDADE
Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...”

Essa a ressalva que faço em relação à vaidade e ao trabalho.
Porém, as coisas se modificam, por conta desse “trabalho” do modo mais preocupante, alterando até mesmo a rotina posta nesse capítulo bíblico.
Como estes que destaco:
4. Uma geração vai, e outra geração vem, mas a terra para sempre permanece.
6. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus círculos.
7. Todos os ribeiros vão para o mar, contudo o mar não se enche: para o lugar para onde os ribeiros vão, para aí tornam ele a ir.

E por aí vai o texto bíblico, inclusive afirmando no n° 8 que “essas coisas se cansam tanto” e no versículo 9: O que foi, isso é o que há de ser e o que se fez, isso se tornará a fazer, de modo que nada há de novo debaixo do sol.

Hoje, com todas essas tragédias, todas essas degradações, os ribeirões vão para o mar? O mar não se enche? E o derretimento das calotas polares? O que têm provocado os giros do vento? As tormentas? As enchentes nunca vistas?
Esses ciclos rotineiros sugeridos pelo texto bíblico estão se modificando a olhos vistos, “os olhos não se fartam de ver”, pela ação devastadora do homem sob este sol.
Diante desses elementos, a composição a seguir, que pode até ser paciente mas muito pouco esperançosa.

IMPOTÊNCIAS


Sereno, medito neste meu canto
Uma avenca aos trinta anos me encara
Orquídeas sorriem e olhinhos delicados
Miram violetas roxas com ternura e encanto,

Estanco surpreso com essa beleza

As multicores irradiadas à tépida luz
A ela se integram e por isso exultam
Nesta plaga de recolhimento e singeleza.

Não me constrangeria se ali caísse em oração
Agradecido por aquelas existências reais
Sorrisos doces em oferendas, momentos de paz
Nestes tempos doentes, de guerras e destruição,

Transporto-me então para outra realidade, dura
Lá, tombam árvores, queimam-se florestas
O fogo desencadeia indescritível tragédia
Ceifando tudo, a vida, os bichos, a doçura

Exala de mim amarga tristeza e dor
Por clamar em silêncio, sem ouvidos
Ameaço gritar aos quatro ventos
Mas os sons se perdem em obscuro torpor,

Não reconheço esses ventos maculados
Sopram eles espíritos de tormentas assistidas
Neste fogaréu imenso de provações
Insensibilidades, ódios e odores desregrados,

Saberiam todos que este solo esgotado
Não haverá por muito como se refazer desses abusos
Apontando em riste e em lágrimas secas
Que pouco sobrará destes tempos abusados?

Resigno-me à minha impotência já tanto esquecido
Perante minhas poucas orquídeas, violetas e avencas
Intuindo no íntimo com angústia e melancolia
Que fenecem os tempos neste clima embrutecido.

22/08/2010

POMPÉIA e o micro Armagedon

Resisti em publicar esta crônica, tais as tragédias atuais, as naturais como as grandes enchentes e as provocadas pela insanidade humana, como as grandes queimadas e o imenso e insistente ataque aos bens naturais.
Mas, repensando os eventos, resolvi pela sua divulgação aqui nestes temas, que são livres.


As ruínas de Pompéia lá estão atestando a catástrofe que se deu com a erupção brutal do vulcão Vesúvio.

Caminho por aquelas ruelas de pedra – grandes pedregulhos lisos – que dificultam os passos.
Tinha poucas informações sobre a cidade soterrada por cinzas e lapíli – um composto sólido, pequeno, tipo pedrisco, incandescente, expelido pelo vulcão.

Melhor assim, porque, quem sabe (?), tivesse alguma sensação diferenciada captando vibrações do local, tantos foram as surpresa e os sofrimentos pela tragédia.

As poucas informações me levaram a um estágio diferenciado quando há anos visitara as pirâmides de Teotihuacán, no México (v. crônica de 04.04.2010).

Essas impressões ou sentimentos espocam quase que naturalmente. Como não reverenciar ou se emocionar diante de uma catedral à beira de completar um milênio ou mais, tão comum na Europa, cuja construção levou dois ou três séculos? Quantas mãos a construíram, quais sofrimentos trouxeram ao ser erigida pelos séculos e quais orgulhos vibram nos milhares de blocos fortemente assentados que a constituem?

Dias antes, estivera no túmulo de São Francisco, em Assis. Tudo me faz crer que aquele clima de reverência existente, tantos religiosos por ali, muitos em oração, produz um clima de paz facilmente absorvido, aquele enternecimento que não se explica. E não há a invocação à sensitividade como se tudo se explicasse à luz de fenômenos parapsicológicos. As emoções se aguçam e se revelam. Só isso.

Talvez por conta de todas essas impressões anteriores vividas naqueles dias, quando fui avançando pelas suas ruínas de Pompéia, tudo se resumia à indiferença.
Fora uma cidade próspera que, tanto quanto a cidade vizinha de Herculano estava ao pé do Vesúvio, uma montanha com mais de 1200 metros de altura.

O Vesúvio situa-se nas proximidades de Nápoles, bela cidade bem ao sul de Roma, a 194 quilômetros de distância da capital.

A erupção que soterrou Pompéia e Herculano se deu em 79 DC.

Ao ressurgir das cinzas e dos elementos do Vesúvio, quando começaram as escavações no início do século 18, toda sua intimidade foi revelada, destacando-se as obras de arte, a maneira como resolveram seus habitantes a urbanização da cidade, os monumentos e as grandes construções.

Pompéia se situava numa região rica em vinhas, adorando deuses pagãos, não fora surpresa encontrar em suas reentrâncias sinais de erotismo exacerbado. Aliás, num aposento de rica residência, depara-se, desenhando na parede, a figura singular do Priapo, o deus da luxúria.

Em Pompéia não se tem o sentimento do sagrado, a despeito do sofrimento do cadáveres ali preservados e mantidos com suas expressões de terror diante da morte inevitável imposta pela fúria do vulcão, talvez porque haja até, pelos próprios guias turísticos aos montes por lá, uma certa malícia ao destacar aquele lado luxurioso que existiu nos costumes da cidade.

Esses cadáveres “soterrados na cidade foram recobertos de cinzas molhadas. Com o tempo, as camadas ficaram sólidas, moldando-se perfeitamente ao formato dos corpos, registrando até a expressão facial dos habitantes em seus momentos derradeiros. Depois do processo de decomposição, restaram moldes ocos, cujas cavidades foram preenchidas com gesso líquido para formar as mais famosas imagens da cidade.” (1)


Havia resquícios de presença do cristianismo. No livro de E.C. Conte Corti, há uma foto de um genuflexório tendo à frete um cruz, encontrado em Herculano, provavelmente pertencente a um escravo. Seria essa uma das poucas referências à incipiente influência cristã por aquelas plagas pagãs. (2)



Quando da erupção do Vesúvio, os habitantes de Pompéia, preocuparam-se em salvar o que pudessem de suas riquezas. Muitos morreram soterrados ou sufocados pelos gases preocupados em carregar pertences de valor (jóias, em especial):
“Os moradores dos bairros do oeste de Pompéia, mais próximos do mar conseguiram salvar-se; entre eles, Caius Sallustius, a quem pertencia a casa da esquina, no fim da Rua do Mercúrio. Sua mulher, pelo contrário, perdeu tempo tentando reunir suas jóias; acompanhada por três mulheres de condição modesta, caiu na rua, a pouca distância, com seu dinheiro, seu espelho e suas jóias, e afundou-se na cinza encharcada.” (2)

Outros, pela surpresa da catástrofe, morreram mal abandonando a mesa de refeições.

Num outro trecho do magnífico livro o autor compara o sofrimento de Pompéia com “o castigo infligido por Deus às cidades ímpias da Palestina”. E acrescentava: “Um homem, certamente judeu, refugiado numa casa, escreveu na parede: “Sodoma e Gomorra.” (2)

O que se conclui dessa tragédia no meio de tantas outras?

O lugar comum: a vulnerabilidade da vida, a insensatez da vaidade e a transitoriedade da riqueza.

Legendas:

Foto 1: Entrada das ruínas de Pompéia
Figura 1: Localização de Pompéia
(1) Revista “Veja” de 15.03.2000
Foto 2: Cadáveres “petrificados” de vítimas do Vesúvio em Pompéia
(2) E.C. Conte Corti, “Vida, Morte e Ressurreição de Herculano e Pompéia” –Ed. Itatiaia – 1964 (BH)
Sobre o genuflexório, esclarece o autor que “diante de uma cruz, num aposento de uma casa em Herculano, descoberto em 1929, a prova de que no ano 79 já havia ali uma pequena comunidade cristã.”

16/08/2010

EXILADOS

Há muitos anos que li o pequeno livro. Se não me engano, naquela edição, não havia referências tão acentuadas a princípios espíritas, embora professasse o autor o espiritismo. Trata-se do livro “Exilados da Capela” de Edgard Armond.
Lembrei-me dele, num dia desses quando li pequena notícia, referindo-se à opinião do astrofísico Stephen Hawking, autor entre outros do livro “Uma breve história do tempo”. Disse ele que a humanidade nos próximos 200 anos deveria obter tecnologia para alcançar e colonizar um outro planeta, como única forma de sobreviver ao seu fim próximo. Ele explica:
"Nossa população e o uso de recursos finitos do planeta Terra estão crescendo exponencialmente, assim como nossa capacidade técnica para mudar o ambiente para o bem e para o mal. Contudo, nosso código genético carrega instintos egoístas e agressivos que foram vantagens necessárias para a sobrevivência no passado. Será difícil evitar o desastre nos próximos 100 anos, ainda mais nos próximos mil ou 1 milhão".
Essa visão catastrófica tem a ver com o próprio livro de Edgard Armond que também externa um sentido apocalíptico considerando, principalmente a devastação ambiental que se assiste quase que de modo impassível: destruição das florestas aumentando as áreas desertas, poluição das águas e do ar, por conta do dinheiro fácil, mas que significam tais atos insanos, pesado encargo para a sobrevivência do planeta nos moldes que o conhecemos e o habitamos, cheio ainda de mistérios indesvendados.
Eu incluo o aspecto moral, a barbárie, as guerras...
Mas, a proposição contida no livro “Exilados da Capela”, pode ser entendida neste trecho:
"Há muitos milênios, um dos orbes do Cocheiro, que guarda muitas afinidades com o globo terrestre, atingira a culminância de um dos seus extraordinários ciclos evolutivos. Alguns milhões de espíritos rebeldes lá existiam, no caminho da evolução geral, dificultando a consolidação das penosas conquistas daqueles povos cheios de piedade e de virtudes..."
Os escolhidos, neste caso, foram os habitantes da Capela que, como já foi dito, deviam dali ser expurgados por terem se tornado incompatíveis com os altos padrões de vida moral já atingidos pela evoluída humanidade daquele orbe.”
Então esses exilados, sob grande sofrimento foram mandados em espírito para a Terra para propiciar sua evolução mental e espiritual.
O livro de Edgard Armond, tem uma observação interessante: “Há, também, notícias de que, em outras épocas, desceram à Terra instrutores vindos de Vênus.”
Vieram esses instrutores de Vênus com seus corpos físicos?
É sempre bom lembrar que há em todo o planeta, marcas, indícios e fórmulas inexplicáveis que levam a concluir, sem qualquer “mania ufológica”que houve alguma intervenção superior há milhares de anos.
Fiquemos apenas com o versículo 6.1 e 2, de Gênesis, enigmático entre tantos outros mas que revela uma miscigenação entre “anjos” e formosas mulheres humanas.
Se a Terra recebeu e recebe viajores do espaço há milhares de anos é sinal de que estão eles “anos luz” à nossa frente em tecnologia e, talvez, em termos éticos.
Acedamos que dentro de uns 50 anos obtenhamos tecnologia semelhante que nos permita alcançar planetas distantes. Hoje o que temos é uma tecnologia pesada, precária.
E não será fácil a tarefa. Há uma observação interessante no “Livro dos Espíritos” de Allan Kardec (resposta n° 188):
“Os Espíritos puros habitam determinados mundos, mas não estão confinados a eles como os homens à Terra; eles podem, melhor que os outros, estar em toda parte.”
Obtida a tecnologia, claro que a Terra já em situação crítica, nos seus estertores a continuar a predação que se verifica hoje, qualquer viagem interplanetária de preservação da humanidade equivalerá a uma verdadeira arca de Noé.
No curto espaço desta crônica, sim porque o tema comporta ampliação, estamos assinalando as dificuldades de sobrevivência de nossos descendentes.
Serão os futuros exilados, precipitados pela nossa insanidade?

Imagem: "Os quatro cavalheiros do apocalipse" - Google

07/08/2010

REGRESSÃO (i)

Os tempos de infância lembrava-se saudoso, também por influência do Natal próximo. Chegara aos 80 anos com incrível lucidez e disposição. Quando lhe perguntavam qual o segredo, não saia muito daquelas respostas normalmente atribuídas a outros idosos: "muito vinho e alegria”, "comi tudo que tinha direito”.
Sua resposta era:
- Não fumei jamais, bebi vinho, quando o vinho era bom e ando bastante, me acerto bem em áreas verdes, pássaros, essas coisas. De há muito minha dieta de carne é quase nula. Se isso for realmente uma receita de longevidade, não sei. Mas, eis-me aqui. Mas, há outros idosos com mais idade do que eu que vivem bem.
Nas suas meditações sobre a longa existência, retornava à juventude e mesmo à infância, sem qualquer rigor cronológico.
Nesses momentos, entrava num processo nostálgico, saudoso, até um pouco confuso. Sua infância relativamente feliz - sua mãe falecera quando ele tinha 9 anos - eram imagens que voltavam à sua mente. Pareciam um sonho. Será que não eram mesmo? Momentos de felicidade, geralmente fugazes, não ficam na mente como um sonho? E seu pai que chegava até ele, nas lembranças, como alguém rigoroso mas que era dotado de muita generosidade.
Coisa estranha envelhecer :
- Sermos sempre nós mesmos e, no entanto, não sabermos explicar, ou entender esse evento irreversível da velhice e mesmo da morte, costumava repetir.
Se dizia vivendo o presente mas havia alguns eventos que lhe martelavam a mente e o coração.
Uma semana antes do Natal, tomara uma decisão: de trem, meio em segredo para não despertar os cuidados dos filhos e netos - era viúvo - voltaria à cidade natal e, no casebre onde tivera uma inesquecível experiência em sua infância, faria uma oração ao Natal e homenagearia sua mãe. Seria como que uma despedida daqueles velhos tempos de ternura que ainda o emocionavam tantos anos depois.

Sim, seria bom fazer uma oração no casebre, velho casebre se ainda preservado, sombreado por três ipês muito antigos.



Lembrava-se bem. Num dia próximo do Natal, chuvoso, refugiara-se no casebre para chorar a morte recente de sua mãe. Num dado momento, porém, em vez de estar encostado na rústica parede da pequena habitação, escapando das gotas de chuva que desciam pelo telhado mal conservado, viu-se recostado no colo de sua mãe, recebendo dela, carinho, beijos na têmpora e frases de que onde se encontrava, não estava morta e, de lá, zelava por ele.
Não se assustou com a visita de sua mãe. Somente as crianças, naqueles tempos em que crianças eram crianças, podiam compreender momentos como esse. E não chorou mais, porque sua mãe, lindíssima, sem as marcas da insidiosa doença que a consumira, assim pedira.
Com tudo isso em mente, tentaria retornar ao casebre, junto de suas árvores para a oração. Certamente a última visita àquelas paragens onde fora feliz ao lado dos seus pais e irmãos.
No dia seguinte, bem cedo, com sua velha Bíblia na mão, conforme planejara, tomou o trem, rumando para sua cidade. Deixou um breve bilhete para sua filha. Viagem longa para sua idade, cansativa, suportada, porém, pela sua disposição conseguida por quilômetros de caminhadas regulares.
Chegou à tarde. Apressadamente, para aproveitar o sol, tomou o ônibus que o levaria àqueles sítios de sua infância.
Depois, pensaria no pernoite, provavelmente na casa de um sobrinho, se houvesse tempo para localizá-lo. Caso contrário, o hotelzinho da cidade seria a solução.
Mais uma hora de viagem, eis que chegou ao ponto de desembarque. Desceu ansioso do veículo, notando que havia, ainda, muitas paisagens de sua época. O riacho que agora abastecia a cidade, embora mais poluído, lá estava a igrejinha da comunidade num ponto mais alto, branca, e todos aqueles sítios.
Caminhou a pé até a propriedade que fora um dia de sua família. Quando venceu a pequena subida, algum sentimento de perda antecipadamente lhe apertava o coração.

A decepção fora terrível. Não encontrou mais suas árvores velhas, mal reconhecendo o local do casebre. Uma estrada de ligação de sua cidade, com a rodovia principal passaria por ali.


Com profunda mágoa, aproximou-se do local onde certa vez fora consolado por sua mãe quando chorava sua morte, sem dar atenção às máquinas ruidosas que se movimentavam, emocionado ajoelhou-se no chão de terra batida onde estaria o casebre.
E mais uma vez chorou emocionado. Sob os olhares atônitos dos operários simples que ali estavam, máquinas gigantes paradas em sua volta naquele chão batido, sem grama ou eras, sem os seus ipês...
Abriu ao acaso sua velha Bíblia, o mesmo gesto que sua mãe lhe ensinara um dia e, em Isaias 60:18, leu em silêncio o versículo que recebera:
"Não mais se ouvirá de violência na tua terra, de assolação ou desmoronamentos dentro dos teus termos. E certamente chamará as tuas próprias muralhas de Salvação e os teus portões de louvor".


Foi levantado por um jovem operário negro que operava uma daquelas máquinas enormes e com delicadeza o afastou dali:
- Falo com o engenheiro e levamos o senhor para a cidade.
As máquinas voltaram a funcionar e movimentar a terra. Havia muito que aterrar e muito que enterrar. Emocionado, confuso, se dera conta disso.

01/08/2010

A FEIJOADA VEGETARIANA

Naqueles meus tempos de indústria automobilística, coube-me num dado momento, editar o jornal interno da empresa (“house organ”, para os mais exigentes), apenas reconhecido oficiosamente por ela que, de um modo ou outro, o subsidiava.
Na busca por uma gráfica de qualidade, com preço possível, cheguei a uma administrada por descendentes japoneses.
Chamados, veio até mim uma simpática nipônica acompanhado de um japonês idoso, apresentado como seu sogro que, pelo que percebi, não falava nada de português. Revelando um princípio de lealdade, não escondia sua ansiedade em conseguir o serviço. Por fim, fez um preço realmente bom – muito subestimado, diga-se, em relação ao nível técnico que dispunham em suas oficinas. Não tive coragem de pedinchar.
E assim, foram se sucedendo as edições mensais.
Um dia, ao buscar os originais, sempre com o seu sogro a tiracolo, diz:
- Dr. M., não me interprete mal, mas gostaríamos de convidá-lo para um almoço numa churrascaria em São Paulo, muito boa. Lá estaremos todos, meu marido e um outro sócio da empresa, Jorge. Nosso relacionamento é dos melhores e queremos preservá-lo.
E o sogro arrematou:
- Braselero gosta muito churrasco, nô?
Respondi constrangido:
- Dona A. não se ofenda, mas eu não gosto muito de churrasco, prefiro umas saladas, torta de palmito, coisas assim.
O sogro não entendera nada, mas fechou o sorriso amistoso.
Desconcertada, voltamos a discutir a edição.
Uma semana depois, dona A. me liga, numa tarde:
- Dr. M. tivemos uma idéia. No centro de São Paulo tem um restaurante vegetariano muito bom. Tenho parentes que o recomendam. Poderíamos almoçar lá, o que o senhor acha?
Dia marcado, lá fui eu.

Todo o “staff” da gráfica lá estava. Pessoal simpático sem perder a seriedade. Todos avançaram na feijoada vegetariana.
Excelente. Não havia aquele sabor característico do composto de soja. Couve bem cortadinha e tudo o mais de primeira.

Umas duas semanas depois, dona A. volta para discutir nova edição:
- Dr. M., puxa aquela feijoada, hem, tem um efeito...
- Adstringente, provoquei eu, usando uma palavra que tem um sentido oposto ao saudável efeito laxante da saborosa feijoada.
A moça me olhou perplexa, abriu quanto pode aqueles olhos puxados, seu rosto se iluminou e emitiu uma sonora gargalhada. Segurou minha mão com suas duas mãos.
E o sogro:
- Sim, efeito adistrim, efeito adistrim, sorridente, infuenciado pela nora.

Não demoraria muito, e se desinteressariam pelo jornalzinho. Pelo nível técnico que tinham na gráfica, provavelmente conquistaram clientes de peso.
Restou apenas a feijoada com efeito adstringente e a lembrança de um pessoal nipônico bom.

25/07/2010

PLANTAS: VIDA SECRETA

Prolegômenos...curtos

Exerço, ainda, uma profissão árdua, técnica, com vocabulário próprio, hermético para tanta gente, o que me desabilita a manusear poesias. Tenho dificuldades para essa criação porque num dado instante esse vocabulário se sobrepõe aquele normalmente suave do qual afloram as rimas. Então, tento suprir essa efetiva “deficiência espiritual”, com textos nos quais insiro impressões sobre o cotidiano da minha e de outras vidas que senti, vivi ou presenciei ao longo do tempo.
Assim, quantas vezes já “homenageei” borboletas esvoaçando vacilante à minha frente, dando um sentido de boas vindas na caminhada pelas trilhas na mata, leitãozinho a que me apego, abelhas, escorpião...
E por aí vai.
.
E quanto às árvores e plantas? Há quem fale com elas. Eu não cheguei a tanto (sei, não!)



Adicionar legenda


A segunda edição é de 1975. Não sei em que ano eu o li, mas provavelmente seja no fim dessa década. Refiro-me ao livro “A Vida Secreta das Plantas”, dos autores Peter Tompkins e Cristopher Bird. Não creio que haja uma terceira edição. Não a encontrei nas pesquisas que fiz.

Coincidindo com a leitura desse livro, no final dessa mesma década estive muito empenhado administrando um clube ligado a uma indústria automobilística situado no Caminho Velho do Mar, em São Bernardo do Campo.
Esse clube, com entrada por essa estrada, é claro que, para constituição de suas edificações básicas, provocou devastações naquele pequeno trecho da mata Atlântica. Quando assumi, até por uma questão intuitiva, repus o que pude, com canteiros, jardins e replantio de árvores, onde possível, porque havia campos de esporte que ocupavam boa parte da área.




Para permitir conhecer a intimidade da floresta, fiz abrir uma trilha cuidadosa que se encerrava na Represa Billings. Essa trilha é a da foto. Lá no fundo a mata preservada.









Muitas vezes, me aproximando devagar tal a neblina que permitia enxergar não mais do que um palmo à frente do para-brisa, permaneci assentado no meio daquele resto de mata, verde brilhante nos dias de sol que a varava por frestas, para um descanso ou mesmo para me acalmar das agruras reais do trabalho, das relações dificultosas, competitivas que se verificam no âmbito da empresa e na vida diária de um modo geral. Minhas explosões.
O que devo dizer, entre borboletas e pássaros desconfiados?
Que a serenidade baixava e, para trazê-la mais rapidamente eu a invocava: serenidade!
Houve dias que não fugi da chuva, tão intensa naqueles lados. Sai molhado mas respeitando cada vez mais e profundamente aquele recanto que, muitas vezes, sozinho, era só meu e dos pássaros e das borboletas amigos inofensivos e inspiradores.

O livro a que me referi é denso e entre muitos aspectos interessantes sobre as plantas, relata experiências de suas reações sob ameaça.
Sua vontade de viver. As variações que encontram para sobreviverem num ambiente inóspito. As sementes que querem espocar e brotam até mesmo nos locais mais improváveis. Quando criança, era uma festa encontrar, naqueles campos de mato ralo um pé de manga recém saído do caroço, ainda com suas folhas grenás.
Do prefácio resumo e transcrevo:
Um policial surpreendeu-se pela reação de uma dracena ao instalar, “impulsivamente”, os eletrodos de um detector de mentiras em suas folhas. E ficou estarrecido: “as oscilações da agulha do galvanômetro sobre o painel em movimento desenhavam uma curva semelhante à obtida ao submeter-se o ser humano a um estímulo emotivo de breve duração.”
E na sequência da experiência:
“Decidiu então submeter a folha a uma ameaça maior: queimar a folha. No instante exato em que teve esse pensamento, antes mesmo de apanhar a caixa de fósforos, a agulha se pôs a oscilar freneticamente. Por mais absurdo que parecesse, a planta havia lido o pensamento” do policial.
Bem, se assim se dá, imaginem o que eclode na Terra, com as grandes queimadas de áreas imensas de mata virgem. Os gritos silenciosos de terror que ecoam pelo éter. As vidas que lá são ceifadas de modo inapelável pelas chamas!
Não escapa dessa predação o ranger denunciador das motosserras
Dói constatar a coragem desses algozes, sua indiferença em praticarem tal crime continuado aparentemente impune.
Ah, mas não há impunidade! Este planeta não está condenando, não, à felicidade. Este planeta, pelos atos dos seus predadores implacáveis, pela indiferença às suas raízes, por não tentar entendê-las, está condenado ao sofrimento.
Posso até dizer alto e bom som: sou feliz, momentos individuais de felicidade, mas não o coletivo que, cada vez mais é assaltado por tragédias.

Muitos anos depois, ainda que não tenha talento para a poesia, inspirado pelas minhas idas frequentes à Serra do Mar, em contato com aquele pedaço da mata Atlântica, fui capaz de escrever o poema abaixo. Sei que o repito tanto, mas não tenho muitos. Precisava um dia explicá-lo. Nas duas estrofes finais, dou aquele sentido de movimento e consecução da tragédia.


Templos violados


Pelos recantos fechados da floresta,
Atuam Espíritos cultivando flores
O portal místico decomposto em cores,
Pelo sol enfeitado por estreitas frestas.

Um Templo sob azul e límpida nascente
Permitia saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.

E assim, naquele ambiente purificado
Buscavam consolo e amor, desiludidos
Palavras interiores de paz, esquecidos,
Ali o filósofo apreendia a magia do iniciado.

Haveis que instrumento de trêmulo corte,
Trepidando fio, avançando duro e feroz,
Fez do Templo nada, senão estalo atroz
Num dia em que ao céu clamou a morte.

Que delírio insano ocorrera, porém?
Na inscrição berrante anunciava tal torpeza:
"O progresso derrotara, forte, a natureza"
Restara então, do Templo, nada mais que desdém.


Última foto: Google Imagens.

18/07/2010

PORTAS...(e contraditórios)

"Batei e abri-ser-vos-á" diz o evangelista Mateus, relatando o "Sermão da Montanha" (7.7).
Sou testemunha diante de mim próprio de quanto bati e quantas portas não se abriram. Talvez não devessem se abrir mesmo.


Outras, depois de tanto bater, se abriram, mas ao transpô-las não tinham mais (ou jamais tiveram) o encanto esperado. Ou por que demoraram a se abrir?
Muito bem, a porta está aberta...e agora ?
Volte quando você se vê obrigado ou convencido de que a porta escancarada - depois de tantas batidas - deve ser fechada.


Faça uma reflexão! Afinal, o que buscava?
Resigne-se com a ilusão desfeita. Há tantas outras também desfeitas! E feitas!
Agradeça reverente a graça recebida por ter conhecido o outro lado dela.
Já buscou diante de você mesmo, quais portas interiores fora capaz de abrir?
Como você se encontra nesse momento diante de seus filhos e de seus entes queridos?
Sente-se bem naqueles seus momentos, seus, ao pensar sobre isso?
Se a resposta for "sim", você tem abertas portas que talvez sequer perceba o que elas estão revelando do outro lado do trinco. A claridade que você não nota.
Responda: qual o grau de liberdade que goza? Qual o nível de compreensão que mantém com seus semelhantes? Nada fácil, hem! Qual seu engajamento no trabalho (qualquer trabalho)? Neste mundo insano e acolhedor?
Abertas essas portas, percebidas no seu encanto, no seu recanto, na sua alma, um timbre de afinidades pode apenas restar a paz mesmo que dos esquecidos ou dos poucos lembrados. Você está presente!
Não pode haver engano, porque tais revelações provêm de suas portas interiores. Estas que se abrem e fecham segundo suas necessidades, estado de espírito ou emoções. Que não iludem. Não há uma expectativa interessante de vida nalgumas delas, quando transpostas? Não há ainda algo apreciável a realizar? Não há um eco nostálgico do que foi vivido? Não há doçuras, ternuras e amarguras superadas e quase esquecidas? Aí as contradições, não?
Ó liberdade! Porta. Pensar. Busco-a.
“Buscai, e encontrareis”.

11/07/2010

ANDANÇAS PELA RUA DO PORTO

Aqui em Piracicaba, beirando o rio há um ponto turístico bem badalado: a rua do Porto. Sempre pela manhã, de domingo a domingo, quando algo diferente não se apresente, caminho por lá e no belo parque do mesmo nome ao lado perfaço meus dois quilômetros. Tudo arborizado e bem cuidado pelo que dá um astral muito próprio nessa parte da cidade

No momento em que relato isto, o rio está cheio. Transbordara havia dias pela margem esquerda, atingindo alguns restaurantes da rua do Porto.


Por aqueles dias, sai com um solzinho ralo. Nuvens pelos lados da cidade de São Pedro estavam escuras mas não achei que chovesse, pelo menos até que voltasse sempre a pé para o meu bairro, a uns dois quilômetros dali.
Desta vez pela margem direita entrei pela estradinha cercada pela mata ciliar pensando em passar pelo engenho (edificação antiga de engenho de açúcar, desapropriada pela municipalidade que a vai melhorando, tornando-a um centro cultural), mas o portão estava fechado.
Exaltando desaforos, não querendo voltar subi um barranco de 1,5 metro e cortei pela trilha na pequena área verde à esquerda. No meio daquelas árvores, mato fechado tive um lampejo de aventura, imaginem, depois de tantos anos passados, lembranças das minhas doces ilusões heroicas num barranco íngreme e alto na V. Bela em São Paulo, divisa com São Caetano pelo riacho Tamanduateí.
Parecia haver alguém à espreita esperando algum ato traiçoeiro daquele estranho por ali. Os pássaros, parece, pararam de pipiar, tornando sombria a trilhazinha. Mas, sempre um “mas”, o sinal de boas-vindas foi dado por uma borboleta amarela à minha frente, a mesma daquela que se assentara há dias em duas frutinhas vermelhas do pé de acerola no meu quintal, tomando sol, abrindo e fechando as asas delicadas.
Quando cheguei à pontezinha pênsil, perto do Mirante, para voltar pela rua do Porto, desceu o aguaceiro. Se estava um pouco nostálgico a chuva fora o alento, o encanto.
Encharcado em segundos por fora, lavado por dentro, continuei a marcha, com trovão e tudo. O vento forte sacudia as árvores, algo meio ameaçador.
Com a mesma rapidez com que veio o aguaceiro reconfortador ele se afastou dali. Os ventos o levaram. O solzinho amarelo voltou a reinar pouco depois.
Ao me aproximar do trecho da rua do Porto onde estão os restaurantes os garçons, aliviados, voltaram a arrumar as mesas preparando se para o almoço. Postas e lombos de filhote (peixe) voltaram para as grades das churrasqueiras.
Quando cruzei lá embaixo a ponte nova que leva ao meu bairro me voltei para as nuvens negras e seus seres invisíveis que rumavam lentamente ao sabor do vento para outras plagas deixando sua marca.
As Divindades Superiores em poucos minutos mostraram sua força, seu improviso e a sua inspiração. Da inspiração me assenhoreei porque há bênçãos lançadas a cada instante, mas não nos damos conta disso. Muitas vezes.

04/07/2010

FÁBULA: A VACA E O LEÃO

O pasto era como qualquer outro. A mata fora derribada pelo fogo e pela motosserra. No fundo havia uma mata fechada. O pasto era cercado, mas a cerca era frágil e já havia pequenas passagens que permitiam ir para lado da mata.
Naquele dia, vários bois e vacas velhas estavam sendo empurrados para um caminhão.
A vaca leiteira assustou-se pelo tratamento brutal dispensado aos seus semelhantes, inclusive seus descendentes já crescidos.
O pavor nos olhos deles era evidente, porque até àquela hora viviam em paz, uma vida feliz, alimentando-se do pasto abundante e da água do riacho que cruzava por ali do qual se fizera um lago.
Ouvira que todos seriam mortos e transformados em comida para os humanos. Mas, não acreditava que isso fosse possível.
Horrorizada com o que via, distraiu-se e não encontrou sua cria, um bezerrinho novinho, aquele que achava o mais bonito de todos os outros que procriara.
Precisava alimentá-lo para depois se dar à ordenha. Seu leite, ouvia, ia para todos os moradores da fazenda, inclusive das meninas da casa grande.
Então não tinha do que se preocupar com seu destino. Tinha certeza de que permaneceria na fazenda para sempre.
Todos ainda ocupados com os bois sendo empurrados para o caminhão dirigiu-se à cerca, ultrapassou-a, em busca de sua cria.
Meio confusa com o que via, aquela mata fechada, preocupada em como voltar ao pasto, voltou-se tentando achar o caminho naquele ponto da cerca no qual seria possível passar.

Não poderia ser maior o susto. À sua frente, aparecera um leão imenso, brilhante, dourado, ameaçador.
A vaca desesperada pela sua vida, tentou escapar, enroscou-se nuns galhos secos, mas o leão gritou:

- Não vou lhe fazer mal algum, fique.
Uma ordem, a vaca voltou-se e permaneceu atônita olhando para aquele leão brilhante, dourado.
- Eu só mato para me alimentar, porque assim é a minha natureza. Mas, sei que meus semelhantes criados em cativeiros autorizados, num grande país longe daqui, ao norte, são mortos e suas carnes transformadas em hambúrgueres para os humanos. Servidos com batata frita. Tal qual fazem com os de sua espécie. Muitos são os que protestam contra isso, mas isso já está acontecendo.
- Por aqui, o consumo de sua carne, prossegue o leão, se aproxima do consumo desse grande país. E quanto mais aumenta o consumo, mais pastos são criados e mais florestas são devastadas. Meus irmãos já não têm mais seu habitat e muitos outros animais também não têm. Não há tristeza maior do que vê-los num zoológico em espaços reduzidos, sonolentos e angustiados. Sem se movimentarem, sem explorar as florestas, parar num riacho e beber. E agora chegam ao ponto de nos matar para aproveitar nossa carne como alimento. Nada mais tem merecido respeito, porque o homem está em toda parte nos ameaçando, a todos e ameaçando a sua própria sobrevivência.
Sei que a barbaridade é imensa contra golfinhos, baleias e muitos outros animais desamparados e sacrificados impiedosamente.
Disse a vaca:
- Mas, aqui todos são bons para mim. As meninas da fazenda me acariciam, bebem meu leite...
- Sinto informar que o seu fim é o mesmo dos seus semelhantes que estão sendo levados da fazenda com a violência que você viu. Não se apague a eles, às meninas, não os ame porque nalgum dia você será também transportada para a morte. Sem gratidão.
- Não acredito. Eles gostam de mim e não me farão mal. Preciso sair daqui, estou procurando meu bezerrinho. É hora de sua mama.
- Vê aquelas árvores queimadas ali. Siga na sua direção e você voltará para o pasto e encontrará o seu bezerro.
Dito isso, o leão brilhante foi desaparecendo, sua luz se apagando, deixando a vaca muito assustada com o que ouvira.
Mas, tinha que alimentar a sua cria e esperar a ordenha do moço da fazenda, muito carinhoso e que falava com ela.
E pensou:
- Como não amá-los? (*)


Fotos:
(1) www.visconde-de-maua.com (pousadas)
(2) www.imotion.com.br

(*) V. Crônica com tema correlato: "O Touro manso" de 29.03.2013

27/06/2010

EU AMO TUDO ISTO!

EXPLICAÇÃO

Esta crônica foi publicada no portal “Prosa e Verso de Boteco” não faz muito. Preciso trazê-la para cá para ir centralizando tudo o que tenho escrito de bom e ruim. Há outras por aí que preciso achar.
No citado portal, esta explicação seria dispensável, porque é mais aberto, mais acessado. Nestes “Temas”, acho que a coisa fica mais reservada aos poucos leitores que me acompanham. Mas, enquanto houver um...
Pode parecer que o seu título fora inspirado numa campanha de famosa rede de fast food que não frequento e, claro, não consumo seus lanches. Nenhum.
O motorista parecia eufórico naquela manhã e se saiu com ela, essa frase, como explicado na “1ª cena”.
Na “2ª cena” me refiro no final a um restaurante-lanchonete que conheço há anos na rua de São Bento, São Paulo. De vez em quando eu passo por lá. O lanche a que me referi fora um sanduíche de queijo provolone quente com fatias imensas no pãozinho com bastante alface e rodelas de tomate no meio, muito bom.
O problema é a dose de colesterol. Juro que depois dele andei bastante pela minha destratada e querida cidade natal para queimar a gordura. Mas, não tem jeito. Sempre sobra alguma coisa e essa sobra faz crescer a elevação umbilical. Ai, ai, ai, o que fazer?


1ª cena: “Eu amo tudo isto”

Vou para uma audiência em Belo Horizonte marcada para as 09h00, início dos trabalhos. Saí de madrugada, preocupado porque minha viagem iniciada em Viracopos comportaria conexão no Rio de Janeiro. Chego meio em cima da hora no aeroporto de Confins. Se considerada a distância do centro de Belo Horizonte, realmente está ele nos confins. Alcanço o taxi. Falo de modo peremptório ao motorista:
- Olha, tenho que chegar à Justiça do Trabalho antes das nove. Você vai ter que sair pelas quebradas. Eu sei que estamos a 40 quilômetros do centro e veja a hora...
- Vai dar tempo, doutor! - respondeu com um largo sorriso.
Sujeito bem humorado! Mantive o meu mutismo, nervoso com o andar do relógio. O taxista quebra o “gelo”:
- Veja só doutor, estamos já em novembro, o tempo está passando depressa demais, não? - hoje já é quinta e daqui a pouco estaremos no Natal. Tem um cientista que diz que o tempo, por causa da poluição e das mudanças na atmosfera anda mais depressa, mas marcando o relógio a mesma hora de sempre.
- Talvez você se refira à Ressonância Schumann, disse eu impaciente. Por causa dos desarranjos ambientais, segundo essa teoria, a terra de uns anos para cá estaria em permanente taquicardia, mexendo com a velocidade do tempo do jeito que você falou. Mas, acredite se quiser...
Entramos num congestionamento terrível nas proximidades do centro. Olho para o relógio desesperado e ironizo:
- É, aqui o relógio realmente está rolando depressa demais.
- Garanto ao senhor que chegaremos a tempo, respondeu o taxista sorridente.

Retomando o assunto do tempo se esvaindo mais depressa do que no passado, ilustrei:
- Olha, o tempo pode até estar passando depressa, mas na média estamos vivendo mais, não sei se é bom ou ruim.
- Bom demais, doutor, eu amo tudo isto, respondeu dando uma arrancada e saindo à direita por uma quebrada estreita conseguindo fugir do congestionamento.
Ao me deixar na frente do prédio da Justiça do Trabalho, logo depois, antes de dar a partida, fez um sinal e gritou:
- Vou saber dessa tal “ressonância”. Até sempre.
Às 8h55 já estava no elevador da Justiça do Trabalho, lotado. Havia certo nível de tensão naqueles rostos todos. Audiência para mim é sempre um momento de tensão. Veio-me a frase do motorista:
- “Bom demais, eu amo tudo isto!”

2ª cena: “Minha idade de vida? 92 anos”

Desço tranquilo do 5° andar do Fórum João Mendes, em São Paulo. As coisas tinham caminhando bem nos meus (poucos) processos por lá e por isso havia baixado meu estágio “normal” de tensão quando da subida. Alojo-me bem na frente da porta do elevador e ouço um velhote, mas bem idoso mesmo, debatendo com outro idoso algumas questões jurídicas.


Volto-me e me surpreendo com ele, magrinho, baixo, cabelo ralos dividido no meio. No térreo não resisti:
- O senhor é advogado militante? Posso perguntar sua idade?
O velhote me olhou de alto a baixo, segurou firme a gravata verde, vacilou um pouco, respondeu:
- Sou advogado e minha idade são 92 anos.
- Mas o senhor ainda exerce a profissão?
Diante da resposta afirmativa, aquele que parecia ser seu cliente, também idoso, arrematou:
- E ele viaja para outras cidades para audiências e o que mais necessário.
Revelei minha admiração pela sua disposição para o trabalho e me envergonhei um pouco pela minha preguiça, mesmo depois de estar me aproximando das quatro décadas advogando ou indiretamente me valendo da advocacia para outros tipos de trabalho.
A advocacia é uma espécie de cachaça embora de má qualidade que vicia.
Sai para a rua de São Bento nos rumos de um velho bar para um lanche reforçado. Na frente da estação do Metrô, a uns dois passos do Largo de São Bento.
- Bom demais, eu amo tudo isto!



Fotos (from Google):
1. Fórum João Mendes (www.flickr.com)
2. Largo de São Bento (ircaldas.spaces.live.com/blog/)

20/06/2010

A ESPREITADORA

Explicação

Não pretendo ser lúgubre nesta crônica, embora reconheça que se trata daquele tema que muitos tentam ignorar e levam a vida pra frente, mesmo sabendo que a espreitadora anda por aí.
Eu também levo a vida pra frente mas quando se atinge certa idade, alguns amigos começam a ser “recolhidos”, pessoas importantes que foram referência também, e é nessa hora que paro um pouco para meditar sobre essa inevitabilidade.
Não fui fundo nas transcendências que o tema pode sugerir, até porque não tenho condições intelectuais para tanto
.

O recolhimento do escritor português José Saramago no último dia 18 de junho em linhas gerais foi assim descrito: tomara o café da manhã, começando logo depois a se sentir mal, teve atendimento médico, mas não resistiu às sequelas de sua doença respiratória, entre outras deficiências, do alto de seus 87 anos. As Divindades lhe garantiram um passamento suave mesmo considerando sua proclamada condição de ateu: “Deus não existe fora da mente das pessoas”. Mas, e certas emanações que provém da mente, meu ilustre “cara pálida”? Melhor não pensar?
Morte suave também se deu com meu pai, que cuidava de enfisema pulmonar que adquirira, creio eu, por conta de décadas de fumante de cigarros “quebra-peito”, aqueles “macedônia”, “continental” e outros de “altos teores”. Naqueles tempos em que os atores de Hollywood nos filmes faziam ligação de cena fumando com prazer seus cigarros. Claro que também dessa indústria deveria rolar um belo cachê.
Esse relato sobre o meu pai pode ser lido em "Amarguras e ternuras contidas", crônica de 22.05.2009.
Aquilo que de modo eufemístico, qualifico de “recolhimento”, sempre me causa perplexidades, porque o momento em que eclode, ou ocorre de modo suave, ou com extrema e traumática violência. Os acidentes aéreos são sempre impressionantes.
É a eterna espreitadora que resolve a hora e o modo de agir, aproveitando até mesmo a reunião de tantos num dado momento e lugar, por conta de “carmas” comuns, tentam explicar aqueles que acreditam na compensação de saldos que ficaram pendentes ao longo das existências. Lei de talião?
Há milhares de casos iguais a este que acompanhei por força de minha profissão o que explica o meu absoluto afastamento da área criminal. Em aulas de medicina legal meu estômago, ao presenciar certas imagens, me traía.
Um atropelamento fatal que um cliente jovem praticara, vitimando uma moça bem jovem que, depois de uma festa, caminhava de madrugada pelo leito molhado de rodovia de alta velocidade com pouco movimento naquela hora, acompanhada de outros colegas, todos alcoolizados em maior ou menor dose. Chovera muito, horas antes. Havia lama no acostamento, forçando os festeiros a andarem no meio da estrada. Uma neblina tênue dificultava a visão dos motoristas. Os faróis só em parte ajudavam porque o nevoeiro diminuía sua eficiência. O atropelamento fora inevitável, a vítima caminhava com passos incertos a dois metros no leito da rodovia, quase no seu centro.
A foto que compunha o inquérito policial me impressionaria para sempre. O rosto da jovem, jogada a metros de distância, estirada num barranco raso ao lado do acostamento, no meio de vegetação rasteira, cabelos loiros bem cuidados, olhos abertos, boca entreaberta, dentes à mostra, um sorriso macabro de surpresa, parecia não entender o fim violento da sua vida, a irreversibilidade do seu passamento. Aquela foto, aquela rosto, aquela expressão ficaram em minha mente por semanas, meses.
Muitas vezes, ao saber de atropelamentos fatais, aquela imagem angustiada, sorriso triste me assaltava, não como assombração, mas como uma advertência da fragilidade da vida que às vezes se esquece naqueles momentos de soberba.
Lembrava-me sempre dos versos de um poeta “sofredor”:
“Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...”

Afinal, uma fração de segundo antes do acidente mortal, aquela moça comemorava a alegria do baile que se encerrara minutos antes, alguns copos de cerveja a mais, desenhando sonhos e projetos já para o dia que nascia, um domingo que prometia tranquilo, após a madrugada chuvosa. O céu limpara, a noite começava dar lugar à aurora.

A lua dera o ar da graça entre nuvens que se recolhiam mas já ofuscada pela luz do amanhecer. As estrelas desapareciam também ofuscadas pela luz solar. A tragédia em nada impediria uma manhã ensolarada dando a impressão de que as árvores rebrilhavam comemorando a chuva forte de horas antes, enquanto bem-te-vis, andorinhas e pardais esvoaçavam, alguns caçando insetos despertos que saiam dos esconderijos recepcionando o sol.
Era o sinal de que a vida seguiria seu curso, cada um a experimentando segundo seu grau de merecimento até os limites postos pela espreitadora no exato instante que resolve intervir.
Muitos ela conduz por um túnel onde irradia a paz para novas missões.
Para outros, os de má índole...


Imagem: "Nebulosa de Hélice ("O Olho de Deus" - explosão de estrela semelhante ao Sol) NASA, from Google.

15/06/2010

A COPA É A DE 1958 (Quando tudo começou!)

Não me venham com essa de que o que passou, passou e que as reminiscências são exercícios de quem se volta para o passado porque no seu hoje os desencontros são doses de angústia insuperáveis.
Quanto a mim, pelas reminiscências, já fiz várias comparações e chego sempre à conclusão de que aquelas são espécie de alimento que amenizam, sim, minhas angústias nestes tempos cruéis. O que fazer? Mas, eu não desisto, não!
Lá estão as origens, lá estão as marcas dos pés que ficaram no tempo. Os passos da vida a serem contados aos que se disponham a ouvir.

Morávamos numa casa modesta, já melhorada, porém, com um quintal apreciável, duas cachorrinhas que minha mãe cuidava com carinho, um papagaio instável que só não se irritava com meu pai. Esse papagaio tinha a liberdade de se locomover por um longo arame esticado que saía de um poleiro próximo de uma parreira que pouca uva dava – se é que dava alguma – até nos fundos, no quartinho de despejo, também oficina de marcenaria de meu pai, um talento que tinha e com ele construía brinquedos e utilidades bem feitinhos.
As bananeiras também nos fundos ao lado do quartinho deram muitos cachos que viravam bananada no panelão. Eram pequenas. No meio do caminho, aquela fruta meio ácida que conhecíamos como “tomate japonês”.
Garotão em 1958, no ginasial, no 1° ano, palmeirense como todos em casa, comecei a me dar conta da Copa do Mundo, acho, quando a seleção brasileira venceu a da Áustria por 3 x 0 em 8 de junho.
À medida que a seleção ia vencendo o interesse ia crescendo na mesma proporção. Conseguiria o Brasil o campeonato mundial, finalmente? Na verdade, apenas oito anos depois, que me lembre hoje, ninguém mais se importava, então, com a derrota de 50. Acho que é coisa da imprensa, aquelas comparações absurdas, tanto que sempre que a seleção do Brasil joga com a do Uruguai, a partida se “transforma’ em revanche de 50. E o goleiro Barbosa, coitado, foi “condenado” para sempre. Que perdoe os brasileiros e a crônica esportiva no seu recolhimento.
Dava gosto ouvir a narração de Pedro Luis e Edson Leite que se revezavam nas transmissões da “cadeia verde-amarela”. Imaginem, comparar esses locutores com os de hoje – é melhor não comparar porque ofenderia a memória de ambos. Acho até hoje que Pedro Luis era palmeirense, de tão bom que era.

A coisa chegou à empolgação no jogo da terça-feira, dia 24, quando a seleção venceu a França por 5 x 2 e foi para a final com a seleção da Suécia.
Domingo, dia 29, nascera ensolarado. A decisão.
Havia nervosismo geral eclodindo no ar. O jogo começaria aí pela hora do almoço.
Todos a postos na minha casa, meus pais, irmãos, as cachorras e o papagaio temperamental se equilibrando entre um poleiro e outro pelo arame.
Logo no início o time da Suécia fez o primeiro gol da partida. Minutos depois, Vavá empataria e faria o 2°. O radio em volume alto transmitia a narração impecável de Pedro Luis. No final do 1° tempo, 2 x 1 para o Brasil, crescera o estado ansioso generalizado.

No 2° tempo o time do Brasil deslanchou: gol de Pelé, de Zagalo, 4 x 1, gol da Suécia, 4 x 2 e o “magistral gol de Pelé” (assim qualificado por Edison Leite que narrara o 2° tempo com emoção) o último, no final, que confirmaria o título para o Brasil, 5 x 2.

Fogos e rojões saíram de não sei de onde e espocaram lá nos altos do quintal, todo mundo emocionado em casa, as cachorras perdidas com aquele alvoroço incomum, trêmulas com os estouros, precisaram ser contidas e acariciadas, o papagaio maluco que, descendo para o chão, batia asas, gritando feito louco acompanhando o embalo da festa...
Ah, aquele dia de 1958! Aquela seleção sem estrelismos, sem endeusamentos, sem os milhões, profissionais que honraram o país.
O que fazer se o futebol é assim!

Até hoje reflito sobre aqueles momentos de confraternização e alegria em casa por obra da Copa de 1958 e ainda hoje quando ouço trechos da narração de Pedro Luis e Edson Leite, me arrepio.
E já despontava a bossa nova!
Meu Deus, que tempos aqueles!

Foto: Pelé aos prantos apoiado pelo goleiro Gilmar e Didi - 1958 (Google Imagens)


Página do Diário do Grande ABC de 22.06.2018

Acessarhttps://martinsmilton.blogspot.com/p/moravamosnuma-casa-modesta-em-sao.html

06/06/2010

TERRORES E TREMORES














"Ainda que tivesse sido o maior pecador dentre os homens, a nave do conhecimento da Verdade te conduzirá sem perigo pelo mar dos pecados”.
“Dirige, pois, a Mim todos os seus pensamentos e luta. Se a tua mente e o teu coração em Mim firmemente fixares, com certeza, enfim, a Mim chegarás”. (Bhagavad Gîtâ)


- Bem, pelo jeito posso lhe relatar alguns terrores que tenho guardado comigo e posso até ter escrito sobre eles mas de um modo meio poético, sabe aqueles devaneios ambíguos, nem sim nem não?
Não saberia precisar bem o momento ou suas causas. Talvez tivesse algo a ver com meu desinteresse religioso ou por fixação nalguma literatura que lera em algum momento. Não sei.
O processo fora gradativo. No começo, durante o sono, ocasionalmente, sentia-me incomodado. Nesses momentos, parecia estar lúcido no sonho, tentando desesperadamente acordar, mas alguma coisa me impedia de retornar ao "lar", de reassumir, digamos, a minha própria vida. De repente, como num estalo, acordava sobressaltado, totalmente consciente do que experimentara, de todo o mal-estar que tivera.
Acho até que na morte assim ocorre para aqueles muito apegados às coisas da terra. Talvez essas experiências, por esse lado, a mim se aplicam até que bem.
Preciso fazer um parêntesis, porém. Sabe do livrinho Bhagavad Gîtâ que já lhe falei?
- “Sublime canção”, lembro sim.
- Tem um trecho assim, dito por Krishna - que poderia ser considerado, para nós, o “Eu Superior”...
- A essência de Deus em nós?
- Diz:
“Faze bem o que te compete fazer no mundo: cumpre bem as tuas tarefas: ocupa-te da obra que encontras, para fazê-la o melhor possível: assim será muito bom para ti. Atividade é melhor do que a ociosidade.
E olha o que mais, porque a Divindade reconhece que o nosso mundo é também o da matéria:
“A atividade fortalece a mente e o corpo, e conduz a uma vida longa e normal; a ociosidade enfraquece tanto o corpo como a mente, e conduz a uma vida impotente e anormal, de duração incerta”.
E isso foi escrito lá pelo século IV antes de Cristo!
- Vida é movimento, então? Para ser bem simples. É bem atual.
- Pois bem. Passados esses momentos de terror, embora um pouco perturbado saía logo cedo para o meu mundo de obrigações, para as minhas tarefas da vida, “porque a ociosidade enfraquece...”
Certa noite, como se tocado na região dos tornozelos, tivera novos momentos de terror. Aquele toque sobremaneira físico, fizera vibrar todo o meu corpo, a alma, sei lá, tudo. Acordara instantaneamente, vivendo ainda aquelas impressões, aquele toque tão real, coração batendo a mil, trêmulo, aterrorizado, o desejo imenso de me esconder sem saber bem aonde, sob as cobertas, de mim mesmo, sabe lá. Sentia-me mal, muito mal.

Quando tal ocorria, meu dia não era bom.
Numa dessas visitas particularmente difíceis invoquei, “Jesus Cristo me ajude”. O resultado foi imediato. Acordei sobressaltado, mas instantaneamente livre daquela invasão, digamos, com alívio.


- Mas, você não se proclama agnóstico?
- Moderado meu caro, eu já disse a você sobre isso – lembre-se da minha definição particular. Tanto que nessa questão de vida e morte pendo para a reencarnação.
Passado algum tempo desses "toques" assustadores, fantasmagóricos, certa vez alguma mudança ocorreu.
Umas poucas vezes que me lembre, o sintoma do "toque" voltou a se manifestar como se me amarrasse. Mas, em minha mente, veio uma mensagem nítida:
- É benigno !
Meu corpo e alma novamente vibraram, mas de modo inspirador, tranqüilizador.
Acordei após aqueles segundos de sensações como se estivesse interiormente iluminado, com muita paz.
Na manhã seguinte, mesmo envolvido nos meus afazeres graves, carregava comigo resíduos de paz e harmonia.
- Experiências do bem e do mal, acho.
- Eu assim interpreto, mas não sei porque logo eu teria essas experiências.
Seria também uma dose tênue do evento morte ou a exteriorização dos efeitos do mal e do bem sobre nossa alma que, por uma razão qualquer me foram transmitidos. Pela fresta que se abriu no reino dos sonhos, eclodindo como um vulcão, o que se acumula no Ego inferior (o “porão”) e no superior (“uma impecável e imaculada sala de visitas”), as contradições da vida.
- E você invocou Jesus Cristo, hem?
- E como relatei, o resultado não poderia ter sido melhor. O que dizer, se não a verdade do que se passou?
- Sabe de uma coisa? Duvidava que você me contasse tudo o que me contou. Acho mesmo que o mundo dos sonhos tem “regras” próprias incompreensíveis. Eu por exemplo, não poucas vezes, me vi viajando em localidades estranhas e até conhecidas. Não é que certa vez, caminhava por uma cidade na qual vivi minha juventude e até visualizei o nome de rua nessas placas comuns que, para dizer a verdade, naqueles tempos, pouco conhecia. O nome da rua veio comigo quando cheguei a acordei. Usei o mapa para localizá-la naquela cidade. E ela lá estava.
E sabe o que mais? Isso que você me revelou daria uma crônica que até já bolei o título: “terrores e tremores”.
- É complicado falar sobre isso. Reflita muito antes de divulgar esse relato porque são experiências muito pessoais, sujeitas ao descrédito quase total. Quantos não teriam algo a dizer a respeito e silenciam. Com essas revelações alguns dirão: “o cara é alucinado, beirando a doideira”. E, claro, não se menciona nome...se você, um dia, tiver coragem de publicar. (1)


Imagens:
(i) yogasaocaetanodosul.blogspot.com
(ii) Theconspirate.blogspot.com (Jesus Cristo e Krishna)
(Google imagens)

(1) V. "Alucinações, Sonhos (?)" de 03.04.2011

30/05/2010

COMO OUSAS? TUDO O QUE FICOU...

Explicação

Estaria hoje “publicando” crônica sobre a final da Copa de 1958, tudo o que houve em volta dela naqueles meus dias. Resolvi adiar.
Mas, há dias nestes dias difíceis de viver em que as coisas enroscam na indiferença e naquela pergunta perigosa:
- Para que tudo isto? Jogue tudo para cima, ora!
Refletindo um pouco, resolvi republicar a crônica completa, me referindo sobre dois espelhos. Faço, porque de um jeito ou outro há um sentido de profundidade naqueles amores impossíveis porque assim decidiram os “futuros ex-amantes” diante das circunstâncias refletidas em seu tempo.
A crônica “Como Ousas” já foi publicada em alguns blogs. Ela completa, incluindo a parte “Tudo que ficou” somente no blog “Prosa e Verso de Boteco”, que pode ser acessado por aqui. Esse blog contém poesias e crônicas inspiradas, merecendo visitas permanentemente.


Como ousas?!

Mas, como chegara aos 70 anos?

Pois, não foi ontem de manhã que assistiu o surgimento da bossa nova, mais tarde a Jovem Guarda com o ainda hoje "rei" Roberto Carlos, já meio monótono.

E os namoros, os bailes, essas coisas?
Tudo passou de repente, embora ainda sentisse o perfume da noite, da alegria dos tempos, alguns acordes ainda chegavam aos seus ouvidos, sabe lá de onde. Do éter? Ora!

- Como é bonita a Deyse, diziam seus admiradores no colégio, muitos.

O tempo foi passando e ela se casou. O marido seria guindado tempos depois a um elevado cargo executivo numa multinacional. Sua vida foi muito fácil, muitas viagens ao exterior. Sabia que os executivos da empresa a admiravam. Não poucas vezes flagrou alguns meio boquiabertos a examinando. Aquela morena, de cabelos soltos e olhos verdes...

Teve três filhos: um professor, de vida simples, mas o mais culto, um engenheiro executivo de multinacional que enriqueceu e um médico que clinicava na Itália. Tinha orgulho de dizer de seu filho médico na Itália. Tinha facilidade de ir para lá. Sempre que ia, chegava até Assis e visitava o túmulo de São Francisco. Ficava ali, naquela meia luz, absorvendo as boas vibrações e se emocionando com as pessoas piedosas que ali oravam. Como ela. Saia dali sempre renovada.

Já pelos seus 40 anos resolveu trabalhar num núcleo de saúde infantil como voluntária, ajudando um médico, pouco mais jovem parecia, com sua barba espessa, bem contornada no rosto. Bonito? Era, reconhecia Deyse.

Teve muita convivência com ele, pelo menos duas vezes por semana. Por meses. Um dia, enquanto separava ela remédios entregues, o médico entrou, postou-se ao seu lado e, baixando a cabeça encabulado, disse quase sussurrando:

- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!

Paixão é difícil de não confidenciar. Atônita, conseguiu responder:

- Eu também, doutor.

O médico se aproximou e trocaram um leve beijo, próximo dos lábios. Deyse caiu em si, seu rosto explodiu vermelho, saiu apressada e disse, já no jardim:

- Como ousas? Como ousas?

Nunca mais voltou ao núcleo assistencial. Pior para as crianças de tão dedicada que era.

Hoje, viúva, mirando-se no espelho, pouco ligando para as poucas rugas, estava conservada, lembrando-se de sua vida serena, realizada. Num dado momento, acariciou seu próprio rosto, bem ali onde o médico lhe beijara. Sentira o perfume de sua loção, de novo. Enrubesceu e emocionada, disse alto:

- Como ousas?


Fugiu do espelho que a encarava com rigor...



Tudo o que ficou...

Mira-se no espelho e vê a realidade nua de seu rosto, já enrugado, cabelos grisalhos, ajeitados.
Há muito tirara a barba trabalhada que lhe dava um ar elegante e, sabia, chamava a atenção das mulheres à sua volta.
Ali, na imagem do espelho, havia um médico envelhecido que não enriqueceu. Afinal, trabalhara para os mais pobres, e por muitos anos num núcleo de assistência infantil.
Clínico geral, não saía de sua cabeça uma frase de uma humilde paciente. O tratamento que dispensara, culminando com uma cirurgia complicada, tivera êxito. Ela agradecia a todos os santos, especialmente São Francisco, de quem era devota exaltada.
Semanas depois da alta, ela voltou ao seu consultório e ao sair disse uma frase que talvez tivesse ouvido alhures:
- Doutor, o senhor é de uma raça em extinção.
E o espelho apenas confirmava isso, do ponto de vista físico...
Tinha hoje 72 anos. Viúvo havia quatro anos. Sua esposa morrera em seus braços de infarto fulminante. Nada pôde ser feito.
Essa experiência fora dolorosa, porque salvara tanta gente em momentos semelhantes e não obtivera êxito com sua própria esposa. Essa contradição mexera com sua cabeça, meditara sobre sua espiritualidade, mas as respostas não vinham. Com a profundidade que desejava.
Seus dois filhos avançaram na vida. Um era médico como ele, cirurgião exímio. O outro advogado também bem sucedido.
Este último tivera sérios problemas havia alguns anos o que o fez abandonar a advocacia criminal depois que um bandido o procurou para defendê-lo. Ao ter à sua frente aquela celebridade com ficha criminal medida a metros, decidiu rejeitar o trabalho. O bandido o ameaçara violentamente, obrigando-o a se afastar do trabalho e se esconder por algum tempo.

O que restara de sua vida aos 72 anos? Como não poderia deixar de ser, também para ele que sempre vivera no limiar da vida e da morte, o tempo também passara.


Recordara de sua infância, de sua juventude sacrificada fazendo trabalhos avulsos e ministrando aulas para ajudar nas despesas da faculdade. Lembrava-se de seu pai, que trabalhava como operário cerca de 12 horas por dia para ajudá-lo e sua mãe que tanto o incentivara, vendendo em sua casa, roupas feitas. E de sua esposa que o encorajara ao trabalho dedicado aos mais carentes com pouco retorno econômico.
Um drama que efetivamente vivera, parecendo enredo de romance de escritor pouco inspirado.
Mas, não havia somente essas lembranças atribuladas.
Sem qualquer peso na consciência nunca esquecera a curta paixão que vivenciara havia anos após a sua formatura, trabalhando num centro de assistência infantil.
Ali, uma senhora dos seus 40 anos, lindíssima, morena de olhos verdes, prestava trabalho voluntário. Com ela convivera, por meses, duas vezes por semana.
Um dia, não se conteve e confessou:
- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!
Para sua surpresa, ela respondeu:
- Eu também, doutor.
Aproximou-se então e deu-lhe um leve beijo, próximo dos lábios.
A mulher enrubesceu e se retirou apressada.
Nunca mais a viu e nem poderia procurá-la por saber de sua conduta e de sua vida social
Aquela lembrança, na frente do espelho fora de emoção. Um alento aos seus sacrifícios. Revivera o perfume do rosto daquela mulher que lhe inspirara tanto e que se foi.
Como o tempo...

23/05/2010

INVASÃO ALIENÍGENA: UM PERIGO PARA A HUMANIDADE?

Nunca fui muito ligado ao “fenômeno” dos discos voadores, embora não despreze o assunto.
Basta olhar para esse universo infinito e meditar um pouco. Seremos, mesmo, os únicos inteligentes – embora meio irresponsáveis como somos – nessa imensidão toda?
Confesso que, nos meus tempos de ABC, muitas vezes íamos, eu e minha esposa Ana Rosa, numa espécie de beco – rua sem saída - que era interrompida pela via Anchieta lá embaixo. A penumbra era total. A noite revelava com mais nitidez aquele céu estrelado sem fim. Ficávamos por ali algum tempo apreciando aquilo tudo – hoje seria impossível porque os tempos são de perigo - e, quem sabe, ver algum objeto não identificado vagando no espaço. Nada.
Os que dizem ter tido contato de terceiro grau descrevem as criaturas alienígenas sempre com a mesma complexão: cabeça desproporcional e oval, olhos grandes e meio puxados, baixa estatura. Será que todas essas descrições coincidem por espécie de autossugestão?

Meu conceito, a despeito do trauma que poderá causar a visita aberta de “alliens”, é de que seriam seres evoluídos porque, ao chegarem num nível de tecnologia espacial a ponto de viajarem pelo espaço infinito não podem ser destrutivos, dominadores.
Eis que ninguém menos que o cientista Stephen Hawking sobre a eventual visita dos alienígenas afirmou o seguinte:

“Se os estraterrestres nos visitarem, os resultados seriam como quando Colombo chegou à América, o não acabou nada bem para os nativos”. E argumenta mais o cientista: “...em vez de tentar achar vida no cosmos e se comunicar com esses seres extraterrestres, seria melhor que os humanos fizessem tudo o que pudessem para evitar esse contato”. (1)
É que há várias sondas da NASA que buscam planetas fora do sistema solar que poderiam conter vida inteligente. A mesma NASA enviou em 2008 a música “Across the Universe”, dos Beatles para “viajar” pelo universo tentando que seja captada e respondida por alguma inteligência nesses confins do universo.
Essa música tem estas estrofes entre outras:

“Imagens de luzes quebradas que dançam na minha frente como milhões de olhos
Eles me chamam para ir pelo universo
Pensamentos se movem como um vento incansável dentro de uma caixa de correio
Eles tropeçam cegamente enquanto fazem seu caminho pelo universo”
(...)
Sons de risos, sombras de amor estão tocando meus ouvidos abertos
Incitando e me convidando.
Ilimitado amor eterno, que brilha em minha volta como milhões de sóis,
E me chamam para ir pelo universo.”


O ponto de vista de Hawking me leva inevitavelmente para a abra de ficção do inglês Herbert G. Wells, “A Guerra do Mundos”, lançado em 1898.
A origem dessa obra memorável nascera de um comentário do irmão do autor mais ou menos assim:
“Imagine se descessem alguns marcianos e nos tratassem como nós (Inglaterra) tratamos nossas colônias”.

Na obra de Wells realmente os marcianos são dominadores e cruéis. Dois filmes se inspiraram no livro, mantendo o mesmo título: de 1953, o melhor e mais recentemente (2005) o de Steven Spielberg, neste os alienígenas são, além de assassinos, espécie de vampiros.

Todas sabem o final, não há surpresa: os invasores foram abatidos por bactérias (“as menores criaturas de Deus”) que consumiram suas resistências havendo, então, um sentido de gratidão religiosa. A humanidade fora salva.

Num conto de minha autoria mal recebido tratei da possibilidade da abdução do personagem, dando-se o trauma à alma de modo até amargo com a revelação de que pouco valem as conquistas materiais que obtemos e usufruímos. Algo utópico, uma renúncia que poucos se atrevem a encarar. Deixo uma interrogação sobre o que realmente se passou com o personagem embora fosse afetado psicologicamente.
Aquele trauma que acima imagino que se daria se aparecessem formalmente os ETs por aqui para o mundo inteiro ver. (2 e 3)

Bem, para estabelecer espécie de contraposição à seriedade do tema, deixo algumas linhas de uma música carnavalesca que não consigo esquecer, da década de 50, creio – não encontrei nada dela na internet, nem autor nem a época precisa – que proclama também, num sentido otimista mas jocoso a visita dos marcianos, mais ou menos assim:

Desceu um disco voador
Na praia do Arpoador,
O marciano foi pescar uma serei na areia
Essa turma e muito forte,
A turma lá de marte é de morte
Passou pra trás a marciana
Por um broto de Copacabana
Bebeu cachaça com vermute
Pois a pinga lá de Marte é um chute...”


Não me interpretem mal, hem!

Referências no texto:

(1) “O Estado de São Paulo” de 10.05.2010, transcrevendo artigo de Alok Jha do “The Guardian”. As afirmações de Stephen Hawking foram feitas em documentário para o Discovery Channel. Hawking é doutor em Cosmologia, autor do livro “Uma breve história do tempo”.

Sofre de doença degenerativa se comunicando por um computador acoplado à sua cadeira de rodas, no qual “um software permite que ele escolha palavras de uma lista e as reproduza através de um sintetizador de voz.” (V. meu artigo “Dos sem religião” de 25.04.2010)

(2) O livro de H. G. Wells foi utilizado por Orson Welles na radio CBS - Columbia Broadcasting, programa “Radioteatro Mercury” numa transmissão para Dia das Bruxas, 30 de outubro de 1938. Essa memorável dramatização da invasão marciana levou pânico a milhares americanos com intensa repercussão, produzindo manchetes pelo mundo afora. Todos sabem que Orson Wells depois se tornaria diretor e ator famoso de cinema.

(3) “O Solitário - Delírios e Altruísmos”, neste blog, publicação de 02.03.2009)


Foto (1): Cena do filme de 1953 "Guerra dos Mundos". (Fonte: Google Imagens)
Foto (2): Stephen Hawking (Fontes diversas via Google Imagens)

16/05/2010

SOLIDÃO

O sujeito era culto, lia muito e falava pelo menos quatro idiomas fluentemente. Fora executivo de multinacional.

Sua vida fora sempre muito confusa. Quando mais jovem frequentara a noite e as denominadas "bocas" de São Paulo.
Nesse ambiente conheceu aquela que seria mais tarde sua esposa de papel passado, uma mulher que embora frequentasse aqueles pontos, preservava a sua dignidade com discrição. Sua vida privada era pouco conhecida.
Mas, a forma como e local onde começou o relacionamento acabaria por provocar sérios atritos mais tarde entre o casal até porque mantinha ela amizades antigas e estranhas que permaneceram no tempo e atrapalhavam o relacionamento incomum de ambos.
No limite do insuportável, o casal se separou de modo traumático. Por fim um acordo judicial proveitoso. Superadas todas essas batalhas, diria ele aliviado:
- Depois de tudo isso que passei, vou voltar a "curtir" a noite de São Paulo.
Muito tempo depois eu o encontro num restaurante italiano, sozinho, magro como sempre fora, a espera da comida, tendo a frente uma garrafa pequena de vinho. Deixara de fumar, ele que era inveterado. Depois dos cumprimentos, cada um dizendo o que fazia, pergunto:
- Como vai a noite de São Paulo?
- Não há mais essa de noite em São Paulo. Fico a maior parte do tempo em casa lendo. As mulheres da noite são incapazes de soletrar sequer o abecedário, seu próprio nome, respondeu ele contrariado.
Na verdade, dera-se conta de que os tempos mudaram e que ele mudara.
Havia algo mais, uma ponta de decepção. Não encontrara Maria Benedita, uma mulata vistosa, dentada, que soube estar presa injustamente como traficante, num pequeno presídio feminino numa cidade que sequer gravara o nome, a uns 200 quilômetros dali, com quem tivera (ou pensara ter) algo além do simples prazer sensual naqueles tempos.
Soubera por acaso, ao cortar caminho por aqueles fundos da avenida São João e pelo bairro Santa Cecília. Dera de cara com uma antiga conhecida que morava por ali, escondida num apartamento sombrio:
- Ela vivia bem com um sujeito decente que era traficante. Ela nunca desconfiou. Um dia a polícia bateu na sua porta e encontrou um pacote de droga escondido sobre a caixa d’ água do banheiro. Foi injustamente acusada de cúmplice...
Voltou para os livros e para a solidão.
- As mulheres de seu tempo, mesmo frequentando os inferninhos eram diferentes? Eram?
Não respondeu.
- Solidão com livros é solidão? insisti como forma de apoio. - E afinal, você conseguiu ler inteiro o Ulisses de James Joyce? emendei, as mil páginas do livro que da última vez que falei com ele, há tempos, reclamava que a obra era chata mas que a leria até o fim de qualquer jeito.
Olhou-me fixamente, um sorriso amarelo como resposta.
Começara a se dar conta que aqueles tempos haviam morrido - e ele próprio.
Fui para outra mesa.
Ele saiu em silêncio sem um sinal de despedida.
Nunca mais o vi.

Figura: Artista João Werner
Foto da avenida São João - cdcc.usp.br (Google imagens)

09/05/2010

VEGETARIANO ENRUSTIDO: AS RECEITAS

Você torce pelo touro todo ferido com aqueles espadins, odiando o toureiro com aquela roupinha ridícula? Ai, o touro acerta o toureiro e você grita como se fosse um gol do seu time num momento de decisão? Espera ai. E a violência que você rejeita filosoficamente?
- Bem a violência gera a violência, especialmente quando há atos brutais de covardia, como se dá com o touro acuado - esses toureiros efeminados só merecem chifradas mesmo.
Mau sinal.
Ai você considera um negócio até desonesto os rodeios, pela brutalização dos animais e um bando de idiotas aqueles montadores? Que podem se arrebentar no chão com os saltos do touro sofrendo pelas amarras na sua genitália? E você pensa alto:
- Tomara que se arrebentem, sabe.
Sinal de “perigo”. Você é um forte candidato ao vegetarianismo. Mas, saiba, você pode pensar ou tentar sem chegar a tanto. Porque o caminho é árduo. Mais fácil deixar de fumar mesmo que você nunca tenha fumado.

Começa assim:
Rejeita um bife de vez em quando, pensando no sofrimento da vaca, fala para o garçom passar reto com os espetos, se enche de salada, no queijinho assado e guarnições e disfarça.
Pergunta que ainda não vai calar:
- Você não está comendo carne? Esta picanha sangrenta está uma delícia.
Você mente:
- Sabe, hoje não estou me sentindo bem. Meu médico me recomendou não comer nada gorduroso.
Com o tempo você abole a carne vermelha e seguramente terá que explicar porque você assim decidiu e deverá estar preparado para responder os motivos:
Religioso? Filosófico? Regime especial? O quê, o quê, hem?
Você já começa a ser o diferente nos almoços de trabalho e sociais.
Nem uns hambúrgueres no McDonalds? Ah, tentação, com aquelas fritas sequinhas e um copo imenso de guaraná. Difícil, hem.
No churrasco com os amigos você fará “churrasco” de pão e molhinho. Conseguirá (mesmo) rejeitar a linguicinha e o coraçãozinho de frango no espeto?
Epa, mas o coraçãozinho é de frango, carne branca. Acho que vou avançar...
- Será que não vai mais comer nem frango, nem nada, você se questiona?
E responde:
- Sei não, acho que não vou, até porque a “produção” é também de imensa crueldade.
E a partir daí não tem jeito. Você se assume, quase vegetariano, não radical, porque não rejeita um peixe (já pensou o “filhote” assado, tentação!), uns nacos de bacalhau, uns frutos do mar, uns camarões...
Até que um dia no mercado você encara os olhos de peixe morto te assediando. Ah, não o peixe não!
E devagar você começa a se questionar. Afinal, o peixe não é de carne? Mas tão saborosa, tão cheia de vitaminas!
E vagarosamente começa a rejeitar o peixe:
- Será possível? Com vou explicar isso em casa? E nas minhas viagens, vou comer o quê?
A resposta vem espontânea:
- Avance nas saladas, no grão-de-bico, na soja temperada. Massa, meu amigo, mas cuidado com a barriga! As pizzas estão por aí, em qualquer canto tentando de dia e de noite.

Pronto, agora você é consumidor de brócolis, couves, abobrinhas refogadas e a milanesa, pimentões, quiabos e jilós, quibes e estrogonofe de composto (carne) de soja...e por aí vai! E frutas em profusão.

Que mudança, hem?
Ai, nos coquetéis você se obriga a perguntar ao garçom qual o recheio da empadinha com jeito apetitoso:
- É de palmito?
- Palmito e frango, responde exultante o garçom ávido por presenciar a gula coletiva.
Você rejeita a empadinha porque botou na cabeça que frango desfiado cheira pena molhada. Você pode degustar uns canapés de conteúdo não identificado. Feche os olhos e arrisque. Ou fique só no guaraná e na coca-cola...
Renúncias são renúncias.
E se prepare. Você faz uma visita a um velho amigo e em sua homenagem ele prepara língua ao molho pardo. Você faz tudo para não jogar o estômago no prato e dá uma desculpa a mais esfarrapada possível e só fica no arroz branco e no tomate da salada.
A esposa do seu amigo, constrangida, sugere fritar uns ovos, uma omelete.
Não, no ovo você ainda não chegou e não quer nem pensar! Você aceita, toma uns goles de vinho e tudo acaba bem. Todos alegres, contando causos e piadas. Exageros e gafes com os efeitos do vinho avançando.
Ainda bem, ainda bem. Eta dificuldade!
Com o tempo esses percalços deixarão de ocorrer. Não estranhe se você deixar de ser convidado para aqueles grandes encontros e reuniões regados a churrasco e linguicinhas. E chope, é claro.
Todos os seus amigos, seus familiares, descobrem que você é um chato.
Mas um chato feliz que torce pelo touro, sempre, sem crises de consciência.
Talvez você até entre em estudos filosóficos sobre o enigma da existência dos animais, o amor e o respeito que merecem. Aí você atingiu o clímax.





Fotos:
(i)Secretaria do Abastecimento de São Paulo (via Google imagens)
(ii)foradomanual.blogspot.com (via Google imagens)